Veludo reencontrado
Cosentinia vellea (Aiton) Tod. [= Cheilanthes vellea (Aiton) F. Mueller]
João de Araújo Correia (1889-1985), o maior escritor duriense de sempre, deu o título Rio Morto a um livro de contos que publicou em 1973, explicando no prefácio que morto era como tinha ficado o Douro depois da construção das barragens. No lugar do caudal livre e impetuoso, sujeito ao capricho das estações, ficara uma sucessão pachorrenta e imutável de lagos atacados de obesidade. Araújo Correia não o diz, mas além da paisagem adulterada outros estragos de monta se poderiam enumerar, como o desaparecimento dos peixes migratórios e a destruição da vegetação de leito de cheia. De então para cá a flora duriense sofreu ainda os ataques dos agroquímicos e foi, em muitos lugares, sumariamente erradicada para a plantação de novas vinhas.
O que existia no Douro foi exaustivamente documentado nos anos quarenta do século passado, e repousa hoje nos herbários nacionais. Entre 1941 e 1943, por encomenda do Instituto do Vinho do Porto ao Instituto Superior de Agronomia (Lisboa), decorreu um Estudo fito-geográfico da região duriense, coordenado pelos botânicos João de Carvalho e Vasconcellos (1897-1972) e Francisco de Ascenção Mendonça (1889-1982). Mais ou menos pela mesma época, Arnaldo Rozeira (1912-1984), do Instituto Botânico da Faculdade de Ciências do Porto, levou a cabo um estudo independente que culminou na sua tese de doutoramento (de 1944) sobre a flora de Trás-os-Montes e Alto Douro.
Ao invés de Arnaldo Rozeira, que fez o seu próprio trabalho de campo, é pouco provável que João Vasconcellos e Francisco Mendonça tenham passado grandes temporadas no Douro a recolher espécimes para herborizar. Tal tarefa foi delegada numa equipa de recém-licenciados pelo ISA de que se destacava o jovem engenheiro agrónomo José Gomes Pedro (1915-2010). É graças a ele que temos hoje notícia de plantas que, em grande parte, já desapareceram dos locais onde ele as encontrou.
Enquanto não for construída uma auto-estrada que sobrevoe as encostas e ignore soberanamente as curvas e contracurvas do rio, o acesso ao Douro não será tão cómodo como às praias do litoral. Ainda assim, as estradas acidentadas e estreitas que hoje existem não têm comparação com as que existiam nos anos 40. Os nossos heróis botânicos usavam não o automóvel, mas sim burros ou cavalos, únicos meios de transporte capazes de vencer a aspereza dos caminhos. E as campanhas, que duravam meses, montavam quartel general nas aldeias da região.
O feto-de-veludo, ou Cosentinia vellea, foi uma das preciosidades que Gomes Pedro registou no Douro em 1941-42. É um feto de ambientes muito secos e ensolarados, com frondes até 30 cm, presente em Portugal numa dezena de lugares. O seu habitat são as fendas de rochas xistosas ou calcáreas viradas para sul. Na região do Douro, onde está restrito a uma faixa pouco acima do leito do rio, Gomes Pedro encontrou-o para os lados de Barca d'Alva e também no vale do Tedo, afluente da margem esquerda do Douro entre a Régua e o Pinhão. A população de Barca d'Alva, mais abundante, deve ainda hoje existir, mas não é crível que a do vale do Tedo tenha sobrevivido às convulsões da paisagem. De facto, e ao contrário do que sucede com Barca d'Alva, não nos consta que tenha havido no Tedo observações posteriores à de Gomes Pedro.
Barca d'Alva é demasiado longe para ir e vir do Porto no mesmo dia, e queríamos à viva força observar este feto. Se ele fora avistado no vale do Tedo, então também deveria frequentar a margem direita do Douro logo ali em frente. Nos sombrios taludes da margem esquerda seria perda de tempo procurá-lo.
As fotos são a prova de que o feto-de-veludo existe no Douro, junto à linha férrea, uma dezena de quilómetros a oeste da estação de Pinhão. Cremos que desde 1941 ninguém lhe punha a vista em cima, e esse é o nosso modo de celebrar a vida de José Gomes Pedro, botânico exemplar que morreu em 27 de Dezembro de 2010.
Bibliografia
1. António Luís Crespi, Sónia Bernardos, Adriano Sampaio e Castro — Flora da região demarcada do Douro — João Azevedo Editor, Mirandela, 2006
2. João do Amaral Franco, Maria da Luz Rocha Afonso — Distribuição das Pteridófitas e Gimnospérmicas em Portugal — Servico Nacional de Parques, Reservas e Conservação da Natureza, Lisboa, 1982
3 comentários :
Duriense de coração e apaixonado pelo nosso mundo natural, gostei do que li!
Continuação de bom trabalho.
Obrigado, Rafael. O nosso trabalho é só passear de olhos abertos. Quem dera que todos os trabalhos fossem assim.
Em Barca d'Alva ainda lá estão, Paulo. Ou melhor mais para montante, nas barreiras xistosas da estrada Barca - Freixo de Espada à Cinta. Há também alguns exemplares (pouquíssimos) a crescer no vale da ribeira do Mosteiro, junto à estrada para Ligares... Os incêndios ameaçaram algumas colónias do Douro...
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