28/07/2025

Por um punhado de plantas



Acontece-nos, por vezes, não descobrir os termos precisos para descrever uma paisagem. Veja-se o exemplo do deserto de Tabernas que, apesar de ser uma região muito seca, não tem apenas vegetação xerófila rudimentar, como deveria para honestamente poder chamar-se deserto. É-nos permitido, contudo, apelar a meias-palavras: semi-deserto de Tabernas, querendo de facto dizer quase-deserto. O que me faz lembrar um fim de tarde, com a minha irmã a chegar a casa de um longo dia de escola no ensino básico, trazendo na mochila a avaliação de uma ficha de História: Mau+. Indiferente à aflição geral com tal desaire, a questão que então a minha irmã quis ver definitivamente esclarecida foi a do papel do sufixo: Mau+ é melhor ou pior do que Mau? Pois neste deserto-que-ainda-não-o-é, a biodiversidade é notável, com muitas espécies que se adaptaram à aridez, ao solo pobre, arenoso ou margoso, e ao ambiente quente e salino. Quem sabe, talvez essa vegetação exuberante impeça a tempo que o meio-deserto se torne num por inteiro. Não é, por isso, claro se o prefixo semi prevê o futuro ou conta o passado deste habitat.

Euzomodendron bourgaeanum Coss.


O saramago das fotos é um dos melhores exemplos de vegetação xerófila adaptada a este quase-deserto. Trata-se de um endemismo de Almería, que já foi mais abundante. A semelhança entre esta aridez e a dos desertos da América do Norte (embora aqui não existam cactos) levou à construção, entre 1950 e 1980, de cenários para filmes de faroeste e afins, o que dizimou inúmeros exemplares desta espécie. Por um punhado de dólares, com Clint Eastwood; Era uma vez no oeste, com Henry Fonda e Claudia Cardinale; Lawrence da Arábia, com Peter O'Toole; Cleópatra, com Elizabeth Taylor, e Indiana Jones e a Última Cruzada, com Harrison Ford e Sean Connery, são alguns dos culpados.

Notem como a morfologia das flores é parecida com as das espécies do género Coincya que conhecemos por cá. O Euzomodendron, porém, é arbustivo, lenhoso e perene, muito ramificado, com folhas carnudas onde se espetam pêlos espinhosos, e longas raízes que lhe permitem sobreviver em habitat extremamente seco. Pode atingir 1 m de altura e floresce no fim do Inverno. No Verão, as plantas perdem quase todas as folhas e reduzem-se a troncos ressequidos. Euzomodendron é um género monoespecífico e, dizem, uma relíquia do Jurássico. O epíteto bourgeanum homenageia o naturalista francês Eugène Bourgeau (1813-1877), que colheu amostras desta planta numa viagem à província de Almería em 1851.

Senecio flavus (Decne.) Sch. Bip.


Esta asterácea é outro indício de que não estamos num deserto de dicionário, feito apenas de areia, vento e dunas. Depois de calcorrear taludes e montes, eis-nos chegados ao vale de um rio, com vestígios de ter aqui corrido água há poucas semanas. E é no bordo, a refrescar-se no lodo arenoso, que esta herbácea anual, com não mais de 30 cm de altura mas bastante ramificada, se dá bem. Sobressairia o tom de amarelo intenso das inflorescências caso elas abrissem mais, e é precisamente a essa tonalidade que o epíteto específico flavus alude. As folhas são carnudas, de cor púrpura na face inferior, tendo as mais baixas um pecíolo longo enquanto as superiores abraçam o caule — o que faz com que as folhas pareçam abanicos. As populações europeias desta espécie estão em Espanha, havendo registos da sua ocorrência em Murcia e Almería e em algumas das ilhas Canárias.

Limonium echioides (L.) Mill.


Em local próximo, ainda no fundo arenoso-argiloso do rio, havia inúmeros exemplares de deste Limonium, planta anual da bacia do Mediterrâneo que em Portugal continental ocorre, embora seja rara, entre o cabo Espichel e o Barlavento Algarvio. Era Abril, e pudemos finalmente ver-lhe as flores.

Astragalus alopecuroides subps. grosii (Pau) Fern.


Florindo também entre Março e Abril, este Astragalus perene, robusto e peludinho, de enormes flores amarelas, foi outra agradável surpresa do já-nada-convincente-deserto de Tabernas. Aprecia matos ralos sobre substrato calcário. É mais um endemismo do sudeste da Península Ibérica, onde o género Astragalus abriga mais de 40 espécies.

17/07/2025

Rio de areia



Quem sai de Almeria em direcção a El Ejido, que fica uns doze quilómetros a oeste, atravessa uma costa nua e escarpada, sem préstimo agrícola e sem sinal de habitações, e que também não parece vocacionada para aproveitamento turístico. As praias são estreitas faixas pedregosas, acessíveis por caminhos íngremes; as duas estradas paralelas (uma delas é auto-estrada) sobrevoam barrancos de terra avermelhada empoleiradas em altos viadutos. São barrancos que hoje em dia só levam areia, memória de rios que noutras eras geológicas desciam das alturas da serra de Gadór. Com 2247 m de altitude máxima, a serra de Gadór é, a seguir à serra Nevada, a mais alta da província de Almeria, e são os seus contrafortes que formam esta paisagem acidentada, a que muitos chamariam desolada, aqui bem junto ao Mediterrâneo.

Um pouco ao acaso, escolhemos visitar o barranco de la Garrofa, que até dispõe de estacionamento conveniente logo à entrada. É um local muito frequentado por praticantes de escalada; sê-lo-á menos por aficionados de botânica, o que poderá dever-se ao desconhecimento ou ao preconceito. As primeiras impressões não são agradáveis: à aridez da terra ressequida e à nudez das escarpas soma-se o desmazelo do lixo. Mas o coberto vegetal ralo e desordenado não é formado por plantas vulgares, e em poucos minutos sabemos que viemos ao lugar certo. Não exigiria grande forma física caminhar muitas centenas de metros pelo barranco adentro, mas na verdade não vamos longe, obrigados pelas muitas novidades botânicas a paragens constantes e demoradas. Esta é uma pequena amostra do que vimos nesse memorável passeio.

Maytenus senegalensis subsp. europaea (Boiss.) Güemes & M. B. Crespo


A dois ou três metros do ponto onde estacionamos está em flor este arbusto que, a um olhar mais míope, se diria pertencer ao género Rhamnus. Contudo, a morfologia das flores logo desmente essa filiação: têm pétalas brancas bem visíveis, ao passo que no género Rhamnus as pétalas são inconspícuas ou inexistentes. De facto, seja qual for o nome que se lhe dê (Maytenus senegalensis ou Gymnosporia senegalensis), este arbusto, que na Europa só ocorre no sudeste de Espanha, é o solitário representante europeu de uma estirpe numerosa (mais de 100 espécies) distribuída por três continentes: África, Ásia e Oceânia. Nas ilhas da Macaronésia existem duas espécies endémicas dessa linhagem: Maytenus umbellata (= Gymnosporia dryandri) na Madeira, e Maytenus canariensis (= Gymnosporia cassinoides) nas Canárias; ambas têm as folhas bem maiores do que a planta almeriense (que não é exclusivamente europeia, pois também existe no norte de África).

Helianthemum abelardoi Alcaraz


As plantas do género Helianthemum, a que normalmente chamamos sargacinhos, e que podem ser herbáceas ou pequenos arbustos, são notoriamente difíceis de destrinçar, ocasionando por vezes entre especialistas insanáveis divergências de opinião quanto à melhor arrumação taxonómica. Na província de Almeria são frequentes os sargacinhos arbustivos de flores brancas, estando identificadas na região pelo menos três espécies distintas, duas das quais endémicas. O H. abelardoi, que vive em zonas costeiras áridas entre Almeria e Múrcia, foi descrito apenas em 2015 em artigo na revista Flora Montiberica (PDF), e distingue-se pelas folhas densamente revestidas por pêlos estrelados ásperos (claramente visíveis na foto acima).

Lafuentea rotundifolia Lag.


Endémica do sudeste peninsular, onde aparece com alguma assiduidade em escarpas e muros, a Lafuentea rotundifolia faz lembrar a figura mítica do centauro: as hastes floríferas, que parecem bastões (não muito contundentes), dir-se-iam enxertadas a trouxe-mouxe numa base de marroio, pois as folhas redondas, de margens crenadas, são quase iguais às da Ballota hirsuta. Contudo, esta orejilla de roca, como é popularmente chamada, nem sequer pertence à família das labiadas. Tem a distinção de ser uma das duas únicas espécies do seu género: a outra, Lafuentea jeanpertiana, vive no Anti-Atlas marroquino.

Sarcocapnos enneaphylla (L.) DC.


Da família das papoilas, e apresentando fortes semelhanças com as muito comuns herbáceas do género Fumaria, o Sarcocapnos enneaphylla (ou zapatitos de la Virgen) ganharia facilmente em beleza às plantas suas vizinhas. Mas isto não é um concurso para a eleição da Miss Planta, e por isso a beleza é apenas um detalhe em que é impossível não reparar — embora, por uma questão de educação, não convenha olhá-la de modo insistente. Todas as partes da planta são pequenas, bem proporcionadas, de um design impecável: as flores brancas, tubulares, manchadas de vermelho e amarelo; as folhas glaucas, miudamente recortadas, com segmentos carnudos e arredondados. Não é planta rara, e de facto está distribuída por toda a metade oriental da Península Ibérica, mas é sempre gratificante encontrá-la.

09/07/2025

O deserto e as serras



A serra de Alhamilla, no sudeste de Espanha, dista do litoral uma dezena de quilómetros, mas já esteve mais perto. Há uns 8 milhões de anos, a ponta sudeste da Península Ibérica estava inundada pelo mar Mediterrâneo. As serras do maciço central de Almería nasceram pouco tempo depois, após intensa actividade vulcânica. A serra de Alhamilla é feita de xistos e quartzitos, entremeados por afloramentos calcários e arenitos. Este é um solo que se esfarela facilmente e que a erosão tem vindo a deformar em picos (o mais alto eleva-se aos 1380 m) de vertentes muito inclinadas. O clima na serra é mediterrânico, claro, mas com tendência para a versão seca e ventosa.

A descrição anterior parece ser a de um habitat demasiado adverso para a fixação de plantas. Na verdade, comparada com o deserto que a rodeia, a serra é um oásis. Além de bosques antigos de azinheiras e pinheiros, há o ar húmido que lhe chega do mar e se enovela em nevoeiros densos e persistentes, e a chuva no Outono, por vezes torrencial. E, convenhamos, foi a necessidade de sobreviver em solo resvaladiço e clima semi-árido que criou condições para surgirem os endemismos que nos levaram a Almería.

Pouca gente vive na serra de Alhamilla e os caminhos que a atravessam são raros, estreitos e não asfaltados, ou com piso bastante esburacado. Esta falta de infraestruras é enervante para citadinos como nós, mas assim, dificultando o acesso a locais que requerem protecção estrita, se tem preservado com eficácia a biodiversidade deste ecossistema único. As espécies nas fotos que se seguem vivem no topo da serra, a cerca de 1300 m de altitude.

Silene aellenii Sennen


A Península Ibérica é terra de muitos assobios. Este é exclusivo do sudeste de Espanha e do noroeste de África. É uma herbácea anual, penugenta e muito glandulosa, com lindas flores de cor carmim. Os núcleos populacionais desta espécie em Alhamilla parecem estáveis e bem conservados.

Linaria arvensis (L.) Desf.


Esta ansarina pequenina, de flores azul-violeta com brácteas penugentas e glandulosas, lembra a L. micrantha que ocorre nos olivais de sequeiro, com solo argiloso básico, do Alentejo. São ambas espécies anuais, mas distinguem-se bem, quando em flor, pelo esporão, que na L. arvensis é mais longo e recurvado. Há registo da sua presença no sul e centro da Europa, por isso não será surpresa se um dia alguém a encontrar por cá.

Nonea micrantha Boiss. & Reut.


Talvez porque o topo da serra de Alhamilla é frio e ventoso no Inverno, e árido no Verão, esta boraginácea anual de folhas com margens onduladas também se reveste com um indumento protector nos talos e flores. A sua morfologia é semelhante à da Nonea vesicaria, de que há registos no interior e litoral sul do país e que, curiosamente, também vimos no nordeste, em Torre de Moncorvo. Um artigo de B. Valdés dá conta da existência, em 1980, de exemplares de N. micrantha na ponta de Sagres, mas não foram vistos nas últimas décadas.

Arabis verna (L.) R. Br.


Ao contrário das espécies anteriores, é certo a Arabis verna ocorrer em Portugal (vimo-la nas serras de Aire e Candeeiros), partilhando com as plantas da serra de Alhamilla a preferência por locais frescos com solo pedregoso básico. Por cá está em risco, porque há poucos núcleos conhecidos e todos de dimensão reduzida. E, obviamente, também não ajudam a limpeza excessiva das bermas de caminhos, as obras de beneficiação de estradas, e a expansão de pedreiras.