27/01/2023

Mostarda dos taludes

Descurainia preauxiana (Webb) O. E. Schulz


As ilhas são fábricas prodigiosas de diversidade. Vinda do continente mais próximo na forma de semente, instala-se uma planta numa ilha; e, na mesma altura ou uns tempos mais tarde, a mesma planta chega a outras ilhas do mesmo arquipélago. Deixemos as plantas em sossego umas centenas de milhares de anos, sem contacto entre si nem com os antepassados continentais, e no fim observemos os resultados. Não só as plantas se fizeram radicalmente diferentes daquilo que eram à época da migração, como, dependendo da ilha, essa divergência tomou aspectos bem diferenciados. Consideremos, por exemplo, o género Descurainia, integrado na família das couves e das mostardas. Apesar de o género se espalhar pela América do Norte e do Sul, pela Europa e pela Ásia, o seu único representante na Europa (e, de raspão, no norte de África) é a Descurainia sophia, ou erva-de-santa-Sofia, nativa de quase todas as regiões temperadas do hemisfério norte. É portanto de admitir que as espécies de Descurainia existentes nas Canárias — que totalizam sete, tantas quantas as principais ilhas do arquipálago — sejam descendentes dessa única espécie europeia. O arquipélago das Canárias, com uma superfície total que é 1400 vezes menor do que a da Europa, produziu sete vezes mais espécies do género Descurainia — que optaram, todas elas, por ser arbustos perenes, em contraste com a D. sophia e demais espécies do género, que por regra são herbáceas anuais. É de presumir que a amenidade do clima insular, sem grandes variações ao longo do ano, tenha induzido essa maior longevidade: não havendo estações do ano tão adversas que a vida se torne impossível, não se justifica que os organismos abdiquem de viver em certos períodos do ano.

A repartição das espécies de Descurainia entre as ilhas das Canárias é desigual: Tenerife conta com três espécies endémicas (entre elas a D. bourgeana, que vive nos picos do Teide), Grã-Canária com duas, La Palma com outra, e há uma última espécie (primeira em abundância), que é a D. millefolia, partilhada por Tenerife, La Palma e La Gomera. A planta que hoje ilustra o texto é a Descurainia preauxiana, da Grã-Canária, bastante comum na zona central montanhosa da ilha, e com declarada preferência por taludes de estrada convenientemente pedregosos. As folhas pinadas, com lóbulos lineares e dispostas em rosetas nas extremidades dos ramos, permitem uma identificação inequívoca, pelo menos na época de floração da planta — a qual, apesar de certas fontes asseverarem decorrer de Março a Maio, é de facto mais prolongada, como comprovam estas fotos tiradas no final de Dezembro de 2019.

20/01/2023

Arrudas de cheiro

O uso de perfumes é uma gentileza dos outros para connosco que raramente agradecemos. Talvez por isso a perda do olfacto com a covid pareceu a tantos tão incómoda, a par do silêncio súbito nas ruas vazias de povo obediente. É mais ou menos consensual o que é uma fragância aprazível (mesmo sem sabermos o preço), e temos muitas palavras para descrever os cheiros de que gostamos e os que nos desagradam. Entre as plantas, contudo, o odor é a mensagem. E essa comunicação, essencial à sua sobrevivência, não é feita para agradar aos nossos narizes. Tem como função repelir predadores ou seduzir polinizadores, na esperança de que que essa informação volátil fique nas respectivas memórias. O que interessa à planta é que o aroma exalado pelas suas folhas, ou flores, a sinalize, e sirva como aviso ou chamamento. Os aromas mais doces costumam atrair abelhas e borboletas, que precisam de néctar, formigas e outros bicharocos esfomeados; os aromas salgados parecem ser especialmente apreciados por moscas, que por vezes procuram apenas um abrigo seguro e saudável para as suas crias.

Em inúmeros casos, beneficiamos duplamente dessa química, como quando aromatizamos a comida. Noutras instâncias, porém, o odor é tão ruim que o estômago se revolta, e nos perguntamos se haverá algum insecto que aprecie tal cheiro, ou se o alerta emitido pela planta não estará a ser desproporcionado. É o que acontece com as espécies do género Ruta, parentes das aromáticas laranjeiras. São herbáceas perenes, por vezes de base lenhosa, com folhagem glabra, glauca ou cinzenta, e inflorescências densas de flores com 4 pétalas cor-de-enxofre e margens ciliadas. As folhas, salpicadas de glândulas, exalam um cheiro intenso e acre se pressionadas. Apostaríamos que isso é truque para afastar quem as queira trincar, mas surpreendentemente há plantas cujas inflorescências cheiram ainda pior e mantêm um séquito de insectos obstinados na sua vizinhança.

As arrudas endémicas das ilhas Canárias têm também um odor penetrante, embora distinto do das continentais. A Ruta pinnata, endemismo das ilhas de Tenerife e La Palma, é um arbusto alto (1,5 a 2 metros) com folhagem rala e folhas imparipinadas, de um verde pálido, compostas por 7 folíolos ovados e crenados. As flores são parecidas com as das arrudas ibéricas, mas as 4 pétalas (ou 5, no centro da inflorescência) pareceram-nos menos fimbriadas.

Ruta pinnata L. f.


Nas Canárias há registo de mais dois endemismos no género Ruta: a Ruta microcarpa, de La Gomera, uma espécie rara, de pequeno porte (não mais de 80 cm de altura), com folhagem muito ramificada; e a Ruta oreojasme, da Grã-Canária, parecida com a anterior mas arbustiva. Partilham o gosto por habitats secos, em falésias e ladeiras rochosas. Alguns estudos indicam que estes endemismos são o produto de um único evento de colonização, em La Gomera, por uma espécie de origem africana, ocorrido há pelo menos 2,6 milhões de anos. Desta ilha, o género ter-se-á dispersado para a Grã-Canária (a ilha mais antiga) e Tenerife, e desta para La Palma, num processo de radiação e especiação típico de um arquipélago como as Canárias.

Curiosamente, algumas espécies de Ruta tiveram uso medicinal e são hoje usadas em refrigerantes, comidas e até perfumes — uma ciência de aromas e sabores que nos é desconhecida.

13/01/2023

Maria José & José Maria

Lotus glinoides Delile


Ensina o dicionário que uma escada é uma «série de degraus», e esclarece a mesma obra que um degrau é «cada uma das partes de uma escada». Está assim fechado o círculo: temos um par de palavras, degrau e escada, em que cada uma é definida em função da outra, e quem não souber o significado de nenhuma delas não tirará qualquer ensinamento útil da consulta do dicionário. Para que a comunicação entre humanos seja possível, é necessário estarmos de acordo quanto ao significado das palavras usadas — e, quando desconhecemos alguma, procurarmos saber como ela se define à custa de outras que já conhecemos. No entanto, este processo de explicar conceitos complexos decompondo-os noutros mais simples tem alguma vez que parar. Deve existir um núcleo de palavras ou de conceitos que, por serem de entendimento generalizado, não precisam de ser (ou não podem ser) dissecados ou definidos à custa de outros. Constituem as chamadas noções primitivas, sem as quais a linguagem se pulverizaria numa névoa destituída de significado. No caso da escada e do degrau, qual será a noção primitiva?

A taxonomia botânica funciona muito por comparação: são frequentes, nos nomes científicos das plantas, os epítetos que se referem à semelhança com outras plantas. É como explicar uma planta relacionando-a com outra possivelmente mais bem conhecida pela comunidade botânica ou pelo público em geral. Consideremos, por exemplo, a leguminosa ilustrada nas fotos: o nome Lotus glinoides indica que esta planta tem aparência semelhante às do género Glinus, incluído na família das Cariofiláceas. No intuito de perceber melhor a comparação, atentemos na única espécie do género Glinus na flora europeia. Chama-se Glinus lotoides, e o epíteto é inequívoco: diz-nos que a planta é parecida com as do género Lotus. Ora nenhum Lotus se pode assemelhar mais a ela do que o Lotus glinoides, que proclama essa mesma semelhança no seu bilhete de identidade. Eis-nos perante novo círculo perfeito: o Lotus glinoides é explicado pelo Glinus lotoides que é explicado pelo Lotus glinoides. Qual dos dois constituirá a noção primitiva? Enfim, uma boa amostra do sentido de humor dos botânicos — ou talvez do gosto (muito anterior a Bertrand Russell e a Kurt Gödel) pelos paradoxos da linguagem e do raciocínio lógico.

Do ponto de vista estritamente botânico, contrapor estas plantas uma à outra é pouco ou nada elucidativo: tanto nas flores como nas folhas (simples num caso, trifoliadas no outro) nada há que as aproxime; morfológica e evolutivamente, não podiam estar mais distantes. É portanto mais instrutivo comparar o Lotus glinoides com os seus congéneres, notando que ele se singulariza pelas flores rosadas num género maioritariamente de flores amarelas. Presente em quase todas as ilhas Canárias mas mais frequente em Fuerteventura e Lanzarote, e com presença assinalada também em Cabo Verde, norte de África, Médio Oriente e Paquistão, o cuernecillo rosado é uma planta rasteira, verde-glauca, acetinada, com flores pequenas (de uns 7 mm de comprimento), apreciadora de locais secos e pedregosos, tendencialmente desérticos. Encontrámo-lo nos campos de lava do Parque Nacional de Timanfaya, em Lazarote, contrariando o negrume dominante com as suas breves pinceladas de verde e rosa.