03/01/2011

Memórias de um feto



Pteris vittata L.

FÉTOS, E LYCOPODIOS. Lindissima planta vivaz que a moda tem entroduzido para adorno das sallas, pela elegância e colorido de sua rica folhagem — a maior parte são entroduzidas dos paizes tropicaes, e carecem de resguardo nos nossos invernos. (in Catálogo n.º 1Estabelecimento de Horticultura de José Marques Loureiro, 1865)

Por que será que num jardim, lugar de eleição do exotismo vegetal, as plantas exóticas que se propagam sozinhas, ocupando recantos inesperados, nunca são bem vistas? Talvez seja efeito da moda, fraqueza a que a jardinagem pode ser tão susceptível como o pronto-a-vestir. Houve um tempo em que aquele arbusto, vendido em todos os hortos e viveiros, era uma peça de ostentação de que qualquer jardim se orgulharia. Agora, porém, há outras novidades holandesas que reclamam a sua vez nos canteiros, e ao velho e ultrapassado arbusto resta ser transformado em lenha. Nessas condições, é algo irritante que ele tenha criado descendência, proliferando caoticamente no jardim e fora dele. É como uma senhora ter envergado ao sair de casa um tailleur de corte impecável e descobrir-se de repente no meio da rua com o xaile da avó pelos ombros.

Há que reconhecer, no entanto, que episódios destes só são possíveis onde a jardinagem é levada mais a sério do que em Portugal. Por cá, e sobretudo na jardinagem pública, não há modas, mas apenas um alastrar do esquecimento. As plantas não são retiradas para darem lugar às últimas novidades: simplesmente desaparecem e são esquecidas. Nos canteiros renovam-se trimestralmente as plantas sazonais, sempre as mesmas ano após ano, e quanto a novidades estamos conversados.

O Pteris vittata, um feto que desponta ocasionalmente nos velhos muros dos jardins do Palácio e das ruas circundantes, é uma relíquia da época em que a jardinagem portuense era coisa séria. Foi um tempo que atingiu o seu auge com José Marques Loureiro (1830­-1898) e que teve o seu fim simbolicamente assinalado pela demolição do Palácio de Cristal em 1951. Um feto que não é espontâneo em Portugal (embora o seja nalguns países da Europa mediterrânica, incluindo o sul de Espanha), que não é vendido em nenhum garden center, que não é cultivado em nenhum jardim — um tal feto só pode ter surgido naqueles muros vindo de outra época. Uma época em que a curiosidade pelas plantas e o desejo de experimentar moldavam tanto a jardinagem pública como a privada.

E ele só se aguentou estes anos todos porque é prolífero e de esporulação precoce. Cada indivíduo tem três ou quatro meses de esperança de vida antes de os jardineiros o arrancarem do muro: nesse curto prazo, tem que garantir a perpetuação da espécie. O exemplar acima fotografado, por exemplo, já não existe. Se o tivessem deixado crescer, as suas frondes poderiam ter atingido um metro de comprimento; assim, ficaram-se pelos 20 ou 30 centímetros.

Os dois sinais particulares que permitem identificar facilmente o Pteris vittata estão bem patentes nas fotos: o folíolo terminal muito mais comprido do que os restantes, e os esporângios dispostos linearmente e protegidos pelas margens dobradas. Esta última característica é partilhada pelos demais fetos do género Pteris, de que há 250 espécies mas apenas três europeias.

8 comentários :

Carlos Aguiar disse...

Post muito interessante. Gostei.

Américo M.S. Pereira disse...

Infelizmente, até nesses detalhes se vê o nosso distanciamento face a muitos países europeus... que, ao fim e ao cabo, são o verdadeiro espelho da evolução e maturidade cultural.

Virginia disse...

Sempre gostei de fetos e em tempos até tentei transplantar alguns do Monte S. Lourenço , perto de Esposende, onde vivia , para o jardim da casa. Infelizmente morreram todos, talvez porque não tinham torrão e não se adaptaram ao sol. Tb tive uns em casa do tipo plumoso e esses deram-se muito bem na minha varanda fechada. É uma das plantas mais bonitas que conheço para ter em casa, mas não muito fácil de tratar.

Paulo Araújo disse...

Obrigado, Carlos.

Américo: na jardinagem e no apego à natureza (estas coisas não são idênticas, mas têm alguma correlação entre si) o nosso desfasamento civilizacional é realmente notório. E nem sequer estamos a progredir: no tempo do Marques Loureiro, esse desfasamento (pelo menos no que toca à jardinagem) era certamente muito menor do que é hoje.

Virgínia: pois é, raramente corre bem o transplante de plantas silvestres (coisa que em qualquer caso se deve evitar fazer com plantas que sejam raras ou escassas), e os fetos têm exigências muito particulares. Se eles gostam de muros é preciso arranjar-lhes um muro igualmente musguento e húmido, e com a exposição solar correcta, para eles se sentirem bem.

Unknown disse...

Boa noite Paulo Araújo!

É fantástico vir ao vosso blogue e observar ,regularmente, e com a maior da vossa generosidade,aquilo que provavelmente nunca viríamos a conhecer. Nesse aspecto o vosso papel educativo é extraordinário!
Só posso dizer OBRIGADA!
Um BOM 2011 e... até sempre!

Maria Dalila

ZG disse...

Muito interessante, sem dúvida!

Paulo Araújo disse...

Obrigados nós, Dalila, e um óptimo 2011 também para si.

ZG: Não sei se já reparou, mas o Pteris vittata também está naturalizado no Jardim Botânico de Coimbra, no muro por trás da estufa grande. (O muro pode ver-se sem se entrar na estufa - que, tal como a mata, só abre para visitas escolares. De facto, o Jardim Botânico de Coimbra está praticamente encerrado ao público, mas já me cansei de refilar contra isso.)

ZG disse...

Sim, este belíssimo feto também se encontra no J. B. de Coimbra, onde, felizmente, se desenvolve sem perturbações!!