Gigantes da montanha
Há dois gigantes nesta história, um vegetal e outro de pedra. Poderia haver mais em ambas as categorias, mas história curta tem de ser avara em protagonistas, sob pena de se dispersar. Para visitarmos os gigantes no seu sono invernal, dirigimo-nos ao cruzamento da Pedra Bela, na Serra do Gerês. Primeiro vamos ao miradouro espreitar a albufeira dos três rios, duas pontes e muita névoa a preencher o fundo de um caldeirão de paredes verdejantes. Só depois nos metemos por um caminho florestal entre pinheiros-silvestres de folhagem tão delicada que parecem transplantados de um jardim japonês. Não falta sequer o riachinho meandroso a fazer de rio em miniatura. O caminho hesita, dobra-se sobre si mesmo, encavalita-se, encolhe-se para se esgueirar entre dois penedos. Dir-se-ia que perdeu o norte, mas lá o reencontra, e é mesmo para norte que ele nos conduz. Há um troço já tranquilo, rectilíneo, que acompanha, pelo lado nascente, uma cerca de arame delimitando um curral rectangular com algumas centenas de metros de extensão. Estamos a 930 metros de altitude, é Inverno, não há animais a pastar. Junto ao rústico abrigo onde pernoitavam pastores mora o primeiro gigante. Que, ao que parece, é do sexo feminino — chamam-lhe carvalha das éguas — e é afinal constituído por dois indivíduos autónomos, dois veneráveis carvalhos talvez unidos pelos laços do matrimónio para formarem uma só alma-árvore. Se aqui até os dias são gelados, como serão as noites? Dentro do curral não há mais árvores, e é natural que eles (ou elas?) busquem aconchego nos ramos um do outro.
O segundo gigante não mora longe, mas o resto do caminho até lá revela-se problemático, com descidas onde temos de saltitar de pedra em pedra para não metermos o pé na poça. Por fim, desembocamos num terreiro plano, amplo, com um pinhal à nossa esquerda, pastagens semeadas com rochas à nossa frente e, à direita, uma elevação coroada por um afloramento granítico. Coçamos a grenha para saber por onde continuar, pois não há qualquer trilho claramente marcado no chão. Vêem-se os montículos de pequenas pedras sobrepostas com que temos deparado amiúde no nosso caminho: chamam-se mariolas, e eram usadas pelos pastores para se orientarem. Se até aqui não nos enganaram, a solução é confiar nelas. E é para a direita — para nascente — que as mariolas nos puxam. Estamos na Lomba do Vidoeiro, cruzamos outro curral com um abrigo ainda mais mal-amanhado do que o anterior, e eis-nos a caminho do vale da Teixeira. Mas não vamos tão longe, pois o dia é curto e há que retroceder. Além disso, acabámos de encontrar o segundo gigante.
No caso dele não é muito apropriado falar de sono invernal. O sono ininterrupto que o acomete nesta estação não é assinalado por nenhuma descontinuidade em relação ao sono que já vem de tempos imemoriais. De cabeça enterrada nos ombros, imerso em sonhos que se materializam em brumas, tem pinheiros a crescer-lhe nos braços, nas costas e na nuca. Há também urzes sorrateiras que se aproveitam da sua macambúzia imobilidade para lhe subirem aos ombros. Ficamos a contemplá-lo de longe, com respeito, sem pretender imitar o atrevimento das plantas. Até que chega a altura de lhe virarmos as costas para nos irmos embora.
1 comentário :
Simples, belo, e interessante.
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