Dormir é viver
São muitas as plantas que ficam reduzidas a bolbos subterrâneos durante nove ou dez meses em cada ano. Vivas mas adormecidas, preparam-se para a glória breve que é o despontar anual para a luz do sol. As romúleas, florescendo logo nos primeiros meses do ano, quase nos passam despercebidas, ainda que sejam comuns de norte a sul do país. Saem da toca quando ainda estamos recolhidos, e regressam a ela quando nos preparamos para sair. Não é um desencontro infeliz, pois elas dispensam bem a nossa atenção, bastando-lhes que os insectos polinizadores para os quais se enfeitam respondam à convocatória.
Em Portugal ocorrem espontaneamente apenas quatro espécies de Romulea, o que é motivo de embaraço se compararmos com as 60 ou mais espécies que são nativas da África do Sul. Ainda assim, a nossa diversidade é suficiente para por vezes confundir botânicos tanto amadores como profissionais. A espécie mais comum, R. bulbocodium, tem uma ecologia muito variada e pode apresentar flores que vão de um roxo carregado a um lilás pálido, chegando mesmo a ser brancas. Ao longo do litoral norte, ocorre uma segunda espécie, a R. clusiana, que só se distingue da anterior (com a qual muitas vezes convive) pelas flores maiores e mais vistosas. Se atendêssemos apenas ao número de registos no portal Flora On, as duas restantes espécies — R. columnae e a que hoje apresentamos, R. ramiflora — seriam muito raras no nosso país. Conclusão algo precipitada, pois ao surgimento fugaz típico do género as romúleas juntam a dificuldade de identificação: pode haver quem as veja, mas não as reconheça; ou, por causa da grande variabilidade dentro de cada espécie, não esteja seguro do que vê. Arrumar o mundo vegetal em espécies estanques, com fronteiras bem definidas, é uma construção humana que nem sempre se ajusta à realidade.
Não é pela cor das flores nem pelo seu tamanho, em ambos os casos à roda dos 2 ou 3 cm, que a Romulea ramiflora se diferencia fiavelmente da R. bulbocodium. O carácter distintivo mais importante é que na primeira as anteras são mais altas do que o estilete, envolvendo-o e ocultando-o, e na segunda a relação inverte-se, com o estilete claramente destacado das anteras (como se vê nesta foto). Outra diferença assinalável, a confirmar à lupa, é que na R. bulbocodium a bractéola na base da flor é formada por uma membrana transparente (os botânicos dizem-na escariosa; pode vê-la aqui), enquanto que na R. ramiflora a bractéola é verde, podendo no entanto ter uma margem "escariosa" mais ou menos estreita (quarta foto em cima). Como tira-teimas, pode ainda notar-se que na R. ramiflora as três tépalas mais externas têm um verso de tonalidade esverdeada, e que na R. bulbocodium o tom é escuro, entre o roxo e o castanho.
Por muito cristalino que pareça este receituário, fica o leitor avisado de que são frequentes os casos em que ele se revela ineficaz, pois as romúleas são useiras e vezeiras em desobedecer às especificações dos manuais. Depois de muito falso alarme, só umas romúleas de Salir do Porto (não as que existem no local da foto abaixo), que visitámos no final de Fevereiro para ver um endemismo lusitano, é que passaram no teste para serem chamadas R. ramiflora com razoável grau de certeza.