Erva-loira da Boa Viagem
Senecio lusitanicus (Cout.) R. Pérez-Romero [= Senecio doronicum subsp. lusitanicus Cout.]
A serra da Boa Viagem, entre Quiaios e Figueira da Foz, é muito frequentada no Verão por famílias piquenicantes. Antes de se estenderem as toalhas e de se abrirem os cestos, e de toda a gente abancar para a refeição, há ainda que ir em romaria espreitar o miradouro da Bandeira. É de lá que se vê a serra descer abruptamente sobre a tira de areia que confronta a extensão azul do oceano. É um local de eleição para aqueles que, gostando da natureza, não se querem cansar a procurá-la. Estacionam o carro, sentam-se no muro do miradouro, respiram fundo, batem meia dúzia de fotos: está tudo visto, podem ir embora.
Quem tenha gosto em botanizar fará mal em ser tão displicente. Como noutras paragens do centro e sul do país, o solo calcário e pedregoso é promessa infalível de orquídeas à farta, mas as plantas que fazem deste um lugar ímpar são outras. Precisamente duas. A mais vistosa, no auge da floração em finais de Maio, é o lírio-amarelo-dos-montes, um endemismo ibérico que tem talvez aqui a sua maior população portuguesa. A outra, que começa a florir um mês antes, é uma erva-loira (género Senecio) que só parece existir na Boa Viagem, em Montejunto e nos arredores de Lisboa. Na capital a sua existência está por um fio, mas nas duas serras do centro-oeste do país, se não houver perturbações de monta, ela é numerosa quanto baste para ter o futuro assegurado. Isto apesar de Franco, no vol. II (de 1984) da Nova Flora de Portugal, ter afirmado que a planta é raríssima — o que, não sendo verdade, pode traduzir-se, num país onde o trabalho de campo é tão irregular, num prematuro atestado de óbito. Se Franco, na sua incontestável autoridade, escreve que algo está em risco de desaparecer, então é de esperar que, dez ou vinte anos depois, tenha mesmo desaparecido. E, se desapareceu, já não há que preocuparmo-nos com a sua conservação. Só que, sem que ninguém se dê ao trabalho de verificar, a planta continua a existir nos locais onde sempre existiu.
E a nossa erva-loira bem merece protecção, pois, embora o seu estatuto taxonómico tenha suscitado dúvidas e opiniões contraditórias, há algum consenso em que se trata de um endemismo lusitano de distribuição muito restrita. O primeiro registo é de 1913, na Flora de Portugal de António Xavier Pereira Coutinho, que lhe chamou Senecio doronicum subsp. lusitanicus. João do Amaral Franco acata a opinião de Coutinho, mas houve outros autores que consideraram o taxon como um sinónimo ou uma subespécie de Senecio lagascanus. Taxon esse que, em todo o caso, exibe claras diferenças tanto em relação ao S. lagascanus como ao S. doronicum, sobretudo na forma e na indumentação das folhas, que têm uma textura lanuda, como se tivessem sido polvilhadas com pó de talco. Muito recentemente, em 2009, um grupo de botânicos da Universidade de León encabeçado por Rafael Pérez-Romero publicou, no vol. 47 da revista Compositae Newsletter, um estudo comparativo em que conclui pela necessidade de separar as plantas portugueses numa espécie autónoma. O artigo, com o título "Senecio lusitanicus (Asteraceae, Senecioneae), a new combination for a species from Iberian Peninsula", pode ser lido aqui [PDF].
É de esperar que a subida de escalão seja ratificada pela Flora Ibérica quando for publicado o volume das asteráceas. Ficará então oficialmente estabelecido que a serra da Boa Viagem alberga uma das três únicas populações conhecidas de um precioso endemismo lusitano. Que medidas tomar para preservar tal tesouro? Talvez seja suficiente não estragar.
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