29/11/2014

Dormir é viver


Romulea ramiflora Ten.


São muitas as plantas que ficam reduzidas a bolbos subterrâneos durante nove ou dez meses em cada ano. Vivas mas adormecidas, preparam-se para a glória breve que é o despontar anual para a luz do sol. As romúleas, florescendo logo nos primeiros meses do ano, quase nos passam despercebidas, ainda que sejam comuns de norte a sul do país. Saem da toca quando ainda estamos recolhidos, e regressam a ela quando nos preparamos para sair. Não é um desencontro infeliz, pois elas dispensam bem a nossa atenção, bastando-lhes que os insectos polinizadores para os quais se enfeitam respondam à convocatória.

Em Portugal ocorrem espontaneamente apenas quatro espécies de Romulea, o que é motivo de embaraço se compararmos com as 60 ou mais espécies que são nativas da África do Sul. Ainda assim, a nossa diversidade é suficiente para por vezes confundir botânicos tanto amadores como profissionais. A espécie mais comum, R. bulbocodium, tem uma ecologia muito variada e pode apresentar flores que vão de um roxo carregado a um lilás pálido, chegando mesmo a ser brancas. Ao longo do litoral norte, ocorre uma segunda espécie, a R. clusiana, que só se distingue da anterior (com a qual muitas vezes convive) pelas flores maiores e mais vistosas. Se atendêssemos apenas ao número de registos no portal Flora On, as duas restantes espécies — R. columnae e a que hoje apresentamos, R. ramiflora — seriam muito raras no nosso país. Conclusão algo precipitada, pois ao surgimento fugaz típico do género as romúleas juntam a dificuldade de identificação: pode haver quem as veja, mas não as reconheça; ou, por causa da grande variabilidade dentro de cada espécie, não esteja seguro do que vê. Arrumar o mundo vegetal em espécies estanques, com fronteiras bem definidas, é uma construção humana que nem sempre se ajusta à realidade.

Não é pela cor das flores nem pelo seu tamanho, em ambos os casos à roda dos 2 ou 3 cm, que a Romulea ramiflora se diferencia fiavelmente da R. bulbocodium. O carácter distintivo mais importante é que na primeira as anteras são mais altas do que o estilete, envolvendo-o e ocultando-o, e na segunda a relação inverte-se, com o estilete claramente destacado das anteras (como se vê nesta foto). Outra diferença assinalável, a confirmar à lupa, é que na R. bulbocodium a bractéola na base da flor é formada por uma membrana transparente (os botânicos dizem-na escariosa; pode vê-la aqui), enquanto que na R. ramiflora a bractéola é verde, podendo no entanto ter uma margem "escariosa" mais ou menos estreita (quarta foto em cima). Como tira-teimas, pode ainda notar-se que na R. ramiflora as três tépalas mais externas têm um verso de tonalidade esverdeada, e que na R. bulbocodium o tom é escuro, entre o roxo e o castanho.

Por muito cristalino que pareça este receituário, fica o leitor avisado de que são frequentes os casos em que ele se revela ineficaz, pois as romúleas são useiras e vezeiras em desobedecer às especificações dos manuais. Depois de muito falso alarme, só umas romúleas de Salir do Porto (não as que existem no local da foto abaixo), que visitámos no final de Fevereiro para ver um endemismo lusitano, é que passaram no teste para serem chamadas R. ramiflora com razoável grau de certeza.


São Martinho do Porto

25/11/2014

Erva dos cinco dedos


Castro Vicente — rio Sabor ao fundo
Visitar os afloramentos calcários de Castro Vicente ou das minas de Santo Adrião é como entrar numa livraria esmerada e sem lacunas: lá encontramos os clássicos, os de leitura obrigatória, os recomendados, os de elevada qualidade, os dignos de apreço, os ainda não lidos, os menos virtuosos e alguns já preparados para serem esquecidos. A impressão que nos domina é a de que nunca conseguiremos ler tudo, e de que nem todos os livros têm por destino envelhecer numa biblioteca. Resta-nos o consolo de saber que, apesar de a biblioteca de plantas conter infinitas possibilidades, que o acaso proporcione e a natureza consinta, ela será sempre finita.


Dorycnium pentaphyllum Scop.


A planta das fotos, uma herbácea airosa e robusta de flores minúsculas, é uma aquisição com alguns meses que tem estado na pilha das novidades a aguardar a sua vez. Foi boa ideia esperarmos até agora para a mostrar: nestes dias cinzentos de aguaceiros, voltar ao Verão e ao nordeste pelas imagens de plantas tem sido um exercício revigorante. O que se nota nestes pequenos arbustos perenes? A folhagem, que é de um verde acetinado; as folhas com cinco folíolos por vezes desiguais; e as inflorescências em capítulos de flores com corola de estandarte e asas brancas. O fruto é uma vagem ovóide com uns 5 mm de comprimento, a lembrar uma azeitona com costura.

Estes exemplares estavam em solo pedregoso, exposto ao sol e em sítio árido. Ainda assim, chegavam a uns 80 cm de altura e faziam uma bela sombra a muitas orquídeas e a mais algumas preciosidades. Em Portugal continental há registo de mais duas espécies deste género, o D. rectum (abundante em juncais e em margens de lagoas e charcos, cujos frutos parecem salsichas) e o D. hirsutum, planta do litoral algarvio que ainda não vimos.

22/11/2014

A primeira dúzia



Veronica scutellata L.

Se a evolução nos tivesse concedido seis dedos em cada mão, talvez não fôssemos muito mais hábeis em trabalhos de bricolage, mas seríamos incomparavelmente melhores a fazer contas de cabeça. E talvez essa maior facilidade na aritmética tivesse permitido que a ciência e o progresso material a ela associado se desenvolvessem uns séculos mais cedo. Infelizmente, é impossível começar de novo para sabermos que diferenças teria a História para registar se, no início de tudo, em vez de escolhermos o 10 como base de numeração, tivéssemos optado, como seria racional, pelo 12. O 12 tem mais divisores do que o 10, e por isso o sistema de numeração duodecimal permite que mais fracções se exprimam como dízimas finitas — ou, dito de outro modo, há mais contas de dividir que dão resultado exacto. Por exemplo, na base 10, a fracção 1/3 escreve-se 0,3333..., mas na base 12 a mesma fracção escreve-se simplesmente 0,4. Muito se pouparia em tempo e confusão quando no restaurante chegasse a hora de dividir a conta por 3 convivas (ou 4, ou 6, ou mesmo 8, 9 ou 12) já meio tocados pela bebida. Os pequenos inconvenientes de termos de inventar dois símbolos adicionais para os novos algarismos (um para o 10 e outro para o 11), e também de decorar tabuadas maiores, seriam rapidamente compensados pela maior agilidade nos cálculos. Mas o 10 continua a mandar, e mesmo na época dos computadores e da comunicação global instantânea continuamos a atribuir uma importância supersticiosa aos seus múltiplos, celebrando os dez anos disto e os cem anos daquilo com uma seriedade inapropriada, quando afinal tudo se deve ao número de dedos que calhou termos nas mãos.

Ao contrariarmos essa tendência hegemónica, não queremos inaugurar uma nova era. Reinvidicamos apenas o direito de ignorar o dez e, porque não queremos substituir uma superstição por outra, de assinalar o doze sem grandes foguetes comemorativos. Escolhemos por isso um doze que, completando-se hoje, não marca uma efeméride muito relevante. Acontece apenas que esta é a 12.ª verónica que mostramos no Dias com Árvores. (Sim, este blogue já fez 10 anos. Quando fizer 12, também não iremos chamar a atenção para isso.)

Apesar de as suas flores serem em geral diminutas, as verónicas são facilmente reconhecíveis pelas quatro pétalas assimétricas e pelos dois estames muito salientes. No capítulo da ecologia, o género Veronica é dos mais versáteis da flora portuguesa, com um leque de espécies que abrange plantas ruderais como a Veronica persica e outras raras ou mesmo endémicas como a V. micrantha (exlusiva do noroeste peninsular) e a açoriana V. dabneyi. A V. scutellata, a que os anglo-saxónicos chamam grass leaved speedwell ou skullcap speedwell, é pouco comum em Portugal (veja aqui um mapa de registos) mas distribui-se por toda a Europa e América do Norte. Habitante de lugares encharcados, não atingindo mais que os 60 cm de altura, distingue-se pelas folhas compridas (até 7 cm) e lanceoladas, com vinco central bem marcado, e sobretudo pelas inflorescências sustentadas por pedúnculos finos e muito longos, saídos das axilas das folhas.

18/11/2014

As duas vidas do sabugueiro

Passeávamos por um juncal na foz do rio Coura, que em Caminha se une ao rio Minho, quando, entre muitos pés de Samolus valerandi e Centaurium spicatum, vimos uma fiada de arbustos que nos pareceram sabugueiros em flor. Porém, a memória guarda, para nossa segurança, um razoável guião do mundo que já vimos, e é por isso capaz de uma vigilância que chega a surpreender-nos: apesar de fazerem lembrar os sabugueiros comuns, estes sabugueiros minhotos tinham textura herbácea (o S. nigra tem caule e ramos lenhosos) e as suas folhas, de cor verde-alface, exibiam pínulas anormalmente grandes. Para reforçar a estranheza, as anteras (onde está o pólen) eram de cor púrpura, não amarelas como as do Sambucus nigra.

Lembrámo-nos de que já havíamos lido aqui sobre uma outra espécie de Sambucus espontânea em Portugal continental. Confirmámos então que o que encontrámos em Caminha foi mesmo o S. ebulus, apesar de oficialmente em Portugal ele só ocorrer no Algarve, Alto Alentejo, Beira Alta e Trás-os-Montes. Sabemos agora que à lista deve acrescentar-se o Minho, terra de muitos ribeirinhos e bosques como os sabugueiros gostam.



Sambucus ebulus L.


Esta é uma erva estolhosa, perene e com rizoma, que pode atingir os 2 metros de altura (o S. nigra sobe mais, até aos 10 m) e exala um odor característico dos sabugueiros, que nos parece nauseante mas que atrai muitos polinizadores. Os frutos são bagas que amadurecem negras enquanto as folhas ganham o tom alaranjado de Outono.

O nome científico, atribuído por Lineu em 1753, não tem parentesco com o vírus doentio, mas o epíteto talvez se refira, como no caso do rio Ébola (de «águas brancas») no Congo, à medula esbranquiçada dos caules, o sabugo.

15/11/2014

Quem vê folhas não vê florações



Laserpitium eliasii Sennen & Pau subsp. thalictrifolium (Samp.) P. Monts.



A chamada sabedoria popular, repositório do senso comum mais comezinho em que vale tudo e o seu contrário, pode ter algum préstimo desde que saibamos fazer as necessárias adaptações. Assim, o provérbio glosado no título pode, se quisermos, alertar-nos para o facto de aquilo que observamos ser apenas uma parte talvez enganadora da realidade. No inocente passatempo de botanizar, esse princípio aplica-se de modo literal quando insistimos em dar nome a uma planta que se nos apresenta em estado vegetativo, sem flores ou frutos que facilitem a identificação. Nalguns casos, a possível confusão com outras espécies é reconhecida no próprio nome científico. Serve de exemplo a umbelífera de hoje, em que o epíteto thalictrifolium denuncia a semelhança da sua folhagem com a do Thalictrum. Se atentarmos no penacho dourado que é a inflorescência do mesmo Thalictrum, reconhecemos contudo que não há engano possível quando alguma das plantas está em flor.

O género Laserpitium, nome escolhido por Tournefort mas validado por Lineu, inclui 14 ou 15 espécies europeias. São plantas perenes, robustas, capazes de atingir metro e meio de altura, de caule maciço e estriado, com folhas pinadas divididas até quatro vezes. As flores são brancas, em geral com estames longos e recurvados, e os frutos apresentam quatro bandas membranáceas longitudinais de largura variável. O Laserpitium eliasii, de que estão descritas três subespécies de diferenciação nem sempre clara, é um endemismo ibérico confinado ao norte de Espanha e de Portugal; por cá só se reconhece a presença da subespécie thalictrifolium, que ocorre com alguma assiduidade no nosso único parque nacional, em carvalhais e outros bosques húmidos de montanha, mas fora dele quase nunca se vê.

A descrição original do Laserpitium eliasii foi publicada em 1907 no Boletin de la Sociedad Aragonesa de Ciencias Naturales por dois estudiosos da flora espanhola: o francês Étienne Marcellin Granier-Blanc (1861-1937) e o valenciano Carlos Pau (1857-1937). O primeiro, que foi membro da comunidade católica dos Irmãos de La Salle, adoptou o nome religioso de Frère Sennen; a sua actividade como botânico e explorador estendeu-se a França, Espanha e Marrocos.

13/11/2014

Sementes de Portugal


Cultivar no jardim as plantas que são nossas, por desde sempre partilharem connosco este rectângulo no limite ocidental da Europa, é contribuir para a reparação de uma injustiça histórica. Quando a manutenção de um jardim vistoso era uma actividade socialmente prestigiada, enchemos o país de plantas exóticas e desdenhámos daquelas que são espontâneas. Colhê-las não custava nada, e portanto não faziam prova de um gosto que só o dinheiro podia sustentar. Agora que a paisagem natural é algo que muitos desconhecem, por que não ajudar as nossas plantas a recuperar o espaço que foi delas, dando-lhe lugar de honra nos nossos canteiros? Se os estereotipados garden centers não nos ajudam, há quem se empenhe em pôr ao nosso alcance os meios (ou as sementes) para levar a cabo tão meritório propósito. Entre árvores, arbustos e herbáceas, são 180 as espécies da nossa flora representadas no catálogo de 2014-15 das Sementes de Portugal.

11/11/2014

Artemísia de verdade


Artemisia vulgaris L.


Esta é a segunda parte de uma história que começou a ser contada quando aqui falámos da Artemisia verlotiorum, alertando então para a circunstância de a Artemisia vulgaris, em Portugal, estar a ser gradualmente substituída por uma falsificação importada da China. Não falamos das plantas cultivadas para uso culinário ou medicinal, mas sim das que ocorrem espontaneamente por esse país fora, em terrenos baldios ou ruderalizados. Nada ganhamos em escondê-lo: nenhuma destas artemísias exige habitats impolutos para se instalar, e pelo contrário gosta de sítios degradados como bermas de estrada e margens de cursos de água eutrofizados. É nessa competição por um lugar de má fama que a oriental Artemisia verlotiorum se revela mais prolífera e adaptável do que a sua irmã europeia. Não é fácil inverter a tendência para favorecer quem está a perder o jogo, quando o que está em causa são habitats marginais e pouco dignos de acções de conservação.

Foi na estrada de Amarante para Mesão Frio, em lugar onde a «limpeza das bermas» não é obsessiva e permite o desenvolvimento de alguma vegetação natural, que encontrámos, no final de Agosto — época em que a floração está no auge —, esta artemísia não tão vulgar. Embora os capítulos florais da A. vulgaris sejam tão pouco vistosos como os da A. verlotiorum, as inflorescências em panículas amplas e ascendentes conferem-lhe um porte bem mais elegante. E a A. verlotiorum, além de se denunciar pelo ar pesaroso que lhe emprestam as inflorescências pendentes, também se distingue pela folhagem menos recortada e pela floração tardia, entre Outubro e Novembro.

Para quem nunca viu a Artemisia vulgaris, convém fornecer algumas medidas: os caules, que são erectos, avermelhados e pouco ou nada ramificados, têm de 1 a 2 metros de altura, as folhas têm até 20 cm de comprimento, e os minúsculos capítulos florais não ultrapassam os 5 mm de diâmetro. Planta perene, a A. vulgaris parece, entre nós, estar confinada ao norte e centro do país; globalmente, distribui-se por quase toda a Europa, e ainda pelo norte de África e pela Ásia.

08/11/2014

Ficaram as vacas


Vaccaria hispanica (Mill.) Rauschert
Esta planta, única espécie do género Vaccaria, lembra-nos um Dianthus ou uma Saponaria pelo porte alto (até um metro de altura), as flores cor-de-rosa de pétalas ovadas e o tom verde-azulado das folhas sésseis e opostas; contudo, o cálice anguloso, feito de sépalas rijas, não deixa dúvidas. A inflorescência, em geral primaveril, é notável: é formada por pedicelos erectos tendo na base duas brácteas que parecem folhas anãs e suportando duas a cinco dezenas de flores, em arranjos triplos onde uma flor um pouco mais alta que as companheiras ocupa a posição central. Pena é que a planta esteja a desaparecer: é que ela é anual e aprecia o campo, sejam searas, terrenos cultivados ou pousios, e o nosso está em grande parte envenenado por herbicidas. Com tais práticas, matam-se as pragas mas também os polinizadores, e nem todas as ervas aguentam tais quantidades de peçonha. Há umas décadas a distribuição global da planta no hemisfério norte era a que consta deste mapa; mas, pelo menos no que se refere a Portugal continental, a situação piorou bastante. Vimos este exemplar no Sabugal há uns cinco anos, mas a população era diminuta, e em visitas posteriores não a reencontrámos. Teremos de a procurar em Trás-os-Montes e no Minho porque na base de dados Anthos há registo de populações espanholas perto destas províncias.

Os nomes comuns desta herbácea (hierba de vaca, cow basil) aludem às vacas que, diz-se, as ingeriam; pela parecença com os cravos, há também quem lhe chame prairie carnation; em português não há nome registado. Lineu designou-a Saponaria vaccaria em 1753, referindo-se o epíteto latino vaccaria também aos ditos ruminantes. Em 1768, Philip Miller entendeu que seria mais apropriado identificá-la como uma espécie do género Saponaria, S. hispanica. Sete ou oito nomes depois, em 1965, ganhou o actual, resultado de um compromisso que reúne o vaccaria de Lineu com o hispanica de Miller.

04/11/2014

Delfins, esporas & passarinhos


Delphinium halteratum Sm. subsp. halteratum


É pouco provável que quem viva em Manteigas alguma vez compre castanhas, não querendo isto dizer que não goste delas ou que dispense o magusto no São Martinho. Acontece que no Souto do Concelho, provavelmente o maior bosque de castanheiros em todo o país, as castanhas, pequenas mas deliciosas, são de uma abundância pródiga, e custam só o trabalho de as colher. Quem mora longe tem contudo que levar em conta os custos e a demora da deslocação, acabando por conformar-se em pagar por uma coisa que gente mais afortunada tem de graça ao pé da porta. É esse o nosso caso, por nunca visitarmos Manteiga na época certa que é Outubro a declinar, quando caem as castanhas e as folhas amarelecem e se preparam igualmente para cair.

Durante três anos consecutivos fomos ao Souto do Concelho entre o final de Junho e o início de Julho, das duas primeiras vezes para ver orquídeas, e da terceira, em 2013, para fotografar este delfim que tínhamos visto no ano anterior mas de que por imprevidência não registáramos imagens. Aquelas flores que por vezes julgamos reconhecer revelam-se afinal outra coisa quando as estudamos melhor. Já aqui mostrámos duas espécies de Delphinium: o D. pentagynum, que tem flores grandes, de um azul escuro e arroxeado, com pétalas laterais peludas, e vive em terrenos calcários pedregosos; e o D. gracile, mais esguio, de flores menores e de uma tonalidade mais clara. Pela cor das flores e pelo recorte das folhas, o D. halteratum parece-se mais com o primeiro, mas diferencia-se pelo esporão mais comprido, claramente revirado para cima, e pela ausência de pilosidade nas pétalas. Além disso, trata-se de uma planta anual (o D. pentagynum é perene) de tendências ruderais, aparecendo junto a caminhos e em terrenos incultos, sem preferência declarada por qualquer tipo de substrato.

As plantas anuais vivem sempre no fio da navalha: em cada ano têm que produzir sementes em quantidade bastante para assegurar a existência de uma nova geração no ano seguinte. Para que os polinizadores não faltem à chamada, há que recompensar generosamente os seus serviços com o néctar armazenado nas flores. Nas espécies do género Delphinium, cada flor é composta por cinco sépalas semelhantes a pétalas, uma delas prolongando-se no esporão, e por quatro verdadeiras pétalas situadas no centro da flor, as duas superiores dispondo de glândulas nectaríferas que se acolhem dentro do esporão. Para ter acesso à recompensa, o insecto visitante terá que se roçar nas anteras e no estigma, cumprindo assim, involutariamente, a tarefa para que foi convocado.

Assinale-se, para concluir, que em Portugal estão descritas duas subespécies de Delphinium halteratum: a subespécie nominal, representada nas fotos, e a subespécie verdunense. Não se distinguem pelas preferências ecológicas, mas sim por certos detalhes morfológicos: a subsp. halteratum tem uma inflorescência mais alongada e com maior número de flores, e as suas folhas na parte superior do caule são simples, enquanto que as da subsp. verdunense são trífidas.

01/11/2014

Meia ponte para um narciso


Narcissus cavanillesii Barra & G. López


Este é um dos dois narcisos espontâneos em Portugal que floresce no Outono. A indicação das várias Floras é de que a floração decorre entre Outubro e Novembro. Por isso, no ano passado, fomos a Évora no início de Novembro para ver uma das duas únicas populações conhecidas no país. Não havia nem uma flor. Concluímos que era ainda cedo, e voltámos a fazer a longa viagem duas semanas depois. O desfecho foi idêntico. Terá desaparecido?, ouviu-se uma voz receosa. Prometemos iniciar este ano mais cedo a romaria, e descemos ao Alentejo nos primeiros dias de Outubro, logo que as chuvas intensas abrandaram. A ladeira que dá acesso ao rio Guadiana foi-nos enchendo de entusiasmo com as centenas de exemplares do perfumado Narcissus serotinus em flor e sinais animadores de que o Ophioglossum lusitanicum tem resistido bem ao pisoteio e voracidade do gado que por ali vai abocanhando a verdura. Ascendemos à ponte da Ajuda (quer dizer, à meia ponte) com a alegria inusitada de quem finalmente acertou, e tem o correspondente tesouro à espera. Pois sim. No topo da ponte havia de facto muitos pés de Narcissus cavanillesii, mas quase todos já em fruto ou com o repouso de Inverno iniciado, o que quer dizer que estavam invisíveis, reduzidos ao bolbo subterrâneo. Com boa vontade, lá se descobriram umas florinhas, e não nos restou mais do que imaginar o cenário colorido de amarelo-torrado das flores que teriam estado abertas duas semanas antes.

Cada plantinha tem cerca de 10 cm de altura (até já se chamou N. humilis), com uma flor no topo (às vezes mais) de tépalas grandes mas quase sem corola, aquela trombeta característica da maioria dos narcisos. Mas, apesar de residual, está lá como podem confirmar na última foto acima. Os estames nascem em duas camadas, curiosamente a alturas diferentes, parcialmente soldados ao cálice. As folhas, que parecem agulhas e que se notam na quarta foto, nascem em geral depois da frutificação. O fruto é a "azeitona" verde escura que domina nas fotos e as sementes são, como é usual neste género, pretas e brilhantes. O N. cavanillesii hibrida com o N. serotinus dando origem ao chamado Narcissus x alentejanus, que tem tépalas mais lânguidas e de tom amarelo menos intenso. O espíteto específico homenageia o famoso taxonomista espanhol Antonio José Cavanilles (1745-1804).

A Península Ibérica tem fama de ser o centro de diversidade dos narcisos, com cerca de 35 das 50 espécies silvestres conhecidas no mundo, 16 das quais endémicas (uma delas exclusivamente lusitana). O N. cavanillesii é nativo do sudoeste da Península Ibérica, Marrocos e Argélia. Aprecia solos secos, até áridos, mas parece depender da chuva para completar o seu ciclo de vida. No sul de Espanha surge em clareiras de bosques, prados e bordos de caminhos. Está incluído nos Anexos II e IV das Directivas Europeias sobre Habitats (92/43/EEC), e no Anexo 2 da lei espanhola que protege o património natural e a biodiversidade. Por cá está em risco de desaparecer.

Conta-se que um dos dois governos, português ou espanhol, quis certa vez reconstruir a ponte da Ajuda, e só não o fez porque deu ouvidos aos apelos dos botânicos para que se poupassem os narcisos. Se a história não foi bem assim, aqui fica o recado para o caso de alguma vez essa ameaça surgir.


Elvas: ponte da Ajuda sobre o rio Guadiana