21/03/2021

Pequenos corações de areia



Isto de coleccionar ilhas para alimentar memórias em tempos de mobilidade reduzida tem o perigo de nos ufanarmos em conhecedores, prodigalizando conselhos que ninguém pediu avalizados por um saber de curta experiência feito. Já visitámos três (ou quatro, se contarmos com La Graciosa) das sete (ou oito) ilhas habitadas das Canárias; e, se as autoridades que nos pastoreiam nada fizerem para o impedir, juntaremos proximamente uma quarta (ou quinta) ilha ao nosso currículo viageiro. Poderíamos hierarquizar, apontar lugares imperdíveis, desvendar segredos mal guardados. Como se em cada ilha visitada tivéssemos visto e experimentado tudo (pelo menos tudo o que fosse digno da nossa atenção), e tudo tivéssemos aferido com infalível discernimento.

Há ilhas a que vamos voltar, a outras talvez não, mas essas escolhas dizem mais sobre nós do que sobre essas ilhas. Cada ilha tem o direito de se apresentar a cada novo visitante com todas as armas de sedução de que dispõe. Há artifícios de que nem desconfiamos, apontados para sensibilidades sintonizadas noutros comprimentos de onda, e não nos cabe desencorajar possíveis namoros felizes.

A Tenerife e a Lanzarote voltaremos sempre que possível. Com a Grã-Canária houve um desencontro qualquer, uma desafinidade talvez evitável se a visita tivesse sido em época do ano mais propícia. Não foram as marcas do turismo massificado que nos desencantaram, pois essas são igualmente visíveis nas duas ilhas a que nos afeiçoámos. A aridez da paisagem também não nos repeliu, pois ela é ainda mais marcada em Lanzarote, onde não existem os barrancos verdejantes nem os pinhais de altitude que são, na Grã-Canária, refúgios seguros de frescura. Mas para nós o mar de Lanzarote é mais acolhedor que o da Grã-Canária, e os mesmos restaurantes étnicos para engodo de turistas são menos ofensivos numa promenade de pechisbeque em Lanzarote do que em lugar semelhante na Grã-Canária. Mesmo os endemismos botânicos de Lanzarote, em muito menor número que os da Grã-Canária, se fizeram mais bonitos aos nossos olhos.

Lotus arinagensis Bramwell


Um dos poucos endemismos da Grã-Canária que floriam em Dezembro (e essa escassez ajuda a explicar o nosso desapontamento) era uma leguminosa rastejante, de flores amarelas e folhas pequenas, carnudas e acetinadas. Tratava-se do Lotus arinagensis, endemismo do sudoeste da Grã-Canária que vive nos arredores de Arinaga, povoação costeira de que tomou o nome. Corazoncillo é como chamam nas Canárias às espécies de Lotus de hábito prostrado e flores amarelas. Entre espécies endémicas e outras de distribuição mais ampla (como o Lotus creticus), as Canárias têm mais de uma dezena destes pequenos corações rasteiros. As diferenças entre as várias espécies são às vezes pequenos detalhes nem sempre bem vincados, mas a área de distribuição ajuda a tirar dúvidas. O L. arinagensis, além de ter um aspecto distintivo, aperece apenas numa zona muito restrita da Grã-Canária.

Por falta de praias amplas, a cidadezinha de Arinaga não foi tomada de assalto por empreendimentos turísticos como aqueles que abundam em Maspalomas, no extremo sul da ilha. Parece assim suficientemente a salvo o habitat do Lotus arinagensis e de outros raros endemismos que colonizam esta paisagem desértica. Se para aqui se virassem apetites imobiliários vorazes, não seria um coraçãozinho da areia a fazer-lhes frente.

1 comentário :

bettips disse...

O longe e o perto, aqui se faz e vê. E bem, para que se possa idealizar "o lugar", chão e ar!
Em tempos que já lá vão, e com máquina de rolos por isso a escassez de fotos... se visitou Tenerife (voltas até ao Teide; e achei graça à história e estátuas dos Guanches), La Gomera (as suas neblinas galopando os montes e abençoando a laurissilva) e La Palma (a cratera). Fugindo o mais possível dos corações de aglomerados em "betão", a maior parte bem horríveis. Têm todas diferentes particularidades mas também eu adoro ilhas e os segredos delas... aquelas pedra à sorte que há milénios navegaram dos continentes.
Abçs