30/12/2013

A cultura do milho no Baixo Vouga


Pilularia globulifera L.


Há plantas que, não tendo interesse económico para quem cultiva a terra, assumem preferências ecológicas que as fazem depender dos ciclos de sementeiras e colheitas, fazendo-se convidadas em lugares onde as práticas agrícolas reconstroem ou conservam os habitats a que elas se afeiçoaram. Algumas tornam-se infestantes indesejáveis, outras acrescentam cor e naturalidade a uma paisagem artificial, outras ainda são tão discretas que nem sequer damos pela sua presença. Os fetos da família das Marsileáceas, que engloba os géneros Marsilea e Pilularia, incluem-se nesta última categoria. Gostam de ficar submersos até ao início da Primavera; mas, para produzirem os esporocarpos que asseguram a sua propagação, exigem que o nível de água baixe, e de preferência se reduza a zero, à medida que o Verão se aproxima. Os campos onde o arroz é cultivado têm por hábito cumprir estes requisitos, e por isso a Pilularia globulifera, tanto em Portugal como noutros pontos da sua distribuição (que é exclusivamente europeia), costumava dar-se bem em arrozais. Se, porém, num país onde tanto arroz se come, o cultivo do cereal não está em risco, o mesmo não acontece com este minúsculo feto, certamente vulnerável a práticas agrícolas modernas como o uso de químicos e de maquinaria pesada.

Em Portugal há registos antigos da Pilularia globulifera no litoral português ente o Sado e o Cávado, com especial incidência no Baixo Vouga. É verdade que as suas frondes filiformes, com 5 a 10 cm de comprimento, se podem facilmente confundir com tufos de gramíneas, conquanto um observador mais atento note que as folhas mais jovens têm as pontas caracteristicamente enroladas; mas, nos locais onde ocorre, geralmente em lugares abertos sobre substratos ácidos, ela pode forrar vários metros quadrados de terreno, e não escapará ao olho atento dos especialistas. A menos que os botânicos portugueses se tenham desinteressado dela, é de recear que a quase ausência de observações da erva-das-pílulas (nome acabado de inventar, inspirado pelo inglês pillwort) nas últimas décadas signifique que ela está em vias de desaparecer do nosso país. Este «quase» que introduzimos na frase é mérito de Rui Soares: graças a ele, que encontrou a planta na orla de um campo de milho entre Cacia e Angeja, e teve a amabilidade de nos avisar, ainda não foi em 2013 que lhe foi passada a certidão de óbito.

Acontece que não é o milho a companhia ideal da erva-das-pílulas: ela sempre deixou claro que prefere o arroz, cultura que antes predominava nestes campos baixos e frequentemente inundados. A drenagem dos terrenos e a substituição das culturas significa de facto uma condenação a muito breve prazo. Talvez o reaparecimento da planta em 2013 seja apenas um último estertor, sem direito a encore nos anos vindouros. Por altura da nossa primeira visita, no início de Maio, alguns campos haviam já sido lavrados para a plantação do milho, mas aquele onde morava a Pilularia teria beneficiado de uma moratária por estar ainda muito encharcado. Quando, no fim de Junho, regressámos com intenção de fotografar os esporocarpos (as tais minúsculas pílulas, com 3 a 4 mm de diâmetro, que surgem junto ao rizoma e justificam o nome da planta), já o campo fora revolvido por tractores e o milho plantado em rigoroso alinhamento. Da Pilularia não sobrava nada.

Se estivéssemos num país onde a protecção da biodiversidade passasse do discurso à prática, esta (re)descoberta seria notícia de primeira página. Os organismos de protecção da natureza acorreriam alvoroçados, e ninguém consideraria descabido que o Estado ou alguma associação conservacionista financiassem o proprietário de um terreno de um ou dois hectares para assegurar a sobrevivência da espécie. Sendo as coisas como são, ninguém mexerá uma palha, muito menos uma espiga de milho, e o achado merecerá quando muito um parágrafo adicional no (eternamente adiado) Livro Vermelho da Flora Vascular Portuguesa.

28/12/2013

Candeias na serra


Serra de Arga com o estuário do Minho em fundo
Por se situar perto da costa, a serra de Arga tem um clima atlântico temperado e abriga vários nichos de flora notável. Contudo, o povoamento desta região minhota ditou a destruição de quase toda a floresta autóctone (onde por certo se incluíam carvalhos, bidoeiros, salgueiros, amieiros, freixos), mesmo a das galerias ripícolas, levando a preocupantes perdas de solo por erosão e escorrência. Mais recentemente, grande parte da paisagem uniformizou-se com resinosas, eucaliptos e acácias invasoras. Só junto a algumas aldeias — onde resistem pequenos bosques de antigos carvalhos cobertos de musgos e de cabrinhas (Davallia canariensis) — ou perto do topo da serra é que esta impressão desoladora é parcialmente redimida.

A cerca de 820 metros de altitude não há vegetação arbórea. Cruzamo-nos com pastores e gado, e gastamos tardes a explorar extensas turfeiras e charnecas húmidas que, no Verão, se enchem de Pinguicula lusitanica, Drosera rotundifolia, D. intermedia, Gentiana pneumonanthe (e uma espécie rara de borboleta que depende desta planta para sobreviver), Serratula tinctoria, Erica ciliaris e Erica tetralix. Um pouco mais abaixo há córregos e ribeirinhos em cujas margens abundam anémonas (Anemone trifolia) e narcisos (Narcissus pseudonarcissus). Acrescente-se a este cenário bucólico vastos cervunais (onde é essencial manter o pastoreio), taludes de matos húmidos com preciosidades cuja conservação é prioritária (como Lycopodiella inundata) e zonas secas, expostas ao sol, com substratos siliciosos e a (noutras paragens) rara Succisa pinnatifida.



Armeria humilis (Link) Schult. subsp. odorata (Samp.) P. Silva


A Península Ibérica foi bafejada com muitas espécies endémicas de Armeria, algumas difíceis de destrinçar, uma tarefa que se complica a cada novo híbrido natural que se descobre. Se a chave dicotómica nas Floras nem sempre se ajusta às medidas da planta que observamos, pelo menos as descrições são minuciosas e por elas aprendemos inúmeros vocábulos novos (folhas dimorfas, múticas e rigídulas; brácteas imbrincadas e cuspidadas, as externas menores ou subiguais ao dobro das internas; praganas no cálice; escapos decumbente-incurvados...). As armérias são plantas vivazes, algumas lenhosas, em geral com uma roseta basal de folhas filiformes ou lanceoladas de onde saem um ou vários talos encimados por inflorescências arredondadas, formadas por flores de pétalas soldadas na base e protegidas por dois invólucros de brácteas que parecem feitas de papel pardo.

A Armeria humilis é um endemismo do noroeste da Península com porte rasteiro e gosto por fendas de rochas graníticas, solos arenosos e pastagens de montanha acima dos 800 metros. As duas subspécies registadas (A. humilis subsp. humilis, que ocorre nas serras do Gerês e Amarela e de que só conhecemos espécimes com flores brancas; e a A. humilis subsp. odorata, com populações nas serras de Arga, Laboreiro, Amarela e Cabreira, de pétalas pálido-rosadas ou lilases) diferem no tamanho e número de nervuras das folhas, na morfologia das brácteas involucrais e das aristas dos cálices, e até nos meses de floração, florindo a segunda mais cedo. Os dicionários informam que cada planta do género Armeria é conhecida em vernáculo português como raiz-divina ou maçacuca, uma palavra feita de maçã e cuco. Os espanhóis optaram por um singelo candeia.

23/12/2013

A dança das orquídeas


Platanthera pollostantha R. M. Bateman & M. Moura / Erica azorica Hochst. (ilha de Santa Maria)

Na quarta-feira, dia 11 de Dezembro, deu-se na imprensa escrita portuguesa um fenómeno nunca visto: dois jornais (o Público e o Diário de Notícias) fizeram chamadas de primeira página com uma orquídea silvestre portuguesa. A notícia era a descoberta, por uma equipa de botânicos composta por dois britânicos (Richard Bateman e Paula Rudall, dos Kew Gardens) e uma portuguesa (Mónica Moura, da Universidade dos Açores), de uma nova espécie de orquídea nos Açores, a terceira do género Platanthera endémica do território. A nova orquídea, de que se encontraram apenas 250 exemplares em flor numa única ilha do arquipélago, a de São Jorge, foi de imediato alçada pelos seus descobridores à categoria da mais rara da sua família em toda a Europa. E foi essa distinção — que, muito mais do que um dúbio galardão, deve servir de alerta aos organismos regionais e nacionais de protecção da natureza — que fez convergir a atenção dos jornais. As fotos da raridade (uma haste singela armada com flores discretas, pequenas e verdes) terão provocado a perplexidade dos muitos leitores para quem as orquídeas são aquelas coisas vistosas e multicoloridas originárias dos trópicos. Haverá quem tenha aprendido alguma coisa lendo a notícia, mas outros, instalados no conforto de uma ignorância empedernida, quiseram partilhar connosco o seu vácuo mental, comentando assim a notícia no DN:

«Muita feia. Nem flor tem. A orquidea mais bonita é a Tailandesa.»

«Pois. Avancem já umas verbas prá protecção. Temos que deslocar uma equipa de vinte pessoas, mais o equipamento, o hotel e a alimentação para 6 meses (pelo menos). E, hã... as ajudas de custo, claro. Até fica barato, tendo em conta que vamos fazer mais quatro doutoramentos. Quanto à orquídea... [expressão de baixo calão].»

«Leiloa uma mudinha, algum colecionador vai querer pela raridade, apesar de na minha opinião não ser tão bonita assim. Com o dinheiro dá para investir na preservação da espécie.»

É bom esclarecer, antes que alguém se deixe empolgar por tão luminosa ideia, que as orquídeas europeias não têm qualquer interesse para coleccionadores. Passam 11 meses em cada ano reduzidas a tubérculos subterrâneos, só se deixando ver na época de floração; e, como dependem de micorrizas para a sua subsistência, são incapazes de sobreviver num jardim ou noutro meio artificial, morrendo rapidamente quando transplantadas. Colher estas orquídeas com intenção de as cultivar em vaso é uma idiotice e uma destruição pura e simples. O único modo de conservar a «orquídea mais rara da Europa» é (como sucede com todas as suas irmãs açorianas ou continentais) cuidar do habitat onde ela escolheu morar.

Ainda não dissemos que nome tem a nova Platanthera açoriana, e de facto até temos medo de pronunciá-lo. O feliz anúncio da descoberta de uma nova orquídea endémica, e para mais uma que se distingue claramente (sobretudo no tamanho e morfologia das flores) das suas duas conterrâneas, vem embrulhado numa revolução taxonómica capaz de provocar uma balbúrdia épica. Assim, a nova espécie fica a chamar-se Platanthera azorica; a espécie que antes tinha esse nome chama-se agora Platanthera micrantha; e aquela que se chamava Platanthera micrantha foi agora rebaptizada como Platanthera pollostantha (ilustrada nas fotos; o epíteto significa «a menor das flores»). Resumindo: há uma nova espécie e um novo nome, mas este não foi atribuído àquela; e nenhuma das espécies anteriormente conhecidas manteve o nome que tinha.

Ninguém propõe tal dança de nomes por gosto ou simples recreação. Richard Bateman et al. tiveram o maior cuidado em explicar, no artigo em que relatam a descoberta (Systematic revision of Platanthera in the Azorean archipelago: not one but three species, including arguably Europe’s rarest orchid, publicado on-line em 10 de Dezembro de 2013), que a responsabilidade do imbróglio cabe ao há muito falecido Moritz August Seubert (1818-1878), autor da primeira Flora Azorica (1844). Seubert, que nunca pôs os pés nos Açores, baseou as suas descrições no material de herbário recolhido pelos Hochstetter pai e filho, que percorreram o arquipélago em 1838. Essas descrições são, de um modo geral, pouco minuciosas ou mesmo vagas. Seubert descreveu e ilustrou duas Platantheras (embora tenha usado o nome genérico Habenaria), a P. micrantha e a P. azorica, que posteriores estudiosos da flora insular sempre acreditaram ser as duas espécies que, até ao passado dia 9 de Dezembro, ostentavam esses nomes, e que ocorrem na maioria das ilhas açorianas. Em Junho de 2011, em visita a São Jorge, Mónica Moura descobriu uma população de Platantheras bem diferentes daquelas que já conhecia. Richard Bateman, botânico especializado em orquídeas, confirmou tratar-se de uma nova espécie. A história só não ficou por aí porque os cientistas insistiram em ver os espécimes (ou holótipos) em que Seubert baseou as suas descrições. Ao receberem o material de herbário (enviado da Universidade de Tubinga, na Alemanha), Bateman et al. constataram serem três e não duas as espécies de Platanthera de que Karl Hochstetter (o filho) havia recolhido amostras; que a espécie encontrada por Mónica Moura em São Jorge (e que Hochstetter, não tendo visitado São Jorge, terá colhido em alguma outra ilha) tinha servido de base à descrição da P. azorica por Seubert, mas há 173 anos que não era vista; que a espécie que foi durante um século (erradamente) conhecida como P. azorica tinha afinal servido de base à descrição da P. micrantha; e que a espécie que foi durante um século (erradamente) conhecida como P. micrantha (de longe a mais comum no arquipélago) não tinha servido de base a qualquer descrição publicada por Seubert, e por isso, face ao código internacional de nomenclatura botânica (ICBN), não dispunha de nome válido.

Queixam-se os autores de que foram os ditames desse mesmo inflexível ICBN que os obrigaram, com «grande relutância», a uma revisão taxonómica que por certo se revelará fértil em trapalhadas e equívocos. E é de fraca ajuda que, em 2011, seguindo o exemplo de vários autores que nunca viram as plantas na natureza, a IUCN, ao actualizar a sua lista de espécies em perigo, tenha decidido que as duas Platantheras até então conhecidas no território formavam afinal uma única espécie, a que chamou P. micrantha, correspondente à actual P. pollostantha. Por ironia, das três espécies que agora sabemos existirem nos Açores, a P. pollostantha é a única cuja sobrevivência não suscita preocupações.

21/12/2013

Margarida dos brejos

Eclipta prostrata (L.) L.
Comunicar eficientemente sobre ciência a uma audiência não especialista sem usar jargão científico em demasia é tarefa árdua em que muitos cientistas vacilam. À força do hábito de conversar entre pares, parece-lhes faltar o rigor que a linguagem técnica assegura; e não é raro iniciarem palestras de divulgação com um incómodo pedido de desculpas aos que já sabem tudo por terem de perder o seu precioso tempo com um discurso excessivamente elementar destinado aos outros, os leigos. Ainda que o conhecimento das plantas não se possa reduzir a um aborrecido dicionário de termos técnicos, há que recorrer a eles de tempos a tempos, como quando aprendemos uma língua nova. E, para identificar ou distinguir plantas, há que reparar nas diferenças (mais ou menos técnicas) de cada uma, certos de que essas peculiaridades estão lá para benefício da planta e não para conveniência dos estudiosos.

O leitor já sabe que uma margarida não é uma flor mas um coro delas servindo uma notável estratégia de disseminação: o arranjo de florículos é tão denso que é possível que uma só visita de um polinizador baste para fertilizá-los todos; caso algum não seja polinizado, recorre sem embaraço à auto-fertilização. As sépalas que resguardam cada florículo são essencialmente folhas modificadas, e na família das margaridas é usual que o cálice por elas formado se transforme num penacho. Esta estrutura, o pappus, parece um pára-quedas com a semente suspensa na base, e assim é facilmente levado pelo vento a colonizar novos torrões.

Algumas margaridas, porém, não apresentam pappus, e outras têm sementes com dois formatos, com ou sem poupa: a primeira com o dever de povoar novos espaços; a segunda destinada a perpetuar a espécie junto à planta mãe. Sem o tufo de cabelinhos a ajudar, o trabalho de dispersão cabe por inteiro à semente. Algumas recorrem a um gancho ou espinho (ou seja, a um só cabelinho que enrijou) para se agarrarem ao pêlo de animais ou à nossa roupa e irem à boleia para paragens distantes; outras são muito leves, seja pelo material fino de que são feitas, seja por cavidades de ar interiores, lugares que pareciam destinados a sementes que abortaram para não sobrecarregarem o conjunto; outras ainda exibem um design aerodinâmico, rolando facilmente se empurradas pela chuva ou pelo vento até encontrarem um cantinho jeitoso para germinarem.

As margaridas do género Eclipta são assim chamadas pela ausência de pappus nas suas sementes (ou têm-no muito rudimentar). Nas fotos pode ver-se um conjunto delas, em tom verde, junto a uma inflorescência; quando maduras, destacar-se-ão quase cilíndricas e castanhas. De origem tropical mas esporadicamente naturalizada no nosso país, a Eclipta prostrata é anual, de floração tardia, apresentando um hábito prostrado e ramoso. Aprecia margens de riachos, arrozais e, em geral, sítios encharcados. O exemplar das fotos é vizinho do rio Guadiana em Elvas.

16/12/2013

Verde, logo azul


Vaccinium myrtillus L.
Nos países frios do norte da Europa, a apanha de mirtilos silvestres é bastante mais comum do que em Portugal a colheita de amoras. Não se trata de obter proventos comerciais, mas de recuar à infância da humanidade, ao tempo em que não havia agricultura e o sustento era assegurado pela produção espontânea da natureza. Talvez porque o nosso gosto refinado rejeite os sabores rudes e não padronizados dos frutos silvestres, ou talvez por simples ignorância, o certo é que a actividade de recolecção não tem entre nós muitos adeptos. Amoras, pilritos e medronhos abundam de norte a sul do país, mas — tirando a colheita de medronhos para aguardente na serra algarvia — pouca gente tira proveito de tão copiosa oferta. Nas terras altas do noroeste a ementa é enriquecida pelo mirtilo, fruto que, por motivos bem compreensíveis, ninguém tem o hábito de colher: embora o arando (Vaccinium myrtillus) seja relativamente frequente em carvalhais, matos e até plantações florestais em altitudes elevadas (em geral superiores a 800 m), as condições climatéricas do nosso país não favorecem a produção de frutos. Um dia inteiro de colheita pela serra dificilmente daria matéria prima para um miniatural frasco de compota.

Apesar disso, e como o leitor pode verificar com uma breve googlada, desde há 18 anos que, com grande sucesso, se cultivam mirtilos na região centro do país, especialmente em São Pedro do Sul e Sever do Vouga. Só que, apesar da semelhança dos frutos, as variedades cultivadas são de origem norte-americana e nada têm a ver com o nosso mirtilo espontâneo, que tão fraca vocação mostra para a produção intensiva. É de facto incorrecto, como se faz nesta página, descrever o mirtilo como um fruto silveste. O mirtilo cultivado é tão silvestre como uma maçã golden, o que por certo não o impede de ser delicioso.

O melhor mirtilo genuinamente português, tanto pelas virtudes ornamentais como pela abundante produção de frutos, mora em pleno oceano Atlântico, nas ilhas dos Açores: trata-se da uva-da-serra, ou Vaccinium cylindraceum, um arbusto que é endémico do arquipélago mas é ignorado pela população local. Façamos votos para que a compota de uva-da-serra seja algum dia tão obrigatória em mercearias e supermercados açorianos como são hoje o doce de capucho e o licor de maracujá.


Vaccinium cylindraceum Sm. — exemplar albino — ilha Terceira

14/12/2013

Lótus açucarado


Glinus lotoides L.


Quando, dominados pela preguiça, demoramos a largar o sono ou a cama, é raro que não nos censuremos por cedermos à tentação, correndo depois esbaforidos para recuperar do atraso ou aliviar o remorso, eliminando desse modo o efeito prazeroso, que nos culpabiliza, de um benéfico descanso adicional. Dessas angústias não sofre esta planta que, no seu ano de vida, se entrega a uma existência refastelada numa margem arenosa de rio, onde se deita confortavelmente sem necessidade de justificar a mandriice, formando rosetas ou esticando-se até uns 60 centímetros de caule. As folhas, elípticas, peludinhas (tanto que parecem cobertas por um veludo cinza), de margem inteira e base estreita, lembram colheres de sopa de um faqueiro mono-específico. Os fascículos de cerca de uma dezena de flores (como nos livros, isto significa que se agrupam num arranjo firme e muito justo) são axilares, mas as flores, sem pétalas, são tão pequeninas e de cor tão modesta que mal se percebem, ainda que, como numa delicada miniatura, lá caibam 12 estames e 5 estigmas. As cápsulas têm cinco gomos cobertos de sementes reniformes com poucos milímetros de diâmetro, estriadas, de cor castanho-avermelhado, que exibem um estranho anel, talvez sobra de outro orgão da flor (tão minúscula e cheia), cuja função na semente desconhecemos.

O título, na falta de um nome vernáculo em português, tem origem na tradução literal da designação comum usada em língua inglesa, lotus sweetjuice. Infelizmente não trincámos uma folha (ou uma flor) para provar o nome. A planta é nativa no sul da Europa, parte da região mediterrânica e dos trópicos, ocorrendo na metade sul da Península Ibérica. Em Portugal, há registo da sua presença nas bacias do Tejo e do Guadiana.


Baldio do rio Caia, Arronches
Vimos estes exemplares, em Outubro, numa porção magrinha do rio do Guadiana, perto de uma magnífica população de Narcissus serotinus e de outra discreta mas também abundante de Ophioglossum lusitanicum. Em Novembro, revimo-la nas margens do rio Caia, um afluente do Guadiana que delimita uma secção da fronteira com Espanha (nunca reconhecida deste lado por causa da questão de Olivença).

09/12/2013

A deusa substituta


Artemisia verlotiorum Lamotte


Artemisa, a deusa grega da caça, da vida ao ar livre e da castidade, deu nome ao género botânico Artemisia, que inclui numerosas espécies fragrantes e com uso culinário e medicinal, entre elas o famoso absinto e a madorneira que reveste as nossas dunas litorais. Algumas espécies são lenhosas, quase arbustivas, outras são herbáceas, outras hesitam entre os dois extremos. Nenhuma se destaca pela beleza da floração: os capítulos florais, que surgem em cachos, têm 4 ou 5 mm de diâmetro e são desprovidos de "pétalas" vistosas (ou, mais exactamente, de florículos ligulados).

A Artemisia vulgaris, que resume de modo perfeito as características do seu género, é uma das cinco espécies de Artemisia espontânea no nosso país. Originária da Europa, Ásia e África, aproveitou o seu uso em cultivo para se naturalizar no continente americano. É uma planta cespitosa, capaz de atingir os dois metros de altura (embora em geral se fique por 1,2 m), com grandes folhas penatipartidas e caules avermelhados, que revela preferência por terrenos baldios e ruderais e costuma florir entre Julho e Setembro. Em Portugal, onde aparenta ser pouco comum, está disseminda pelo norte e centro do território continental.

Percorrendo as margens do rio Minho nos arredores de Valença, deparámos com abundantes populações daquilo que nos pareceu ser a Artemisia vulgaris. A planta aparece na orla de terrenos cultivados e também, em muito maior número, nas ilhas formadas pelos meandros do rio, algumas delas com centenas de metros de extensão mas facilmente acessíveis na maré baixa (e também na maré alta, se calçarmos galochas). O desejo de a ver em flor obrigou-nos a repetidas visitas: só à enésima vez, já com o mês de Outubro adiantado, é que ela acedeu às nossas solicitações. E essa floração tardia e quase a contragosto já nos fazia desconfiar ter havido troca indevida, mais tarde infelizmente confirmada: a deusa da caça não se fazia representar pela Artemisia vulgaris, mas sim por uma contrafacção importada (de onde haveria de ser?) da China, a Artemisia verlotiorum. Esta espécie foi dedicada a Jean-Baptiste Verlot (1816-1891), director do Jardim Botânico de Grenoble, por ter sido ele quem primeiro a distinguiu da A. vulgaris.

Foram duas as provas circunstanciais que nos levaram à identificação correcta: é sabido que a Artemisia verlotiorum floresce de Outubro a Novembro e que, sendo uma planta estolhosa, é capaz (ao contrário da A. vulgaris) de formar populações muito densas por reprodução vegetativa. E, para dissipar quaisquer dúvidas, eram notórios caracteres morfológicos diferenciadores como as inflorescências pendentes (as da A. vulgaris costumam ser erectas) e as folhas menos recortadas.

João do Amaral Franco, no vol. 2 da Nova Flora de Portugal, editado em 1984, assinala a Artemisia verlotiorum apenas no centro-leste do país, mas a sua distribuição actual é por certo muito mais ampla. Não é improvável que esteja em curso a substituição gradual da espontânea A. vulgaris pela sua congénere exótica: as duas espécies, além de morfologicamente próximas, têm preferências ecológicas equiparáveis. Conhecem-se em Portugal outros exemplos do mesmo fenómeno de "render da guarda": a Bidens tripartita, hoje em dia muito rara, foi arredada pela americana Bidens frondosa, com a qual é amiúde confundida; e a Lindernia procumbens, que poderá estar extinta na Península Ibérica, deu lugar à também americana Lindernia dubia.


Valença: meandros do rio Minho

07/12/2013

Erva benjamina



Galeopsis tetrahit L.


Não fossem as flores, e talvez não tivéssemos concedido um segundo olhar a esta planta. Não porque só gostemos de plantas notáveis da nossa flora, nem porque estejamos infectados pela altivez tonta de quem menospreza o que lhe parece, ou é, vulgar. A nossa pouca experiência de campo aconselha-nos prudência na apreciação do que encontramos e, à falta de mais saberes botânicos, cuidado no olhar. Mas as folhas desta planta parecem as de urtiga, da que pica e dói por largos minutos, e, se tivéssemos de o confirmar com os dedos, a vontade não responderia à chamada. Além disso, esta população estava à beira de uma estrada muito usada e com bermas descuidadas — e, num instante, sentenciámos a planta como oportunista, imigrante, a colonizar esperta um habitat estragado. Arrelia-nos que julguemos assim incorrectamente a presença de uma planta num ambiente deteriorado, supondo que lhe agrada e por isso não é boa rês. A verdade é que é a estrada que danifica o lugar, é ela a intrusa que o artificializa. À planta restou adaptar-se, para não desaparecer; sendo planta anual e tão escassos os registos actuais da sua ocorrência no nosso país, parece ter dificuldades em encontrar os lugares frescos e sombrios da sua predilecção.

Voltemos por isso à planta e observemos melhor a sua morada. Como diria qualquer bom vendedor de apartamentos em prédios com vista para uma auto-estrada, «está a cinco minutos do paraíso». Sendo certo que estamos com um pé na estrada, verdade é que logo atrás se vê uma magnífica clareira de bosque cortada por uma cascata miúda. Ladeiam-na, salpicados pela água, inúmeros exemplares de feto-do-botâo (Woodwardia radicans). Enfim, depois de mais uma sessão de fotos/elogios a este feto, atentámos nos detalhes da flor da Galeopsis, e notámos como é adorável: lábio superior acapelado com um penachinho no topo, protuberâncias cónicas na base, penugem a proteger o interior do tubo e laivos escuros na corola rosada a chamar os polinizadores. (O nome Galeopsis, atribuído por Lineu, alude a uma misteriosa semelhança com a doninha.)

O leitor pode ler aqui uma descrição sucinta desta planta, a que o autor juntou dados biográficos. Antes de fechar essa janela, anote que a população encontrada por Francisco Clamote está no Sabugal, na Beira Alta, região onde nem a Flora Ibérica nem a Nova Flora de Portugal assinalam a presença desta planta.

02/12/2013

Sabor de Outono



Colchicum multiflorum Brot.


Há plantas que parecem reduzir-se à simplicidade de uma flor, como se um romantismo exacerbado as levasse a viver só de beleza, recusando tudo quanto seja apenas utilitário. Porém, como elas não definham de uma tísica galopante, e antes reaparecem frescas ano após ano, é de suspeitar que guardem na despensa algum sustento de que se alimentam à socapa. Assim é com os Crocus e os Colchicum de floração outonal: não lhes vemos as folhas, mas elas existem. Para não estragar a pose etérea, só surgem algum tempo depois das flores. Os leigos ou distraídos nunca relacionam as flores acesas no Outono com os anónimos tufos de folhas na Primavera. Que o truque não funciona com observadores mais qualificados prova-o a existência destas fotos, tiradas no final de Outubro em Ferradosa (Alfândega da Fé), a 3 Km do rio Sabor. Miguel Porto, inventor e coordenador do portal Flora On, que por lá passou em Maio, não se deixou enganar pelo disfarce, e teve a generosidade de nos dar o alerta. As folhas do Colchicum multiflorum, com uns 30 a 40 cm de comprimento por 2 a 4 cm de largura, são uma versão menos robusta das da cebola-albarrã (Urginea maritima), outra planta bolbosa que pratica o desfasamento temporal entre floração e folhagem. Eram muitas as folhas que o Miguel viu, formando um tapete num bosque de freixos e amieiros, habitat sombrio pouco indicado para a Urginea. Quase enterrada no centro de uma roseta de folhas, a cápsula de um fruto acabou por desvendar a identidade da planta.

É altura de o leitor manifestar a sua estranheza: uma planta que se vê por todo o lado justifica uma viagem de centenas de quilómetros para ser observada? O leitor que nos perdoe a franqueza, mas está enganado. A planta que, entre Outubro e Novembro, se vê florida em prados e bosques de norte a sul do país é o açafrão-bravo, ou Crocus serotinus. As flores do Colchicum multiflorum, embora algo mais altas, têm de facto aparência semelhante, justificando o nome comum açafrão-bastardo. É porém avisado não usar a planta como condimento culinário, pois ela é a tal ponto venenosa que o gado, com uma intuição infalível para estas coisas, nunca lhe toca. Na verdade, quem por engano procure extrair-lhe o açafrão logo nota que as flores não dispõem do estilete ramificado, amarelo ou vermelho, de onde se obtém a iguaria. (Ressalve-se que o açafrão cultivado, diferente do açafrão-bravo, é o Crocus sativus.) O Colchicum e o Crocus também se distinguem pelo número de estames em cada flor: seis no primeiro contra três no segundo.

Contudo, a semelhança morfológica entre as duas plantas não é apenas superficial. Nos dois casos, o que vemos irromper do solo não é uma haste encimada por uma flor — é simplesmente uma flor, em regra até desprovida de pedúnculo. Aquilo que nos parece ser uma haste é um tubo oco por onde passa o longo estilete ligando o estigma ao ovário subterrâneo. Por isso os frutos surgem rente ao chão, aninhados no meio da folhagem. Este modo recatado de produzir frutos não favorecerá a dispersão de sementes a grandes distâncias; e, embora o Crocus serotinus seja comum, o mesmo não se pode dizer das duas espécies de Colchicum que são espontâneas em Portugal: além deste C. multiflorum, endemismo ibérico que só vimos em Trás-os-Montes e no Alto Alentejo (perto de Castelo de Vide), também ocorre o C. lusitanum, que tem tépalas com um padrão axadrezado e prefere substratos básicos.

01/12/2013

Semear Portugal

Em Portugal a jardinagem pública é uma arte perdida, substituída que foi pela rotineira manutenção de bisonhos espaços verdes. Quem quiser usufruir de um jardim colorido ou deita ele próprio mãos à obra ou visita os espaços naturais onde vivem as flores silvestres. As cores primaveris da serra dos Candeeiros ou do Barrocal algarvio (para citar apenas dois exemplos paradigmáticos) podem, na sua exuberância sem artifícios, servir de inspiração ao mais exigente dos jardineiros. Mesmo que a natureza não caiba toda entre os muros de um jardim, podemos ensaiar uma boa imitação, cultivando no nosso terreno as plantas da flora portuguesa com maior aptidão ornamental. Pois é sem dúvida bem mais gratificante termos um jardim que nos recorde os passeios pela serra do que uma coisa postiça preenchida com as novidades holandeses do garden center.

Para nos facilitar a vida, já que de facto as plantas portuguesas não estão à venda em hortos, o projecto Sementes de Portugal preparou um óptimo catálogo de sementes para venda. Só de sargaços e roselhas (como a da foto aí em baixo) já dá para compor um canteiro invejável. Mas a Crix e o João Gomes chegam ao requinte de disponibilizar sementes de plantas raras como a Aristolochia baetica, Cynara algarbiensis, Echinops strigosus, Iberis procumbens, Matthiola sinuata e Phlomis purpurea. A somar a tudo isto, lançaram um blogue que é já de consulta obrigatória para quem se interesse pela nossa flora espontânea.

De que está o leitor à espera para se fazer cliente?


Cistus crispus L.