17/07/2025

Rio de areia



Quem sai de Almeria em direcção a El Ejido, que fica uns doze quilómetros a oeste, atravessa uma costa nua e escarpada, sem préstimo agrícola e sem sinal de habitações, e que também não parece vocacionada para aproveitamento turístico. As praias são estreitas faixas pedregosas, acessíveis por caminhos íngremes; as duas estradas paralelas (uma delas é auto-estrada) sobrevoam barrancos de terra avermelhada empoleiradas em altos viadutos. São barrancos que hoje em dia só levam areia, memória de rios que noutras eras geológicas desciam das alturas da serra de Gadór. Com 2247 m de altitude máxima, a serra de Gadór é, a seguir à serra Nevada, a mais alta da província de Almeria, e são os seus contrafortes que formam esta paisagem acidentada, a que muitos chamariam desolada, aqui bem junto ao Mediterrâneo.

Um pouco ao acaso, escolhemos visitar o barranco de la Garrofa, que até dispõe de estacionamento conveniente logo à entrada. É um local muito frequentado por praticantes de escalada; sê-lo-á menos por aficionados de botânica, o que poderá dever-se ao desconhecimento ou ao preconceito. As primeiras impressões não são agradáveis: à aridez da terra ressequida e à nudez das escarpas soma-se o desmazelo do lixo. Mas o coberto vegetal ralo e desordenado não é formado por plantas vulgares, e em poucos minutos sabemos que viemos ao lugar certo. Não exigiria grande forma física caminhar muitas centenas de metros pelo barranco adentro, mas na verdade não vamos longe, obrigados pelas muitas novidades botânicas a paragens constantes e demoradas. Esta é uma pequena amostra do que vimos nesse memorável passeio.

Maytenus senegalensis subsp. europaea (Boiss.) Güemes & M. B. Crespo


A dois ou três metros do ponto onde estacionamos está em flor este arbusto que, a um olhar mais míope, se diria pertencer ao género Rhamnus. Contudo, a morfologia das flores logo desmente essa filiação: têm pétalas brancas bem visíveis, ao passo que no género Rhamnus as pétalas são inconspícuas ou inexistentes. De facto, seja qual for o nome que se lhe dê (Maytenus senegalensis ou Gymnosporia senegalensis), este arbusto, que na Europa só ocorre no sudeste de Espanha, é o solitário representante europeu de uma estirpe numerosa (mais de 100 espécies) distribuída por três continentes: África, Ásia e Oceânia. Nas ilhas da Macaronésia existem duas espécies endémicas dessa linhagem: Maytenus umbellata (= Gymnosporia dryandri) na Madeira, e Maytenus canariensis (= Gymnosporia cassinoides) nas Canárias; ambas têm as folhas bem maiores do que a planta almeriense (que não é exclusivamente europeia, pois também existe no norte de África).

Helianthemum abelardoi Alcaraz


As plantas do género Helianthemum, a que normalmente chamamos sargacinhos, e que podem ser herbáceas ou pequenos arbustos, são notoriamente difíceis de destrinçar, ocasionando por vezes entre especialistas insanáveis divergências de opinião quanto à melhor arrumação taxonómica. Na província de Almeria são frequentes os sargacinhos arbustivos de flores brancas, estando identificadas na região pelo menos três espécies distintas, duas das quais endémicas. O H. abelardoi, que vive em zonas costeiras áridas entre Almeria e Múrcia, foi descrito apenas em 2015 em artigo na revista Flora Montiberica (PDF), e distingue-se pelas folhas densamente revestidas por pêlos estrelados ásperos (claramente visíveis na foto acima).

Lafuentea rotundifolia Lag.


Endémica do sudeste peninsular, onde aparece com alguma assiduidade em escarpas e muros, a Lafuentea rotundifolia faz lembrar a figura mítica do centauro: as hastes floríferas, que parecem bastões (não muito contundentes), dir-se-iam enxertadas a trouxe-mouxe numa base de marroio, pois as folhas redondas, de margens crenadas, são quase iguais às da Ballota hirsuta. Contudo, esta orejilla de roca, como é popularmente chamada, nem sequer pertence à família das labiadas. Tem a distinção de ser uma das duas únicas espécies do seu género: a outra, Lafuentea jeanpertiana, vive no Anti-Atlas marroquino.

Sarcocapnos enneaphylla (L.) DC.


Da família das papoilas, e apresentando fortes semelhanças com as muito comuns herbáceas do género Fumaria, o Sarcocapnos enneaphylla (ou zapatitos de la Virgen) ganharia facilmente em beleza às plantas suas vizinhas. Mas isto não é um concurso para a eleição da Miss Planta, e por isso a beleza é apenas um detalhe em que é impossível não reparar — embora, por uma questão de educação, não convenha olhá-la de modo insistente. Todas as partes da planta são pequenas, bem proporcionadas, de um design impecável: as flores brancas, tubulares, manchadas de vermelho e amarelo; as folhas glaucas, miudamente recortadas, com segmentos carnudos e arredondados. Não é planta rara, e de facto está distribuída por toda a metade oriental da Península Ibérica, mas é sempre gratificante encontrá-la.

09/07/2025

O deserto e as serras



A serra de Alhamilla, no sudeste de Espanha, dista do litoral uma dezena de quilómetros, mas já esteve mais perto. Há uns 8 milhões de anos, a ponta sudeste da Península Ibérica estava inundada pelo mar Mediterrâneo. As serras do maciço central de Almería nasceram pouco tempo depois, após intensa actividade vulcânica. A serra de Alhamilla é feita de xistos e quartzitos, entremeados por afloramentos calcários e arenitos. Este é um solo que se esfarela facilmente e que a erosão tem vindo a deformar em picos (o mais alto eleva-se aos 1380 m) de vertentes muito inclinadas. O clima na serra é mediterrânico, claro, mas com tendência para a versão seca e ventosa.

A descrição anterior parece ser a de um habitat demasiado adverso para a fixação de plantas. Na verdade, comparada com o deserto que a rodeia, a serra é um oásis. Além de bosques antigos de azinheiras e pinheiros, há o ar húmido que lhe chega do mar e se enovela em nevoeiros densos e persistentes, e a chuva no Outono, por vezes torrencial. E, convenhamos, foi a necessidade de sobreviver em solo resvaladiço e clima semi-árido que criou condições para surgirem os endemismos que nos levaram a Almería.

Pouca gente vive na serra de Alhamilla e os caminhos que a atravessam são raros, estreitos e não asfaltados, ou com piso bastante esburacado. Esta falta de infraestruras é enervante para citadinos como nós, mas assim, dificultando o acesso a locais que requerem protecção estrita, se tem preservado com eficácia a biodiversidade deste ecossistema único. As espécies nas fotos que se seguem vivem no topo da serra, a cerca de 1300 m de altitude.

Silene aellenii Sennen


A Península Ibérica é terra de muitos assobios. Este é exclusivo do sudeste de Espanha e do noroeste de África. É uma herbácea anual, penugenta e muito glandulosa, com lindas flores de cor carmim. Os núcleos populacionais desta espécie em Alhamilla parecem estáveis e bem conservados.

Linaria arvensis (L.) Desf.


Esta ansarina pequenina, de flores azul-violeta com brácteas penugentas e glandulosas, lembra a L. micrantha que ocorre nos olivais de sequeiro, com solo argiloso básico, do Alentejo. São ambas espécies anuais, mas distinguem-se bem, quando em flor, pelo esporão, que na L. arvensis é mais longo e recurvado. Há registo da sua presença no sul e centro da Europa, por isso não será surpresa se um dia alguém a encontrar por cá.

Nonea micrantha Boiss. & Reut.


Talvez porque o topo da serra de Alhamilla é frio e ventoso no Inverno, e árido no Verão, esta boraginácea anual de folhas com margens onduladas também se reveste com um indumento protector nos talos e flores. A sua morfologia é semelhante à da Nonea vesicaria, de que há registos no interior e litoral sul do país e que, curiosamente, também vimos no nordeste, em Torre de Moncorvo. Um artigo de B. Valdés dá conta da existência, em 1980, de exemplares de N. micrantha na ponta de Sagres, mas não foram vistos nas últimas décadas.

Arabis verna (L.) R. Br.


Ao contrário das espécies anteriores, é certo a Arabis verna ocorrer em Portugal (vimo-la nas serras de Aire e Candeeiros), partilhando com as plantas da serra de Alhamilla a preferência por locais frescos com solo pedregoso básico. Por cá está em risco, porque há poucos núcleos conhecidos e todos de dimensão reduzida. E, obviamente, também não ajudam a limpeza excessiva das bermas de caminhos, as obras de beneficiação de estradas, e a expansão de pedreiras.

26/06/2025

Vida no mar de plástico



Calcula-se que as estufas da província de Almeria, no sudeste de Espanha, ocupem uma área de uns 400 km2, o que é, aproximadamente, dez vezes a área da cidade do Porto. Seria como se, entre a foz do Douro e Vila do Conde, e entrando pelo interior até Santo Tirso e Valongo, tivéssemos um imenso quadrilátero preenchido com estufas brancas que não deixassem uma nesga de terreno livre. Onde viveriam as pessoas? Para onde poderiam elas fugir para escaparem à visão apocalíptica do mar de plástico?

Almeria, felizmente, é bastante extensa, de modo que a área coberta por estufas representa menos de 5% da superfície total da província. Mas, estando concentradas nas zonas baixas junto à costa, onde também se situam as povoações mais populosas, as estufas acabam por ser demasiado visíveis. As cidades de Níjar, Campohermoso, El Ejido e várias outras são pequenas ilhas urbanas inteiramente rodeadas pela branca extensão das estufas: para entrar ou sair dessas cidades precisamos de atravessar muitos quilómetros deste plástico mais ou menos alvacento.

O desagradável impacto visual das estufas torna difícil pôr as coisas em perspectiva. Sabemos que nós, humanos, somos muitos para o planeta que habitamos, e que a produção dos bens que sustentam o nosso estilo de vida causa feridas difíceis de sarar. O que choca em Almeria é termos à vista o impacto que uma produção desmesurada (mas essencial, pois responde a uma necessidade humana básica) pode ter numa paisagem. Normalmente somos poupados ao conhecimento das condições de produção dos bens que consumimos: são coisas feitas na China, ou no vale do Ave, ou na Marinha Grande, em lugares que não temos qualquer interesse em visitar. Há uma fealdade associada a essa produção que não nos incomoda por estar longe da vista: o que nos importa é que a cidade onde moramos seja bonita, asseada e respirável.

De resto, que as áreas de produção agrícola sejam muito mais extensas do que as áreas urbanas é da ordem natural das coisas. O que acontece em Almeria é que o modelo agrícola seguido (e que é, aparentemente, o único viável naquele território) cria uma paisagem inóspita, muito ao avesso da imagem romântica que os bucólicos urbanos têm do campo e da agricultura. Na verdade, nem os cultivos esteticamente aprazíveis estão isentos de impactos sérios no ambiente (pensemos nos campos de girassóis em Espanha ou nos campos de lavanda em França), nem o cultivo em estufa é necessariamente pior do que o cultivo ao ar livre. Contudo, cria um problema sério, que é o de lidar com o envelhecimento dos plásticos que cobrem as estufas: esvoaçantes farrapos de plástico vêem-se por todo o lado em Almeria.

Centaurea involucrata Desf.


O que sobra de natureza no meio desta inundação de plástico branco? Muita coisa, bem mais do que seria de esperar numa região intensamente agrícola. Ilustramos esta asserção com três plantas notáveis, de três famílias distintas, que integram a riquíssima flora de Almeria.

Começamos com uma asterácea pertencente ao populoso género Centaurea, que conta com quase 100 espécies na Península Ibérica e reúne plantas semelhantes aos cardos mas, por regra, com folhas não espinhosas. Trata-se da Centaurea involucrata, uma planta anual de porte baixo que pode formar moitas consideráveis, e que se destaca pelos capítulos grandes, amarelos e vistosos, resguardados antes de se abrirem por uma perfeita armadura esférica de brácteas. É uma planta sobretudo norte-africana (Marrocos e Argélia) que tem em Almeria o seu único contingente europeu. Encontrámo-la em terrenos ruderalizados bem no centro do mar de estufas.

Antirrhinum mollissimum Rothm.


Almeria é especialmente rica em bocas-de-lobo ou dragoncillos. Já aqui trouxemos o Antirrhinum charidemi, endémico do Cabo de Gata, e mostramos agora o Antirrhinum mollissimum, outro endemismo almeriense, este agradavelmente felpudo, frequente em paredes urbanas, taludes de estrada, e muros próximos das estufas. Também surge, há que dizê-lo, em escarpas e barrancos, mas gosta de ter gente na vizinhança e parece especialmente vocacionado para espaços alterados.

Genista umbellata (L'Hér.) Poir.


A Genista umbellata é outra heroína das estradas em redor de Almeria. Pela forma almofadada e pela disposição das flores em umbelas sésseis nas extremidades dos ramos, essa giesta faz lembrar a caldoneira (Echinospartum ibericum), um arbusto espinhoso e de ramos rígidos característico dos afloramentos graníticos da serra da Estrela e de outras serras portuguesas. Contudo, basta pormos-lhe a mão para que a confusão se desfaça: a planta almeriense (que, na verdade, está presente em quase todo o sul de Espanha) tem ramos flexíveis e nada pungentes, e qualquer herbívoro a pode trincar sem risco de ferir a língua.

18/06/2025

África aqui tão perto



O sudeste da Península é a região com maior quantidade de endemismos e maior variedade de habitats da Europa. Para isso muito contribui uma orografia invulgar, com várias serras próximas da costa, bafejadas por ventos marítimos e com um clima ameno. A serra Nevada, que em Abril ainda exibe os cumes cobertos de neve, ilustra bem a biodiversidade notável desta região. Em conjunto, porém, essas montanhas isolam alguns locais das correntes húmidas do mar Mediterrâneo. Aí a chuva é muito escassa e registam-se temperaturas elevadas durante todo o ano. O processo é conhecido: o vento vindo do mar, carregado de humidade, sobe a montanha, larga no topo a água que transporta e, ao descer, está reduzido a ar muito quente e seco. Estão assim reunidas as condições para se instalar a aridez e o solo ralo, onde a vegetação mais tenaz é herbácea. Parece ser esta a origem do deserto de Tabernas, na província de Almería: uma vasta extensão de margas e arenitos, encaixada entre a Serra de los Filabres, a norte, e a Serra Alhamilla, a sueste. Visitámos este deserto em Abril, depois de duas semanas em que se registou alguma precipitação em Almería. Com sorte, pensámos, poderíamos vê-lo florido.

E, sim, encontrámos uma paisagem extraordinária, recheada de endemismos, alguns de óbvia ascendência africana, outros que são versões, adaptadas à secura e salinidade, de espécies comuns noutras paragens.

Linaria nigricans Lange


Esta Linaria é uma herbácea anual que não ultrapassa os 20cm de altura, de corola branca, por vezes levemente riscada de violeta, e esporão longo. Tem semelhanças, mas também diferenças morfológicas importantes, com a nossa Linaria elegans. É um endemismo raro do sudeste de Espanha.

Koelpinia linearis Pall.


A Koelpinia linearis é uma asterácea anual com flores de cor amarelo-limão, muitas folhas fininhas e longas, e um fruto de formato bizarro. Aprecia prados semi-desérticos, e a sua distribuição inclui também o Médio Oriente e o norte de África. A única população conhecida na Europa é a do sudeste de Espanha. Curiosamente, no recanto arenoso do deserto de Tabernas onde a vimos acompa­nhavam-na inúmeros pés de Cistanche phelypaea.

Strigosella africana (L.) Botsch. [= Malcolmia africana (L.) W. T. Aiton]


A Strigosella africana é também uma espécie anual, cuja designação oficial na Flora Iberica é Malcolmia africana. O aspecto geral é o de uma planta de porte pequeno (não mais de 40 cm de altura), com folhagem contorcida pela secura e lindas (mas diminutas) flores rosado-violáceas que amadurecem amarelas. Vimo-la no bordo de um caminho argiloso, a enfrentar estoicamente o sol com os talos rígidos ramificados a partir da base e cobertos de pêlos protectores.