05/12/2025

Plantas do rés-do-chão



Com a vulgarização dos telemóveis inteligentes, muito gente, para não perder pitada das novidades personalizadas que o algoritmo lhe fornece a cada instante, passou a andar sempre de pescoço vergado. Além do desgaste da visão associado a esse comportamento obsessivo, é de recear que tal vício de postura provoque a médio prazo dolorosas lesões musculares ou ósseas. Contudo, e há muito mais tempo do que os ditos aparelhos, existem profissões que também induzem os seus praticantes a manter o pescoço dobrado por períodos nocivamente longos. Uma delas é a de botânico especializado em plantas pequeninas, dessas que crescem rentes ao chão — se bem que observar de baixo a copa de árvores descomunais como sequóias ou araucárias também possa provocar torcicolos. Cá por casa gostamos de plantas pequenas, médias ou grandes, pelo que curvamos o pescoço em todas as direcções. Sendo nós amadores, esse exercício não é tão assíduo como gostaríamos, o que acaba por ser benéfico para a nossa saúde.

É de plantas rasteiras avistadas na província de Almeria que trata este texto, e uma óbvia vantagem da pequenez é que num único fascículo conseguimos acomodar quatro espécies.

Aizoon hispanicum L. [= Aizoanthemopsis hispanica (L.) H. E. K. Hartmann]


O Aizoon hispanicum é uma herbácea anual algo suculenta, de caules ramificados que não excedem os 25 cm de comprimento, com flores brancas de uns 2 cm de diâmetro, que vive em terrenos secos e pedregosos da região mediterrânica. Um dos nomes que lhe quiseram dar em português, estrelinha-das-arribas, justifica-se pela sua ocorrência (ainda que rara) no litoral algarvio e pela sua acentuada predilecção por zonas costeiras. No nordeste da Península Ibérico, porém, ela aventura-se bem longe do mar, ao longo do vale do rio Ebro.

Calendula tripterocarpa Rupr.


Versão abreviada da erva-vaqueira (Calendula arvensis), tão comum em pomares e orlas de campos de cultivo, a Calendula tripterocarpa partilha as preferências de habitat com a espécie anterior, tanto que a encontrámos no mesmo local. O que é inteiramente apropriado, pois Almeria é a única região europeia onde a planta é conhecida. De resto, a sua área de distribuição abrange Marrocos, Argélia, Tunísia e Israel; e, embora ela tenha sido igualmente assinalada nas Canárias, uma revisão do género Calendula, publicada em 2024 por quatro botânicos portugueses e um espanhol, concluiu que o que existe no arquipélago é uma espécie próxima mas distinta, endémica dessas ilhas.

Tripodion tetraphyllum (L.) Fourr.


É quase indesculpável que uma planta tão bonita como o Tripodion tetraphyllum, ademais tão frequente em paragens algarvias, tenha sido obrigada a esperar pela nossa viagem a Almeria para finalmente, com dez ou vinte anos de atraso, a exibirmos no escaparate. A desculpa, claro, é que o desfasamento entre as nossas viagens a sul e a data de floração da planta não nos permitia observá-la no seu melhor momento. Agora que o enguiço foi quebrado, cumpre-nos deixar um conselho aos nossos leitores: quem não queira sofrer frustração como a nossa deve programar as suas idas ao Algarve (ou a Almeria, por que não?) para Março ou Abril.

Lotononis lupinifolia (Boiss.) Benth. [= Leobordea lupinifolia Boiss.]


Mais uma leguminosa, e mais uma planta norte-africana que foi capaz de meter uma lança na Europa, mas só em Almeria. Fácil de ignorar por ser minúscula e confundível, a um olhar distraído, com alguma espécie de Lotus, a Lotononis lupinifolia parece ser sumamente rara, não havendo dela registos recentes nos dois países magrebinos (Marrocos e Argélia) onde se presume que exista. O epíteto lupinifolia é certeiro, pois as folhas digitadas compostas por cinco folíolos são iguaizinhas às dos tremoceiros (género Lupinus). O género a que a planta pertence tem suscitado alguma controvérsia: descrita em 1838, pelo botânico suiço Pierre Boissier, como Leobordea lupinifolia, em 1843 o inglês George Bentham arrumou-a no género Lotononis (amálgama de Lotus e Ononis), e em 1923 o espanhol Carlos Pau quis fixá-la no género Amphinomia, inventado por De Candolle (outro suiço) um século antes. Durante muitos anos, e como atesta a Flora Iberica, foi a proposta de Bentham que teve melhor acolhimento; mas as referências mais recentes (entre elas o Plants of the World Online e o EuroMed Plantbase) têm dado primazia ao nome original. Curiosamente, das cerca de cinquenta espécies que perfazem o género Leobordea, pelo menos quarenta estão confinadas à África do Sul.

28/11/2025

Ramalhete de endémicas



Em Menorca, o mar Mediterrâneo está quase sempre à vista, e de perto pois a altitude não excede os 340 metros. É inevitável, para quem visita a ilha, passear demoradamente à beira mar, onde não faltam passadiços pelo areal avermelhado ou de tom ocre, e caminhos estreitos mas bem cuidados desde o topo dos penhascos até às baías com água azul-turquesa. Apesar da presença de inúmeros turistas, a costa de Menorca é um habitat bem preservado, por vezes com zonas interditadas para conservação de alguns endemismos raros. Exemplo disso é Cala del Pilar, uma praia na costa norte moldada pela tramontana (o sussurro de Menorca), um vento frio e seco que, dizem, chega a Menorca revigorado pela viagem desde os Alpes. A vegetação neste local é testemunha dessa permanente agitação atmosférica, do ar limpo e quase sem humidade, que a mantém saudável mas de pequeno porte. Não surpreende que a maioria das plantas que aqui se encontram sejam arbustos ou herbáceas perenes de base lenhosa, com talos prostrados a formar coxins atarracados e folhame muito penugento. Quando também ocorrem em Maiorca, frequentemente colonizam também nichos nas montanhas, até cerca de 1400 metros acima do mar, em taludes e rochedos sem tanta ventania. É o caso das três espécies que vos mostramos hoje.

Thymelaea velutina (Cambess.) Endl.


Este endemismo de Menorca e Maiorca é uma planta arbustiva com cerca de 50 cm de altura, revestida de indumento denso que lhe dá um aspecto aveludado. As folhas são imbricadas e as flores, que nascem entre Fevereiro e Julho nas axilas das folhas, agrupam-se em capítulos terminais com 2 a 3 flores. É uma espécie dióica (as flores masculinas e as femininas nascem em pés distintos); nas fotos acima pode identificar essa separação (à esquerda, está a flor masculina). O género Thymelaea abriga um número considerável de espécies que apreciam a beira-mar, agasalhadas do vento e da maresia pela lanugem, gastando por isso quase todos os epítetos que em taxonomia se referem a esta camada protectora: T. hirsuta, T. lanuginosa, T. velutina, T. villosa, T. pubescens...

Digitalis minor L.
A herba de Santa Maria (ou didals de la Mare de Déu) é mais um endemismo das ilhas Baleares, ocorrendo em fissuras de rochas calcárias junto ao mar, e nas montanhas de Maiorca até aos 1400 m. É uma herbácea perene de base lenhosa, com uma roseta densa de folhas basais e uma haste floral, coberta de pêlos curtos, que pode atingir os 80 cm de altura. Distingue-se bem da maioria das espécies do género Digitalis, e em particular da D. purpurea, pela menor envergadura, pelas flores por vezes brancas (embora em regra sejam rosadas), e por a corola ter os lóbulos laterais do lábio inferior mais proeminentes.

Santolina magonica (O. Bolòs & al.) Romo


Partilhando as mesmas areias compactas do litoral, ou as mesmas encostas pedregosas de origem calcária em matos de montanha até os 1400 m, ocorre um subarbusto de uns 40 cm de altura com folhagem glandulosa acinzentada, muito peludinha e aromática, que parece formar bolinhas de algodão agarrados aos ramos. Trata-se de uma espécie do género Santolina, também endémica das Baleares (Maiorca e Menorca) e bastante resistente à secura. Os capítulos de flores, em geral solitários e inicialmente da cor do limão, têm cerca de 1 cm de diâmetro, com as flores do bordo a desabotoarem antes das do centro. Apresenta algumas semelhanças com a ibérica S. rosmarinifolia. Procurámos informação sobre a origem do epíteto específico magonica e, depois de lermos na Flora ibérica que um dos nomes vernáculos desta planta é manzanilla de Mahón (ou camamilla de Maó), o Paulo descobriu que a designação latina de Mahón (ou Maó) é Portus Magonis, e o mistério sobre o epíteto ficou resolvido: é uma referência toponímica à região de Mahón (Maó), onde esta planta foi primeiramente descrita.

21/11/2025

Virtudes da maleza



No sul da província de Almeria, a mancha branca das estufas estende-se da costa até ao sopé da serra de Gádor, lambendo-lhe os pés como se fosse um grande lago defeituoso, incapaz de reflectir o recorte da montanha. Dos cumes descem barrancos que, de muitos em muitos anos, podem converter-se em ribeiras torrenciais quando há borrasca da grossa. Subimos por um dos barrancos, escolhido mais ou menos ao acaso, num dia de Abril em que a chuva, posto que moderada, fez questão de marcar o ponto. Talvez a nossa presença tenha induzido as nuvens a confundir as áridas paisagens andaluzes com as verdes paragens nortenhas.

Rambla de la Maleza era como se chamava o barranco em questão. Rambla é o nome que se dá em espanhol ao leito seco de um rio, e maleza significa mato ou vegetação rasteira. Nome inteiramente apropriado, mas que se ajustaria não menos bem a muitas dezenas de acidentes geográficos similares na mesma região. Como é nossa sina, foi a maleza que nos trouxe a este lugar, a maleza que em Almeria nunca nos deixou ficar mal. Em seguida mostramos três das plantas mais assinaláveis que compunham a maleza desta rambla.

Convolvulus lanuginosus Desr.


Vulgarmente conhecidas como corriolas, as plantas do género Convolvulus e de outros géneros aparentados (como Ipomoea e Calystegia) reconhecem-se pelas flores em forma de trombeta, sem pétalas individualizadas. Muitas delas são herbáceas anuais, sendo esse o caso da espécie mais comum em Portugal, Convolvulus arvensis, e de várias outras que surgem sobretudo na metade sul do país: C. tricolor, C. siculus, C. meonanthus e C. humilis. Em contraste com estas temos as espécies lenhosas, de que a maioria vive nas ilhas da Macaronésia (exemplos aqui e aqui) mas contando-se entre as excepções o Convovulus fernandesii, endemismo da serra da Arrábida. O Convolvulus lanuginosus, que acima ilustramos, situa-se entre estes dois extremos por ser uma herbácea perene de base lenhosa. Os caules, erectos ou prostrados, densamente penugentos, atingem os 60 cm de comprimento, as folhas são lineares e sésseis, e as flores, de um cor-de-rosa pálido, têm uns 3 cm de diâmetro. Ausente de Portugal, distribui-se pela costa mediterrânica de Espanha, sul de França e Marrocos.

Carthamus arborescens L.


Sendo incontroverso que cardos há muitos, o cardo-arbóreo (Carthamus arboreus) exibe uma envergadura que o impõe a toda a concorrência: atinge os três metros de altura, e as suas hastes grossas, muito ramificadas, são bastamente guarnecidas com folhas coriáceas e espinhentas. Apesar de a floração ser ainda incipiente no início de Abril, não podíamos deixar de aqui registar o nosso encontro com um gigante que, à sua maneira, não deixa de ser amável — se nos mantivermos a uma distância respeitosa.

Genista spartioides Spach


Tal como as duas plantas anteriores, esta giesta, de seu nome Genista spartioides, não existe em Portugal, embora não nos faltem giestas de aspecto semelhante. Uma delas é a G. cinerascens, que ocorre em Trás-os-Montes e na Beira Alta: é também uma giesta sem espinhos, de porte não muito elevado (fica-se pelo metro de altura), com caules profundamente estriados. É instrutivo notar, porém, que a G. cinerascens tem folhas persistentes, presentes em simultâneo com as flores, enquanto que as folhas da G. spartioides são muito fugazes, em geral ausentes aquando da floração. Além disso, e como se observa na última foto acima, as flores da G. spartioides têm uma quilha muito saliente, que por vezes quase duplica o comprimento das asas. Esta última característica permite facilmente destrinçar a G. spartioides de congéneres suas que ocupam habitats semelhantes na província de Almeria. Sirva de exemplo uma quase sósia da G. cinerascens, a G. jimenezii, ilustrada abaixo com fotos obtidas no Cabo de Gata.

Genista jimenezii Pau

09/11/2025

Maleiteiras maiores e menores

Contando com mais de 2000 espécies distribuídas por zonas tropicais, subtropicais ou temperadas de todo o mundo, o género Euphorbia ocupa, de acordo com as mais recentes contagens, apenas o sexto lugar no campeonato dos géneros botânicos mais populosos. Contudo, se o critério for o da diversidade morfológica, é difícil que outro género lhe leve a palma: desde pequenas árvores (como a açoriana E. santamariae ou a madeirense E. mellifera) a plantas suculentas com aspecto cactóide (como a E. canariensis ou a E. handiensis), desde arbustos lenhosos profusamente ramificados a herbáceas anuais ou perenes dos mais diversos tamanhos, desde plantas agressivamente espinhentas (como a E. milii) a outras delicadamente inermes (como a E. pulcherrima), não há forma ou feitio que as eufórbias não tenham alguma vez experimentado. E a pergunta impõe-se: que haverá de comum em plantas aparentemente tão diversas para elas serem arrumadas no mesmo género botânico?

É nas flores que as plantas revelam a sua filiação, e não há inflorescências mais peculiares que as das eufórbias. A componente básica é o ciátio, pequena estrutura em forma de taça que contém numerosas flores masculinas rudimentares, reduzidas a um único estame, rodeando uma flor feminina com três estigmas; os frutos são cápsulas com três sulcos longitudinais. (Esta descrição está ilustrada nas fotos 7 a 9 em baixo.) Não há pétalas nem sépalas, mas em certas espécies tropicais o conjunto pode ser alegrado por brácteas de cores vistosas. Nas espécies europeias, a modesta função ornamental, destinada apenas a atrair polinizadores, é tarefa dos quatro ou cinco nectários, amiúde amarelos ou vermelhos, que bordejam cada ciátio.

Mesmo que não estejam armadas com espinhos, as eufórbias sabem defender-se. Quase todas as espécies do género produzem um látex altamente irritante para a pele, e é por isso péssima ideia arrancá-las à mão ou por meios mecânicos sem nos protegermos com luvas e viseiras. Daí muitas delas serem conhecidas por nomes como leiteira ou maleiteira: o leite não é de beber, mas há a crença, nem sempre infundada, de que as propriedades cáusticas do látex podem ajudar a sarar certas feridas ou maleitas da pele.

Euphorbia squamigera Loisel.


As maleiteiras que hoje mostramos, todas elas fotografadas no sudeste de Espanha, entre Granada e Almeria, cingem-se à ortodoxia do que deve ser uma eufórbia europeia normal. Por nada terem de extravagante, é como se fossem já nossas velhas conhecidas mesmo quando as encontramos pela primeira vez.

Formando moitas arredondadas com cerca de um metro de altura, a Euphorbia squamigera aguardava-nos na estrada da vertente norte da serra de Alhamilla que liga o pico Colativí ao deserto de Tabernas. Fiadas de arbustos que diríamos abundantemente floridos de amarelo guarneciam algumas dezenas de metros da berma da estrada. Feita a paragem e a obrigatória inspecção, o arbusto revelou-se uma eufórbia, e o amarelo vistoso afinal pertencia às brácteas e não às flores. A Euphorbia squamigera, que se reparte entre o sul de Espanha e o norte de África, parece ser escassa em toda a sua área de distribuição, e por isso serão poucos os troços rodoviários como este. É de estranhar que, em toda a descida, não nos tenhamos cruzado com mais gente que fosse, como nós, apreciar tão raro espectáculo.

Euphorbia nevadensis Boiss. & Reut.


Reduzindo a escala, debruçamo-nos agora sobre maleiteiras de menor porte. Tendo nós subido ao topo da serra Nevada para encontrar a Euphorbia nevadensis, garante a Flora Iberica que tal esforço não seria necessário, pois a espécie vegeta, a altitudes pouco superiores a 1000 metros, na generalidade das cadeias montanhosas do sul de Espanha. Trata-se de uma herbácea perene, rizomatosa, glabra, com múltiplos caules erectos ou prostrados, cada qual com não mais que 40 cm de comprimento. As inflorescências são umbeliformes, os frutos apresentam-se moderamente rugosos, e os nectários, de um amarelo alaranjado, são rematados por curtos apêndices.

Euphorbia flavicoma DC.


A Euphorbia flavicoma, por nós também encontrada na serra Nevada, é uma espécie de distribuição mediterrânica que só em 2018 passou a integrar oficialmente a flora portuguesa, ao ser descoberta por Miguel Porto algures no concelho de Rio Maior. Na serra Nevada, talvez por adaptação às condições agrestes, é uma planta rasteira, miúda e bastante discreta. Distingue-se pelas inflorescências curtas e pouco ramificadas, pelos nectários vermelhos e sem apêndices, e pelas cápsulas muito verrucosas.

Euphorbia dracunculoides subsp. inconspicua (Ball) Maire


A Euphorbia dracunculoides, a menor das maleiteiras hoje no escaparate, é uma planta anual de porte exíguo, raramente excedendo os 20 cm de altura. Encontrámo-la no Cabo de Gata, no litoral de Almeria. Para lhe vermos os detalhes, a ajuda de uma lupa é indispensável, pois cada ciátio tem de 1 a 2 mm de diâmetro. Assim equipados, podemos constatar que os nectários apresentam apêndices longos e filiformes, e que as cápsulas são inteiramente lisas e com sulcos bem vincados.