Lagoa Comprida — ilha das Flores
Quem se imagina já de malas aviadas para o paraíso na Terra, materializado em paisagens de sonho numa ilha quase incólume, talvez deva ser avisado de que nem só de beleza vive o homem. Com uma densidade populacional de 28 hab/Km^2, seis vezes inferior à de São Miguel, a ilha de Flores é a mais esparsamente povoada dos Açores. É também, excluindo o Corvo com os seus 400 habitantes, aquela onde mora menos gente: quatro mil pessoas. Como se diz no linguajar moderno, a
falta de massa crítica é um problema. Que não haja
multiplexes de cinema para preencher o tédio dos fins-de-semana é um inconveniente menor na vida dos ilhéus. Afinal, em todo o arquipélago só em Ponta Delgada, cidade já com pinta de metrópole, é que existe tal entretenimento. Bem mais grave para os florentinos é a falta, não apenas de um hospital, mas de consultas médicas de especialidade. Casos que poderiam ser de rotina são encaminhados, pelo centro de saúde da ilha, para o Hospital da Horta: duas vezes 230 Km de avião, dias inteiros perdidos para uma consulta de poucos minutos. Ou, tratando-se de mulheres grávidas, quatro ou mais semanas longe de casa, no Faial, à espera do dia do parto. Nas Flores, um dos custos paradoxais da insularidade é não se poder nascer na ilha.
O nosso assunto, porém, é outro; e, tanto na paisagem como na vegetação, as Flores são o mais apurado resumo do arquipélago açoriano. É uma ilha compacta, rectangular, com 16 Km de extensão de norte a sul e 12 Km de leste a oeste. Ao longo da costa, desenvolvem-se vertiginosas falésias de duzentos a trezentos metros de altura, cortadas por inúmeras cascatas; subindo para o centro da ilha, encontramos crateras emolduradas por vegetação cerrada, autênticas florestas virgens à escala liliputiana. Das estradas, modestas e com poucas rectas, há umas que atravessam bosques, como a que vai de Santa Cruz às Lajes, e outras, pelo interior da ilha, rodeadas de pastagens que se perdem na ondulação dos montes. Tudo isto envolto no mistério de uma névoa intermitente e regado por uma chuva quase diária.
Na ilha das Flores, menos transformada pela acção humana, é fácil encontrar certas plantas nativas açorianas que, nas demais ilhas, estão reduzidas a pequenos núcleos ou refugiadas em lugares inacessíveis. Um bom exemplo é a
Platanthera azorica, que já quase desapareceu do Faial e do Pico e cuja ocorrência hoje em São Miguel é incerta. Outro é a
Veronica dabneyi, ressuscitada nas Flores depois de presumivelmente extinta no Faial.
Para melhor sublinhar o mérito florístico das Flores, e para encorajar outros naturalistas, amadores ou profissionais, a visitar a ilha, mostramos esta semana mais algumas das plantas que lá observámos em Junho. Com uma ou outra excepção, trata-se de espécies endémicas açorianas que existem na generalidade das ilhas do arquipélago. Todas elas, por possuirem parentes próximas no continente, ilustram o carácter marcadamente europeu da flora açoriana.
Bellis azorica Hochst. ex Seub.
A margarida-dos-Açores (
Bellis azorica) é, vê-se-lhe bem pela cara, prima da vulgar bonina dos nossos relvados (
Bellis perenis). Com hastes rastejantes de não mais que 20 cm de comprimento, distingue-se da sua congénere pelas inflorescências mais pequenas, por ser mais hirsuta, e por ter folhas caulinares e não apenas basais.
É improvável, contudo, que o leitor alguma vez se veja na necessidade de recordar estes detalhes para saber se está perante uma espécie ou outra. É que a
Bellis azorica, apesar de só não ocorrer em três das ilhas (São Miguel, Santa Maria e Graciosa), é uma das plantas mais raras e ameaçadas da flora endémica açoriana. Pouca gente a encontrará por acaso; ou, encontrando-a, terá dúvidas sobre a sua identidade. Ao contrário da sua prima continental, que encontrou em habitats criados pelo homem (os relvados de jardim) o seu lugar de eleição, a margarida-dos-Açores é pouco ou nada adaptável e não tolera ambientes degradados. Os poucos núcleos remanescentes da planta, que floresce de Junho a Julho, localizam-se em ravinas, crateras e florestas húmidas de louro e cedro. Os exemplares das fotos vivem junto à Lagoa Comprida, sob a protecção de um atarracado cedro-do-mato (
Juniperus brevifolia) que, com assinalável belicosidade, dificultou quanto pôde o trabalho do fotógrafo.