19/04/2011

Com nuvens e dentes



Erythronium dens-canis L.

Next to clouds / even a stone seems like a brother.
Wislawa Szymborska (trad. S. Baranczak e C. Cavanagh)

Habituados à intermitência do sono diário de algumas horas, descanso que muitos associam à preguiça e que nos exige, quando termina, o fortalecimento de uma lauta refeição, causa-nos estranheza que uma planta tenha meios e vontade para hibernar vários meses. Dir-se-ia condenada a perecer esfomeada sob os rigores da neve, apodrecendo com a humidade ou definhando pela escuridão persistente. Mas não. A natureza dotou algumas plantas de pequenas despensas subterrâneas e, ainda que de lá só retirem o mesmo requentado pequeno-almoço dias a fio, esse é alimento suficiente para as manter em repouso até que, mal o sol se firme, a memória as faça renascer.

A herbácea da foto, uma das mais bonitas da flora portuguesa, é um endemismo europeu que recorre a esse recolhimento de Inverno pois vive junto a neveiras e pontos elevados de serras. A floração é breve e as flores em geral solitárias; é mais fácil de identificar pelas folhas basais pintalgadas de vermelho ou amarelo, que se mantêm à superfície até ao Outono para reencher a despensa e perpetuar o seu ciclo vivaz. Se a chuva o permitir, podem  ver-se, até ao fim de Abril, as flores pendentes com cerca de 3 cm de comprimento, tépalas violáceas ou rosa-púrpura (muito raramente brancas) e base variegada (ou amarela, na versão pálida). A designação inglesa, dog's tooth violet, alude a esta morfologia e à forma do bolbo que, da cor do esmalte, lembra de facto um dente; a portuguesa, cebola-dente-de-cão, é menos colorida mas igualmente fantasiosa. Há registo da presença desta liliácea nas terras altas e frias do Minho, Trás-os Montes, Beira Alta e Beira Litoral.

Acompanhámos esta planta durante um mês num pico da serra do Açor. Enquanto a chuva e a névoa densa não se dissiparam, a população a que ela pertence parecia reduzida a uma dúzia de indivíduos mirrados e a alguns bolbos cilíndricos, embora avantajados (com uns 5 cm de comprimento) e por isso salientes no torrão. Na última visita, contudo, a luminosidade e o calor incipiente fizeram surgir inúmeros pares de folhas quase-opostas por toda a encosta, alguns já a exibir a haste da flor que, ingrata, não nos mostrou a elegante postura deflexa.

Sem comentários :