Analfabetismo ambiental
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A nefasta peça de propaganda acima reproduzida foi publicada anteontem, dia 17 de Março de 2016, no suplemento Se7e da revista Visão. Por ela ficamos a saber, nós os continentais, que, se quisermos ter em casa uma amostra da genuína flora açoriana, devemos dirigir-nos ao viveiro mais próximo para comprar uma hortênsia — uma planta que, segunda a mesma revista, faz «parte da paisagem natural de todas as ilhas dos Açores». É de bradar aos céus. Todos os que vivem nos Açores ou visitam o arquipélago deveriam já saber que a Hydrangea macrophylla não só não é açoriana como é uma invasora capaz de causar os maiores estragos às plantas indígenas. Acontece que essa necessária pedagogia, por muito empenhada que seja, é permanentemente boicotada por uma indústria turística que promove uma imagem estereotipada dos Açores, vendendo paisagens humanizadas com pastagens, vacas e hortênsias como se de natureza em estado puro se tratasse. Não era contudo de esperar, de uma revista como a Visão, que publica anualmente uma edição verde sobre boas práticas ambientais, tamanho grau de iliteracia. Por isso escrevi à revista a carta que a seguir transcrevo:
«No suplemento Se7e da Visão de 17/III/2016, as jornalistas Florbela Alves e Susana Lopes Faustino, ao apresentarem as hortênsias como representantes da flora açoriana e "parte da paisagem natural de todas as ilhas dos Açores", cometem um erro de palmatória capaz de descredibilizar todo o trabalho de sensibilização ambiental em que a Visão se tem regularmente empenhado.
A hortênsia (nome popular da Hydrangea macrophylla) é uma planta originária do Japão, e é tão açoriana como o eucalipto é português. Foi introduzida em Portugal e em muitos outros países ocidentais em meados do século XIX como planta de jardim. Nos Açores ganhou popularidade não tanto pelas qualidades ornamentais mas por ser imbatível na formação das sebes impenetráveis que dividem as pastagens e marginam estradas e caminhos. O azul das hortênsias sublinhando o traçado sinuoso das estradas encantou os visitantes e, com o crescimento do turismo, acabou por se tornar símbolo dos Açores. Um símbolo equivocado e perigoso de que o arquipélago deveria ser capaz de se libertar sem que o turismo sofra com isso. Em Viana do Castelo, afinal, também deixou de se fazer (e ainda bem!) a Festa da Mimosa, e não consta que a capital do Alto Minho sofra hoje com falta de visitantes.
Bastaria a circunstância de a hortênsia não ser açoriana para ser estranho elegê-la como símbolo do arquipélago. Há muitas plantas genuinamente açorianas, e não menos bonitas, que cumpririam essa função com muito mais propriedade. Entre elas avulta a endémica vidália (Azorina vidalii), uma planta que dá flores que fazem lembrar sinos e não se parece com nenhuma outra deste mundo. Mas, além de não fazer parte da "paisagem natural" das ilhas, tratando-se em vez disso de um acrescento postiço, a hortênsia contribui activamente para a degradação dessa mesma paisagem, pondo em risco alguns dos últimos redutos da vegetação nativa ao invadir caldeiras, linhas de água e florestas naturais. A rocha dos Bordões na ilha das Flores e a Caldeira da ilha do Faial, ambas pintadas de alto a baixo no Verão com o azul das hortênsias, fornecem prova assustadora da perigosidade deste arbusto para a flora endémica do arquipélago.
O turista comum, mal informado ou desinformado, enche os olhos com o azul das hortênsias e não quer saber de mais nada. Está no seu direito. Mas um jornalista tem obrigação de saber um mínimo sobre aquilo que escreve, pois a sua função não é disseminar a ignorância mas sim informar quem o lê. Há nos Açores quem se preocupe com a educação ambiental das gerações mais novas (e também das mais velhas), ensinando-as a conhecer o genuíno e tão ameaçado património natural do arquipélago. Ao publicar este pedaço de desinformação, a Visão torpedeia o trabalho dos educadores e dá força à ignorância.»
A hortênsia (nome popular da Hydrangea macrophylla) é uma planta originária do Japão, e é tão açoriana como o eucalipto é português. Foi introduzida em Portugal e em muitos outros países ocidentais em meados do século XIX como planta de jardim. Nos Açores ganhou popularidade não tanto pelas qualidades ornamentais mas por ser imbatível na formação das sebes impenetráveis que dividem as pastagens e marginam estradas e caminhos. O azul das hortênsias sublinhando o traçado sinuoso das estradas encantou os visitantes e, com o crescimento do turismo, acabou por se tornar símbolo dos Açores. Um símbolo equivocado e perigoso de que o arquipélago deveria ser capaz de se libertar sem que o turismo sofra com isso. Em Viana do Castelo, afinal, também deixou de se fazer (e ainda bem!) a Festa da Mimosa, e não consta que a capital do Alto Minho sofra hoje com falta de visitantes.
Bastaria a circunstância de a hortênsia não ser açoriana para ser estranho elegê-la como símbolo do arquipélago. Há muitas plantas genuinamente açorianas, e não menos bonitas, que cumpririam essa função com muito mais propriedade. Entre elas avulta a endémica vidália (Azorina vidalii), uma planta que dá flores que fazem lembrar sinos e não se parece com nenhuma outra deste mundo. Mas, além de não fazer parte da "paisagem natural" das ilhas, tratando-se em vez disso de um acrescento postiço, a hortênsia contribui activamente para a degradação dessa mesma paisagem, pondo em risco alguns dos últimos redutos da vegetação nativa ao invadir caldeiras, linhas de água e florestas naturais. A rocha dos Bordões na ilha das Flores e a Caldeira da ilha do Faial, ambas pintadas de alto a baixo no Verão com o azul das hortênsias, fornecem prova assustadora da perigosidade deste arbusto para a flora endémica do arquipélago.
O turista comum, mal informado ou desinformado, enche os olhos com o azul das hortênsias e não quer saber de mais nada. Está no seu direito. Mas um jornalista tem obrigação de saber um mínimo sobre aquilo que escreve, pois a sua função não é disseminar a ignorância mas sim informar quem o lê. Há nos Açores quem se preocupe com a educação ambiental das gerações mais novas (e também das mais velhas), ensinando-as a conhecer o genuíno e tão ameaçado património natural do arquipélago. Ao publicar este pedaço de desinformação, a Visão torpedeia o trabalho dos educadores e dá força à ignorância.»
8 comentários :
Terão escrito, sentados no sofá, como quem faz conversa mole de café?
Tão ou mais revelador da ignorância patente e que magistralmente denuncias, será a evidência de um facilitismo que dá a volta à própria idiotia; possivelmente um facilitismo a tornar-se, esse sim, endémico.
Abraço para vós.
Carlos
Muito bem!
O vosso artigo está impecável e corrige a questão das hortenses comme il faut. As hortenses podem até ser um mal, como é afirmado na vossa correcção sobre vegetação própria das ilhas. Mas não se livram os açorianos e todos nós de que sejam parte da paisagem - porque são, estão lá. Não interessa se não são planta originária. Interessa que estão, de facto, na paisagem, pertencem por estar. Se um dia as arranquem da beira dos caminhos e de serem muros que dividem courelas de verde, então sim, que deixem de ser assinaladas.
Tenho imensa pena que a sua acção seja tão nefasta. São lindas. E a paisagem ganha um debrum florido e encantador. Um lugar onde cercas e muros são maciços floridos é como um casamento de amor, ama-se o que prende e por prender. Ok. É a minha opinião.
Obrigado pelo comentário, Francisco
Carlos:
Tens toda a razão. O facilitismo e a simplificação caricatural são uma marca da nossa época, pois nunca como hoje a ignorância teve tantos meios para se fazer ouvir em pé de igualdade com quem sabe alguma coisa. Falo das "redes sociais", claro, mas a imprensa parece afectada pelo mesmo mal.
Bea:
É indiscutível que as hortênsias fazem parte da paisagem das ilhas. Do que não fazem parte é da paisagem natural. A paisagem dos Açores que é conhecida e admirada pela maioria dos turistas é de facto muito verde, mas é uma paisagem artificial, construída pelo homem. A verdadeira "paisagem natural" das ilhas é desconhecida ou desprezada por quase todos, e artigos como este, em que tudo quanto é verde ou florido é tido como natural, não ajudam a proteger o pouco que resta da vegetação indígena nos Açores.
A carta enviada à revista é importantíssima para esclarecer e ilustrar os que são desconhecedores ou distraídos.
O conflito entre a paisagem construída pela actividade humana e a natureza silvestre é permanente. Na dinâmica natural também existem permutas de invasores que se instalam e ocupam espaço de outros, a velocidade de transformação é que é habitualmente mais lenta. Estamos condenados à extinção; mas é um desperdício que como seres humanos nos empenhemos em acelerar tanto o processo.
Paulo,
Confesso que fico com pena das pessoas que cometem estas gafes, até porque em princípio terão a melhor das intenções.
Claro que os erros não devem passar em branco...
A dado momento a revista jardins, que aliás assino, publicou um artigo sobre a construção de lagos. Fiquei pasmado quando, entre a vegetação a instalar, aconselhavam o emprego do jacinto de água, uma exótica invasora, cuja simples posse é proibida por lei! Na altura também não fiquei calado.
Um abraço.
Paulo,
Concordo em absoluto com a vossa opinião. Podem ser muito bonitas mas "nem tudo o que luz é ouro". A carta que enviaram à Visão diz tudo e muito bem explanado. Espero que eles encontrem uma forma de corrigir um erro tão grave de desinformação. Abraço /Flores do Areal
Força contra a desinformação. A cultura e a beleza não são indissociáveis!
Abçs
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