A cultura do milho no Baixo Vouga
Há plantas que, não tendo interesse económico para quem cultiva a terra, assumem preferências ecológicas que as fazem depender dos ciclos de sementeiras e colheitas, fazendo-se convidadas em lugares onde as práticas agrícolas reconstroem ou conservam os habitats a que elas se afeiçoaram. Algumas tornam-se infestantes indesejáveis, outras acrescentam cor e naturalidade a uma paisagem artificial, outras ainda são tão discretas que nem sequer damos pela sua presença. Os fetos da família das Marsileáceas, que engloba os géneros Marsilea e Pilularia, incluem-se nesta última categoria. Gostam de ficar submersos até ao início da Primavera; mas, para produzirem os esporocarpos que asseguram a sua propagação, exigem que o nível de água baixe, e de preferência se reduza a zero, à medida que o Verão se aproxima. Os campos onde o arroz é cultivado têm por hábito cumprir estes requisitos, e por isso a Pilularia globulifera, tanto em Portugal como noutros pontos da sua distribuição (que é exclusivamente europeia), costumava dar-se bem em arrozais. Se, porém, num país onde tanto arroz se come, o cultivo do cereal não está em risco, o mesmo não acontece com este minúsculo feto, certamente vulnerável a práticas agrícolas modernas como o uso de químicos e de maquinaria pesada.
Em Portugal há registos antigos da Pilularia globulifera no litoral português ente o Sado e o Cávado, com especial incidência no Baixo Vouga. É verdade que as suas frondes filiformes, com 5 a 10 cm de comprimento, se podem facilmente confundir com tufos de gramíneas, conquanto um observador mais atento note que as folhas mais jovens têm as pontas caracteristicamente enroladas; mas, nos locais onde ocorre, geralmente em lugares abertos sobre substratos ácidos, ela pode forrar vários metros quadrados de terreno, e não escapará ao olho atento dos especialistas. A menos que os botânicos portugueses se tenham desinteressado dela, é de recear que a quase ausência de observações da erva-das-pílulas (nome acabado de inventar, inspirado pelo inglês pillwort) nas últimas décadas signifique que ela está em vias de desaparecer do nosso país. Este «quase» que introduzimos na frase é mérito de Rui Soares: graças a ele, que encontrou a planta na orla de um campo de milho entre Cacia e Angeja, e teve a amabilidade de nos avisar, ainda não foi em 2013 que lhe foi passada a certidão de óbito.
Acontece que não é o milho a companhia ideal da erva-das-pílulas: ela sempre deixou claro que prefere o arroz, cultura que antes predominava nestes campos baixos e frequentemente inundados. A drenagem dos terrenos e a substituição das culturas significa de facto uma condenação a muito breve prazo. Talvez o reaparecimento da planta em 2013 seja apenas um último estertor, sem direito a encore nos anos vindouros. Por altura da nossa primeira visita, no início de Maio, alguns campos haviam já sido lavrados para a plantação do milho, mas aquele onde morava a Pilularia teria beneficiado de uma moratária por estar ainda muito encharcado. Quando, no fim de Junho, regressámos com intenção de fotografar os esporocarpos (as tais minúsculas pílulas, com 3 a 4 mm de diâmetro, que surgem junto ao rizoma e justificam o nome da planta), já o campo fora revolvido por tractores e o milho plantado em rigoroso alinhamento. Da Pilularia não sobrava nada.
Se estivéssemos num país onde a protecção da biodiversidade passasse do discurso à prática, esta (re)descoberta seria notícia de primeira página. Os organismos de protecção da natureza acorreriam alvoroçados, e ninguém consideraria descabido que o Estado ou alguma associação conservacionista financiassem o proprietário de um terreno de um ou dois hectares para assegurar a sobrevivência da espécie. Sendo as coisas como são, ninguém mexerá uma palha, muito menos uma espiga de milho, e o achado merecerá quando muito um parágrafo adicional no (eternamente adiado) Livro Vermelho da Flora Vascular Portuguesa.