26/06/2012

O cromo que faltava

Scilla verna Huds.


Com este texto completamos a colecção das cilas nortenhas, uma das mais atribuladas que alguma vez iniciámos. Várias vezes nos gabámos publicamente de possuir cromos raros e cobiçados que afinal padeciam de erro de legendagem. Fomos dando a mão à palmatória até ela ficar dorida de tanta pancada. Em resumo: o género Scilla, no norte de Portugal, é representado pela S. monophyllos, fácil de distinguir pela sua folha solitária; pela frágil e outonal S. autumnalis; e por duas espécies primaveris com várias folhas, todas lineares, a S. ramburei e esta S. verna. A confusão advém da existência de uma planta igualmente multifoliada que parece Scilla mas não é, a Hyacinthoides paivae, muito mais comum do que as outras duas no Minho e no Douro Litoral. O principal carácter distintivo é que as plantas do género Hyacinthoides têm duas brácteas na base de cada pedúnculo floral; as do género Scilla têm uma só bráctea ou mesmo nenhuma (como sucede com a S. autumnalis).

Uma vez resolvida essa dúvida, a S. verna tem personalidade suficiente para ser de fácil identificação. As suas flores são de um azul pálido, quase branco, com tépalas largas, e aparecem dispostas em corimbo; as flores da S. ramburei dispõem-se em espiga e têm tépalas estreitas, mais escuras e arroxeadas. Em regra, a S. verna é menos robusta do que a S. ramburei.

Ao contrário da S. ramburei, que seria endemismo ibérico não fosse ocorrer também em Marrocos, a S. verna tem ampla distribuição europeia, abrangendo a Noruega, Grã-Bretanha, Irlanda, França e Portugal. Por cá, ela está restrita à metade norte do território, onde prefere prados de montanha, mas noutras latitudes é comum encontrá-la em charnecas à beira-mar.

22/06/2012

Eufórbia nordestina

Euphorbia oxyphylla Boiss.



A morfologia das inflorescências é um tema a que retornamos amiúde, a propósito de orquídeas, alhos, jarros ou crucianelas. Tenha o leitor paciência, voltamos hoje ao assunto porque nas inflorescências da maioria das espécies do género Euphorbia nota-se um padrão que é interessante examinar. Primeiro alguns exemplos: E. azorica, E. dulcis, E. helioscopia, E. paralias, E. exigua. O que há em comum em todos eles?

Cada inflorescência é composta por uma única flor feminina, que é quase só o ovário, rodeada por numerosas flores masculinas reduzidas a estames, conjunto que se chama ciátio e que se abriga num cálice formado por duas ou mais brácteas. No centro, reparamos no brilho do néctar, que os polinizadores também avistam, mesmo de longe. Além disso, de cada ciátio podem emergir vários talos sustentando novos ciátios, num arranjo de bifurcações sucessivas a que os botânicos chamam pseudo-umbela (e os matemáticos teorizam quando estudam sistemas caóticos). Em resumo, a estrutura peculiar das hastes de flores começa com um pé longo onde a certa altura nascem duas folhas que, sendo sésseis, formam uma taça; aí, o caule bifurca-se e, alguns centímetros adiante surge, em cada um dos dois novos pés, um novo cálice de duas folhas, de onde partem dois novos pedúnculos, etc. Esta duplicação de pedúnculos constrói uma «árvore» em cuja «copa» estão os ciátios de flores — que evitam os patamares demasiado abaixo porque, nesta disposição de caules, as flores ficariam escondidas pelos níveis colocados mais acima, o que seria um manifesto desperdício.

Que vantagens pode ter esta forma? A imbricação das folhas, por vezes decussadas, tem vários usos, como reter água da chuva ou humidade, reforçar os talos para apoiar os frutos ou orientar as hastes; e a touça de inúmeros ramos divide o peso do edifício, que pode ser considerável. Porém, a configuração da inflorescência, globular pelo modo como foi gerada, tem benefícios menos óbvios, mas o objectivo é provavelmente o mesmo que o dos malmequeres: muitas flores, expostas numa superfície bem visível para os polinizadores.

A planta da foto (outrora Euphorbia broteri Daveau ou Euphorbia biglandulosa Desf. raça broteri (Daveau) Samp.) cumpre à risca o figuro descrito anteriormente. É monóica, tem folhas coriáceas e glaucas; as pseudo-umbelas exibem de 10 a 15 raios e têm glândulas alaranjadas. É um endemismo ibérico que, em Portugal ocorre em terrenos ácidos de zonas montanhosas do norte e centro este. Os exemplares da vitrine são de uma clareira de um castinçal na serra de Bornes.

Depois deste breve apontamento, consegue identificar uma eufórbia nesta pintura de Agostinho José da Motta (1824-1878)?

20/06/2012

Uma couve é uma couve

Brassica oleracea L.


Senhora de múltiplos disfarces, a couve está presente, como ingrediente principal ou como acompanhamento, em quase tudo aquilo que comemos. Eis uma lista incompleta dos nomes e personalidades por ela assumidos: penca, repolho, couve-lombarda, couve-galega, couve-flor, bróculos, couve-de-Bruxelas. Haverá refeição digna que não inclua algum destes ingredientes? E ao título de rainha dos quintais a couve juntou, de há uns anos a esta parte, uma improvável vocação ornamental. As couves de folhas coloridas inventadas pelos japoneses fazem parte das plantas que rotativamente ocupam os canteiros citadinos. O seu único inconveniente nesta forma é que a passarada continua a julgar, com muito acerto, que ela é para comer.

A couve primeva, anterior às selecções e cruzamentos de onde resultaram as hortaliças que consumimos, é originária da costa atlântica europeia desde a Alemanha até ao norte de Espanha, e sobrevive ainda hoje em falésias a baixas altitudes. Em Portugal, país tão dado ao cultivo e consumo da couve, era inevitável que ela surgisse naturalizada aqui e ali, fenómeno que ilustramos com uma jovem planta fotografada nuns entulhos do litoral minhoto.

O leitor por certo dispensa uma descrição detalhada da Brassica oleracea, para mais vinda de alguém que teria dificuldade em distinguir uma couve-lombarda de uma couve-galega. Sendo certo que a uma couve não se pede que seja bela mas sim tronchuda, é de apontar que as suas flores, desvalorizados por não serem comestíves, são bonitas dentro do figurino da família das crucíferas, a que a planta pertence. Em geral são brancas, mas dizem os manuais que elas também podem ser amarelas. De facto, já vi couves ornamentais com flores amarelas, mas nunca vi tal fenómeno nas couves de quintal.

16/06/2012

Na estrada das armérias

Armeria transmontana (Samp.) G. H. M. Lawr.


Quem por estes dias percorrer as estradas do patamar intermédio da serra da Estrela — em especial as que ligam Seia ao Sabugueiro e as Penhas Douradas a Gouveia — é muitas vezes incitado a parar pelos mantos de flores cor-de-rosa que cobrem bermas e taludes. Encostar o carro à valeta por tão inebriante motivo não suscita as buzinadelas indignadas, habituais noutras ocasiões, dos condutores obrigados a desviarem-se. O normal é que eles parem, sorridentes, e se juntem à nossa contemplação. Se não as conhecerem (é raro, mas acontece), hão-de querer saber que flores são aquelas. Talvez se satisfaçam com a informação de que são armérias, e não insistam para nosso embaraço em saber qual a espécie. Quem já se debruçou pacientemente sobre o assunto diz-nos que as armérias da serra têm tendência a misturar-se e confundir-se, mas que as que vivem a média altitude são provavelmente Armeria beirana, substituídas mais acima por Armeria sampaioi. Seguramente não são A. transmontana, pois apresentam folhas bastantes mais largas e curtas. Não haveria, porém, qualquer obstáculo geográfico a que o fossem, pois a A. transmontana não é exclusiva de Trás-os-Montes, descendo pelo menos até à Guarda. E no seu território de eleição, mais a norte, também ela é capaz de formar bonitos tapetes, posto que de um rosa mais pálido.

No Alto Douro, onde as imagens foram captadas, o risco de confusão em matéria-arméria é pequeno. De acordo com a Flora da região demarcada do Douro (de António Luís Crespi, Sónia Bernardos & Adriano Sampaio e Castro), a única espécie semelhante à Armeria transmontana presente nesse território é a própria A. transmontana. Temos assim uma denominação de origem controlada, o que nos dá outra tranquilidade. Pena não termos ocasião para nos gabarmos deste conhecimento, pois no Douro pouca gente pára a contemplar a vegetação espontânea. Só se for um viticultor a calcular mentalmente de quantos litros de herbicida precisará para se livrar dela.

Se ainda hoje as armérias são complicadas, pelo costume que têm de hibridarem entre si, muito mais o eram para quem quis guiar-se pelo 2.º volume (de 1984) da Nova Flora de Portugal, de João do Amaral Franco. A Armeria transmontana foi por ele pulverizada em três subespécies, hoje no limbo dos nomes botânicos esquecidos, onde gozam da companhia da A. duriensis e de muitas outras espécies e subespécies baptizadas pelo mesmo autor.

Só havendo uma espécie sem subespécies a complicar, aqui vão alguns dados deste endemismo do noroeste da Península. A Armeria transmontana, que floresce de Maio a Junho em sítios pedregosos ou em clareiras de matos, apresenta folhas quase lineares de 10 a 15 cm de comprimento e uma haste floral que pode ultrapassar os 50 cm de altura. As flores, agrupadas em capítulos densos com cerca de 2,5 cm de diâmetro, têm corola branca ou de um rosa esbatido.

14/06/2012

Palomita e os dois rios

Lagoa, Macedo de Cavaleiros: rio Azibo a desaguar no rio Sabor
No livro O senhor Kraus, de Gonçalo M. Tavares, um Chefe recebe dos seus auxiliares um mapa do país. Não para saber onde estão os montes, mas para que nenhum metro quadrado escape às suas ordens. Pequeno e colorido, como a realidade, ali o Chefe apenas localiza com destreza o litoral e o interior. E é neste, por achar que é mais seco, que o Chefe tem o cuidado de escrever «chuva», esperando ser obedecido, ou manchar de vinho. A apreciação que com frequência fazemos deste território progressivamente esvaziado de gentes não se afasta muito desta caricatura. Esquecemo-nos até das plantas, como se elas não conseguissem sobreviver por lá sozinhas, e imaginamos uma secura sem remissão. No nordeste transmontano há prados com uma biodiversidade invejável; e, mesmo em caso de abandono, o solo pode manter-se rico em nutrientes, e ser o ideal para as herbáceas que tinham sido expulsas pelos cultivos.

Platycapnos spicata (L.) Bernh.
Encontrámos esta planta anual a caminho do rio Sabor, na orla de uma terra saudável e recheada de malmequeres, ao serviço das inúmeras abelhas de um apicultor que nos pediu sossego para não as perturbarmos. É um regalo para os fotógrafos. As folhas são penatissectas e glaucas, quase azuis, e acompanham o talo erecto até cerca de 30 cm de altura. A inflorescência em espiga tem mais de 40 flores com cerca de 6 cm de comprimento, esbranquiçadas ou rosadas, cada uma com uma unha amarela no topo e a ponta enegrecida. Das quatro pétalas, a superior é maior e tem um esporão, as outras estão unidas até à base, protegendo dois estames que vigiam um nectário. O fruto é rugoso e achatado (formato a que alude o nome do género), com uma semente.

Quando a vimos, julgámos que fosse uma Fumaria (e, de facto, Lineu designou-a por Fumaria spicata), género que temos evitado porque, com raras excepções, é muito difícil de destrinçar. A inflorescência muito compacta desmente contudo essa filiação. A Platycapnos spicata ocorre no sudoeste da Europa, norte de África e Macaronésia, e é a única espécie do seu género de que há registo em Portugal.

09/06/2012

Visita botânica à serra da Estrela


O Município de Seia, através do Centro de Interpretação da Serra da Estrela (CISE), e a Sociedade Portuguesa de Botânica organizam nos dias 7 e 8 de Julho a visita botânica Serra da Estrela, um refúgio para a flora e vegetação de montanha de Portugal, com o seguinte programa:
6 de Julho, sexta-feira
20h00Encontro no CISE e partida para a Casa Colónia nas Penhas Douradas.
7 de Julho, sábado
9h00 às 17h00Realização de um percurso pedestre (Penhas Douradas – Salgadeiras) para a exploração dos principais habitats, comunidades vegetais e das espécies de flora do planalto superior da serra da Estrela.
19h30Jantar de confraternização no Sabugueiro (opcional e não incluído no preço de inscrição), ao que se seguirá um serão d' Aldeia, actividade inserida no plano de animação da rede Aldeias de Montanha.
8 de Julho, domingo
9h00 às 17h00Realização de itinerário em autocarro, pela área do Parque Natural da Serra da Estrela. Durante o trajecto far-se-á um conjunto de paragens, em áreas de interesse para a conservação de habitats e espécies de flora desta área protegida.
O número máximo de participantes é 24. A inscrição – a efectuar pelo endereço electrónico cise@cise-seia.org.pt ou pelo telefone 238 320 300 – custa 15 euros e o alojamento 15 euros por noite. Mais informações aqui (ficheiro PDF).

07/06/2012

Flor do talco


Alyssum serpyllifolium Desf.


A questão de Olivença, que volta e meia ressurge nas páginas interiores dos jornais, não é o nosso único conflito mal resolvido com os espanhóis. Já houve a guerra das rosas, e avolumam-se sinais de que não tardará a guerra da flor-do-talco. Mas "guerra" é termo excessivo: é um desacordo feito de pequenos remoques, como brasa que nunca será chama.

"Flor-do-talco" não é como "flor de sal", pois trata-se de uma entidade vegetal (a que é retratada nas fotos) e não mineral. Diga-se, porém, que tal nome é invenção nossa para uma planta que, segundo a Flora Digital de Portugal, já dispunha de uns tantos, a saber arçanhas, comélos e tomelos. É que o nosso primeiro encontro com o Alyssum serpyllifolium deu-se na albufeira do Azibo, junto a uma antiga extracção de talco. O talco, para quem não sabe, não é apenas um pó para uso em bebés, mas sim um minério, o mais leve que se conhece. É também um dos constituintes habituais das rochas ultrabásicas, coisa que em Portugal só existe no nordeste transmontano.

As formações ultrabásicas, ou serpentínicas (para leigos como nós os dois termos são sinónimos), caracterizam-se por serem muito ricas em metais pesados como magnésio e ferro, e quase destituídas de azoto, fósforo e potássio, que são nutrientes essenciais à maioria das plantas. Não há pois muitas delas que possam sobreviver em tais habitats; as que o fazem são especiais ou tiveram de se adaptar.

O Alyssum serpyllifolium é uma das plantas que, em Portugal, só aparecem nos ultrabásicos transmontanos. No entanto essa não é a sua ecologia exclusiva nos demais países onde ocorre (Espanha, França, Argélia, Marrocos e Tunísia), pois também gosta de substratos calcários. As diferenças que as plantas portuguesas exibem em relação às outras (apresentam em geral porte mais débil) levaram ao registo, em 1967, por Dudley e Pinto da Silva, da subspécie lusitanicum. Pode no entanto dar-se o caso de essas diferenças serem tão-só induzidas por um habitat que impõe um dieta invulgar, e não reflectirem uma diferenciação genética merecedora de reconhecimento taxonómico. A inevitável divergência de opiniões tem um cunho marcadamente nacionalista: só alguns portugueses (vejam-se a Nova Flora de Portugal de Franco e a Checklist da Flora de Portugal) aceitam como boa uma subespécie que é ignorada pelos espanhóis — e, em particular, pelos autores da Flora Ibérica.

A sul de Macedo de Cavaleiros, e em especial ao longo da estrada que atravessa o monte de Morais em direcção à freguesia de Lagoa, o Alyssum serpyllifolium é muito frequente, impossível de não ver durante a floração, que atinge o auge entre Maio e Junho. Quem quiser mapear os ultrabásicos transmontanos não tem mais que fazer-se à estrada durante esse período e estar atento aos inconfundíveis sinais amarelos. Como escreveu Carlos Aguiar, este pequeno arbusto (de não mais que 30 cm de altura) «é o mais fiável bioindicador de rochas ultrabásicas no NE de Trás-os-Montes».

05/06/2012

Alho áureo

Allium scorzonerifolium DC.


Os alhos são herbáceas perenes, com bolbos aromáticos e amplas virtudes medicinais, que associamos ao mês de Junho por haver várias espécies ibéricas que escolhem o fim da Primavera para florir. Estes exemplares são de um talude pedregoso, coberto por uma nuvem inamovível, na serra do Marão e, o das últimas fotos, de um prado perto dos calcários negros de Campanhó. O alho dourado também ocorre na serra da Estrela, até em bermas de estrada, mas no passado fim de semana ainda não estava em flor. Os inúmeros pés que encontrámos há um ano, num prado junto a um amial de Castro Laboreiro, pareceram-nos então dispostos a substituir todas as flores por bolbilhos.

Apreciador de solos húmidos e fendas de fragas, o Allium scorzonerifolium é nativo do norte de Marrocos e do noroeste da Península Ibérica. Em Espanha há ainda registo de um outro alho com tépalas amarelas e perianto estrelado, o A. moly, de ecologia um pouco diferente, inflorescências com mais flores e folhas mais largas. Mas as plantas, com um figurino a que têm de obedecer como todos nós, ousam variar quanto baste para que esta lista de características de pouco sirva. É pelo ovário que os botânicos destrinçam o A. moly, o suspiro-do-sol, do A. scorzonerifolium, o alho-amarelo. A crer nas várias Floras, o primeiro não ocorre por cá, ou teríamos de colher amostras de plantas para termos certeza da identificação. Alternativa menos cruel é fiarmo-nos noutra diferença, esta externa e de natureza matemática: a secção transversal do talo do A. moly é circular, sendo elíptica, mesmo um pouco angulosa, a do A. scorzonerifolium.