Sapinho fimbriado
A ilha de Fuerteventura tem uma espinha dorsal montanhosa que, por ser intermitente e de altura moderada, não representa obstáculo sério à deslocação entre a costa oriental, virada para África, e a costa ocidental aberta ao infinito azul. As estradas esquivam-se agilmente por vales e planícies, servindo o recorte das montanhas para proporcionar um horizonte menos monótono a quem por elas transite. Com poucas excepções, os cumes mais escarpados não têm acesso por estrada, e quem queira ascender a eles terá que se lançar em caminhadas que o calor e a falta de sombra podem tornar penosas. A montanha Cardón, erguendo-se acima dos 660 metros de altitude, está situada a sul da vila de Pájara, e é a última elevação importante antes do istmo arenoso que faz a ligação à península de Jandía. Subindo por um trilho não muito declivoso, são apenas dois quilómetros para chegarmos a uma pequena ermida encravada na vertente oeste da montanha, num lugar onde as paredes rochosas ressumam uma humidade permanente. É o toque de reunir para umas tantas plantas de outro modo incapazes de sobreviver à aridez das encostas circundantes. Até a avenca (Adiantum capillus-veneris), que tão bem conhecemos de muros e fontes em latitudes mais benignas, teve a arte e ousadia de aqui se instalar. A ela se juntam pequenas amostras de vegetação endémica, com destaque para o malmequer arbustivo Asteriscus sericeus e para a crucífera Crambe sventenii, nenhum dos dois com disposição para florir no período natalício, o da nossa visita a Fuerteventura. Lá em cima, na crista rochosa a que só chegaríamos, e com esforço redobrado, se tivéssemos tomado outro trilho, a cobertura vegetal anunciava-se mais rica — valeria bem a visita em época do ano mais propícia, mas desta vez reservámos todo o nosso fôlego para a subida ao pico da Zarza.
Sapinho é o nome comum em português para as plantas do género Spergularia e outras com elas aparentadas. São plantas rasteiras, com folhas lineares, carnudas, e flores pequenas, de cinco pétalas, em tons que vão do branco ao rosa ou ao roxo. Em Portugal continental, a Spergularia purpurea é muito frequente em sítios secos e pedregosos, aparecendo até em caminhos e outros sítios pisoteados; em rochas de beira-mar, surge a S. rupicola (ou, se estivermos nos Açores, a S. azorica); em sapais e estuários, aparecem a S. media e a S. marina.
Embora preferíssemos ter encontrado maior variedade de plantas floridas, foi reconfortante que tenha sido um sapinho a dar um fugaz apontamento de cor à nossa subida à montanha Cardón. Com base lenhosa e flores de um rosa vivo, a Spergularia fimbriata distingue-se facilmente das suas congéneres com que estamos familiarizados, não deixando de ser óbvia a sua inscrição na mesma linhagem. Dessa vez vimos apenas um exemplar, mas é de supor que mais houvesse a altitudes mais elevadas, e atestando isso mesmo a planta novamente se deixou ver (não em flor) no pico da Zarza. É provável, assim, que em Fuerteventura a espécie se restrinja aos picos montanhosos, mas nas outras ilhas onde ocorre (Tenerife, Grã-Canária e Lanzarote) a sua ecologia diversifica-se, e a planta surge também em zonas de baixa altitude próximas da costa.
A S. fimbriata não é exclusiva das Canárias, pois tem presença reportada em Marrocos e na Península Ibérica. De facto, ela integra oficialmente a flora portuguesa, por ter sido, em várias ocasiões (todas remontando à década de 80 do século passado), encontrada nas Berlengas e na Ria Formosa. É de recear que esteja extinta no nosso país, mas, se não for esse o caso, talvez um controlo mais empenhado do chorão (Carpobrotus edulis) nas Berlengas possibilite o seu reaparecimento.