23/08/2007

Uma flor ao fundo do túnel



Túnel da Trindade / Papaver sp.

Não se sabe em que data ou em que circunstâncias se começou a manifestar a doença da cromofobia. Certo é que, quando a patologia foi reconhecida como tal, já ela tomara proporções epidémicas, não apenas no Porto, onde se situa o principal foco infeccioso, mas um pouco por todo o país. Esse reconhecimento é, infelizmente, ainda parcial: a corrente ortodoxa do pensamento médico recusa-se a admitir que tal doença exista; ou, aceitando embora a presença da sintomatologia num número crescente de indivíduos, não considera que ela configure um estado patológico. A esse diagnóstico conservador não será alheio o facto de grande número de portadores da doença (que nunca se assumem como tal) serem pessoas de grande influência e prestígio.

O que distingue a cromofobia de outras anomalias do foro ocular é o seu carácter voluntário: um cromófobo escolheu sê-lo e, em teoria, pode deixar de o ser a qualquer momento. Os arquitectos são a classe mais atingida pela cromofobia, a ponto de haver quem queira declará-la doença profissional. Ela manifesta-se pela recusa horrorizada de qualquer cor que não seja o branco, o verde e o sizento. A natureza, na perspectiva mórbida de tais doentes, devia deixar-se de flores e limitar-se ao verde; por isso os jardins tocados pela cromofobia por interposto arquitecto são resignadamente verdes e apenas verdes.

Não existe tratamento conhecido para a cromofobia. Ou talvez exista, mas nunca pôde ser ensaiado. É que, dado o carácter heterodoxo da escola médica que primeiro descreveu a doença, nenhum doente aceitou ainda ser submetido a testes ou terapias experimentais. Contudo, talvez alguma forma de acção directa possa mitigar os efeitos nefastos da cromofobia. A estação da Trindade, a mais importante da rede do metro do Porto, desenhada por um dos primeiros e mais célebres cromófobos, é uma das obras emblemáticas dessa corrente patológica. A estação é toda ela composta por grandes superfícies lisas e monocromáticas; a tapá-la está uma placa com um imenso relvado; e é também um relvado que cobre o declive até à boca do túnel. Mas alguém, preocupado com tão extrema manifestação de cromofobia, semeou nessa rampa algumas dezenas de flores: papoilas, dentes-de-leão, consolidas, malvas e outras que não pude identificar. Ficou o pano verde todo rasgado por cores clandestinas, mas não se sabe que efeito teve nos doentes este tratamento de choque. Poucas semanas depois, uma brigada de cromófobos disfarçada de equipa de jardinagem trouxe o corta-relva e extirpou as cores rebeldes. É possível que a epidemia cromofóbica se continue a agravar. Mas - quem sabe? - talvez ela comece a regredir e este breve episódio seja uma primeira flor ao fundo do túnel.

8 comentários :

Anónimo disse...

É verdade que já tivemos um país mais colorido; mesmo as aldeias, sendo anteriormente muito pobres,ostentavam junto aos poços, onde era habitual lavar-se a roupa,os seus pequeninos jardins.Era uma questão de vaidade!
Lendo este artigo, a memória transportou-me,também, a um livrinho cuja capa era cor-de-rosa, mas de que não me lembra o nome e nem sequer a história(ou estória),mas sei que havia uma personagem que se deslocava todos os dias de comboio e era obrigada a ver uma paisagem igual e monótona dia após dia;pensou numa solução e encontrou - passou a levar consigo umas quantas sementes de flores que atirava pela janela do comboio nos mais variados pontos da viagem...

Anónimo disse...

Que texto extraordinário, Paulo!

Na impossibilidade, e inutilidade, de lhe acrescentar qualquer outra coisa, fico-me pelo meu espanto.

Anónimo disse...

Uma Flôr ao fundo do túnel.
Como assim se os tuneis não têm fundo. os poços e as grutas esses sim têm fundo. lol tô a brincar.
passa pelo meu blog se gostas de lêr e deixa um coment.

bettips disse...

Já tinha reparado na persistência das sementes trazidas ao acaso!!! E ria-me para dentro... até o cortador-mor-do-reino ter chegado. Quiçá???
Oxalá.
Abrçs

Paulo J. Mendes disse...

Longe vai o tempo das "Estações Floridas"... A aborrecida relva-do-menor-esforço parece, infelizmente, estar para durar.

Paulo disse...

Pobres dos "cromofobiofóbicos".

a d´almeida nunes disse...

Essa "terrível" doença propaga-se mas logo a seguir a dra. Natureza tem conseguido curá-la. Pode levar o seu tempo, mas, enquanto não descobrirem uma forma de irradicar as sementes, não há corta-relvas que leve a melhor.
Ainda bem.

Crix disse...

Excelente texto. Adorei!