28/07/2023

Morganheira das Baleares



Quando encontramos uma planta que nunca vimos, podemos ainda assim situá-la numa linhagem de plantas conhecidas se dispusermos de um catálogo (nem que seja mental) suficientemente abrangente. É uma boa ajuda se estivermos num território que, pela proximidade geográfica, se assemelhe a outros que habitualmente frequentamos. Se, de repente, nos víssemos perdidos na Amazónia ou em alguma ilha da Polinésia, de pouco nos valeria o nosso convívio anterior com o reino vegetal, exclusivamente eurocêntrico, não fossem a Madeira e as Canárias terem-lhe acrescentado um cheirinho de África. Estaríamos embrenhados no desconhecido, e o nosso vocabulário para falar de plantas regrediria ao estádio infantil: árvore grande ou pequena, arbusto com ou sem espinhos, flor amarela ou vermelha.

Visitar Maiorca, onde fomos pela primeira vez em Dezembro do ano passado, foi em grande parte uma confortável experiência de reencontro com conhecidas de longa data, à mistura com ingredientes novos para despertar o interesse pela descoberta. Os bosques de azinheiras que cobrem as encostas da serra de Tramuntana são os mais extensos e bem conservados que alguma vez vimos — mas não deixam de ser azinheiras, e sentimo-nos em casa por estarmos rodeados de árvores a que sabemos dar nome. É neste aconchego doméstico que acolhemos novidades como quem muda a decoração do lar: são enfeites novos, mas não muito diferentes dos antigos e adaptados ao mesmo gosto.

Euphorbia pithyusa L.


Neste jogo de inovar dentro da tradição realça-se o comportamento exemplar das eufórbias. Vimos em Maiorca muita Euphorbia characias, que no nosso país conhecemos bem da Terra Quente transmontana e dos calcários do centro-oeste; por ser Inverno, não estava em flor, mas foi agradável reencontrá-la. Ao lado dela, uma outra elegante eufórbia arbustiva, para nós desconhecida, dava discretamente o toque de diferença; e, ainda que fora de época, insistiu em mostrar-nos algumas das suas flores para que pudéssemos identificá-la. Cumprida com diligência essa tarefa logo que pudemos consultar bibliografia apropriada, concluímos que se tratava da Euphorbia pithyusa. Bastante parecida com a morganheira-das-praias, mas com diferenças nas inflorescências (comparem-se os nectários na quarta foto acima com os desta foto), no porte arbustivo (atinge os 80 cm de altura), no formato mais alongado das folhas e na ecologia, a Euphorbia pithyusa distribui-se pelo Mediterrêneo ocidental: ilhas Baleares (mas não Península Ibérica), Sardenha, Córsega, litoral de França, Argélia e Marrocos. Em Maiorca, onde é relativamente abundante, vive sobretudo em clareiras de bosques no norte da ilha, mas em Menorca prefere o litoral e aí as plantas apresentam um hábito mais rasteiro. O epíteto pithyusa, atribuído por Lineu, dever-se-á a uma algo forçada semelhança com certos pinheiros (pithys em grego), circunstância a que também alude o nome da planta em francês, Euphorbe sapinette.

21/07/2023

Violeta de La Palma



La Palma, La Isla Bonita, tem um formato triangular e constitui com El Hierro o par de ilhas mais jovens, e mais ocidentais, do arquipélago das Canárias. Localizada aproximadamente no baricentro deste triângulo, e a dominar o norte da ilha, a caldeira do vulcão Taburiente é uma bacia erodida com 9 quilómetros de diâmetro, em cujo cume se atinge o ponto mais alto desta ilha: Roque de los Muchachos, a cerca de 2420 metros de altitude, acima das nuvens trazidas pelos ventos alíseos e, por isso, com um clima continental seco.

A actividade vulcânica mais recente em La Palma (em 1971 e em 2021) ocorreu longe deste centro elevado, nos vulcões Teneguía e Tajogaite, a sul e sudoeste da ilha, respectivamente. E é precisamente a relativa tranquilidade geológica da caldeira do Taburiente que ali assegura um habitat propício à instalação de telescópios gigantes de olhar apurado, que tiram partido de uma atmosfera que minimiza as deformações ópticas e de regras na iluminação pública que reduzem a poluição luminosa, como dita a Declaração da Unesco sobre a defesa do céu nocturno e do direito à luz das estrelas. Não deixa de ser surpreendente a necessidade de legislar para defender este nosso direito.

Essas condições naturais são igualmente benéficas à vegetação de alta montanha, seja o matorral que aprecia solo pedregoso árido e a quem basta a humidade que as escórias vulcânicas recolhem do orvalho, sejam as herbáceas das ladeiras ressumbrantes do interior da caldeira, um dos nichos de vegetação rupícola mais interessantes do arquipélago das Canárias. E, tal como o Pico do Teide (acima dos 2100 m) e o Maciço de Anaga (entre os 700 e os 900 m), ambos em Tenerife, a caldeira do Taburiente tem uma violeta só sua, que habita gretas e terrenos pedregosos secos entre os 1900 e os 2400 m de altura, e floresce de Abril a Maio.

Viola palmensis Webb & Berthel.


Trata-se de uma herbácea perene (tal como a do Teide; a violeta de Anaga é vivaz), com talos lenhosos, que pode chegar aos 25 cm de altura. Explorando fotos dos detalhes, a violeta de la Palma distingue-se bem das violetas do Teide e de Anaga pois tem folhas pecioladas, um tom claro de roxo nas pétalas e um esporão delgado. As flores são maiores do que as da violeta do Teide, mas tal como nesta o lábio inferior exibe uma mancha amarela sublinhada por uns (leves) tracinhos escuros. Contudo, só a violeta de La Palma forma tapetes azulados que cobrem vastas encostas de pedra expostas ao sol (e às outras estrelas).

11/07/2023

Duo de escrofulárias



Embora os representantes mais emblemáticos da flora das Canárias (como as suculentas do género Aenonium ou os malmequeres do género Pericallis) tenham um ar decididamente não europeu, não é raro depararmo-nos nessas ilhas com plantas endémicas de aspecto familiar, variações daquelas que conhecemos bem no nosso rectângulo ibérico. Trazemos dois exemplos de Tenerife para ilustrar essa asserção, ambos do género Scrophularia. É um género a propósito do qual não nos podemos queixar de partilhas desiguais: mais de metade das espécies ibéricas (13 em 23) ocorre em Portugal continental, sendo duas delas endémicas do nosso território, e a esse total há que adicionar quatro espécies madeirenses (incluindo três endémicas). Sobre as Canárias levamos clara vantagem, pois são apenas seis as espécies de Scrophularia referenciadas no arquipélago. Contudo, três dessas espécies são endémicas das ilhas; e, das duas que hoje mostramos (ambas endémicas), uma ainda se divide em três subespécies.

Scrophularia glabrata Aiton


A Scrophularia glabrata (fotos acima), alegadamente conhecida como fistulera de cumbre, vive nas zonas elevadas das ilhas de Tenerife e La Palma. As suas flores tubulares, de um vermelho carregado, cumprem à risca o figurino do género, mas o hábito arbustivo e profusamente ramificado da planta distingue-a de espécies continentais herbáceas como a S. scorodonia a S. auriculata. Também são peculiares as folhas estreitas, coriáceas e luzidias, de margens crenadas e base assimétrica. Mais do que as minúcias morfológicas, é o local de residência que a torna inconfundível: nos cumes pedregososos do Teide, a pleno sol ou refugiando-se em fendas de grandes rochas, é a única Scrophularia equipada para sobreviver em habitat tão agreste. O que faz com indiscutível sucesso, florescendo praticamente durante todo o ano.

Scrophularia smithii Hornem. subsp. smithii


Pelas folhas grandes e pela inflorescência piramidal, bem como pela preferência por habitats sombrios e boscosos, a Scrophularia smithii, também endémica das Canárias, afigura-se-nos mais próxima das espécies europeias do género do que a sua conterrânea de maiores altitudes. As flores esverdeadas acabam por enfraquecer esta argumentação, uma vez que flores dessa cor são inauditas em espécies europeias — ainda que a Scrophularia vernalis (existente em grande parte da Europa para lá dos Pirenéus) dê flores amarelas. Em todo o caso, a coloração das flores não costuma ser factor decisivo na discriminação das espécies, talvez porque, no material seco de herbário com que os botânicos tradicionalmente trabalhavam, todas as cores se reduzem ao castanho da palha seca. Assim, esta Scrophularia smithii de flores verdes foi agrupada com duas outras escrofulárias canarinas de flores vermelhas convencionais, que a ela ficaram subordinadas como subespécies; são elas a subsp. langeana (de La Palma, La Gomera e Tenerife) e a subsp. hierrensis. A subespécie smithii, que integra apenas plantas de flores verdes como as que mostramos nas fotos, é exclusiva da laurissilva de Anaga, em Tenerife. Se quisermos fingir-nos falantes de castelhano, podemos chamar-lhe fistulera tinerfeña, mas é possível que ninguém nos entenda e isso não se deva apenas à nossa fraca pronúncia.

04/07/2023

Linho das fadas

A povoação de Ribadelago, na província de Zamora, é pequena e sossegada. São poucas as casas, aninhadas nas margens do rio Tera, mas há inúmeros percursos para os visitantes explorarem o vale pedregoso do rio, o Parque Natural do lago de Sanábria e as serras de Segundera e de Cabrera que o circundam. À entrada da povoação, porém, está uma estátua tenebrosa que nos detém: representa uma mulher no topo de um pedregulho, com roupa pesada de Inverno e um lenço a encobrir-lhe as feições, que olha perplexa para a paisagem enquanto segura bem apertada uma criança assustada ao colo. Está ali como uma homenagem, mas também como uma lição.

Depois de vários dias de chuva copiosa no início do ano de 1959, o dique de contenção da barragem hidroeléctrica de Vega de Tera, no Salto de Moncabril, rebentou na madrugada de 9 de Janeiro. Os sobreviventes aterrorizados falaram de um enorme estrondo a meio do sono, de sentirem a terra tremer sob os pés aflitos e de ouvirem um murmúrio cada vez mais próximo e ameaçador. Nesses minutos de expectativa, com a população paralisada pelo susto, o caudal do rio Tera desceu o canhão ganhando velocidade, e um muro alto e impetuoso de água atingiu de chofre a aldeia. A enxurrada levou consigo casas, gado, árvores e gente, até os sepultar no fundo do lago de Sanábria. Do próspero futuro prometido pelos promotores da barragem, responsáveis pela construção defeituosa do dique, restaram vítimas, ruínas e um chão desolador que, soterrado por toneladas de lodo, demorou anos a ter de novo serventia.





Quase setenta anos depois, o rio junto à aldeia reconstruída é manso e a vegetação recuperou inteiramente da catástrofe. E foi num dos caminhos empedrados que segue o curso do rio que vimos, no final de Junho, este linho de flores brancas.

Linum catharticum L.


Esta é uma herbácea anual de pequeno tamanho (os talos dos exemplares das fotos não tinham mais de 25 cm de altura) e pouco ramificada, difícil de detectar se não estiver em flor. As flores são pequeninas, não ultrapassando os 5 mm de diâmetro, mas exibem um centro amarelo bastante atraente. Esta espécie aprecia lameiros húmidos, orlas de bosque e fissuras de rochas na proximidade de riachos. Distingue-se das restantes espécies de Linum que ocorrem na Península Ibérica por ter quase todas as folhas opostas, e das restantes espécies conhecidas em Portugal por ter as pétalas brancas (em Espanha há outras duas com flores desta cor, o L. suffruticosum e o L. tenuifolium). Do Linum catharticum conhecem-se vários núcleos no nordeste de Trás-os-Montes, e há um registo recente da sua presença na serra do Gerês.