08/01/2008

O artista da sua terra


Amieiro na margem direita do Lima

Houve um tempo em que o caderno de encargos do artista estava definido com clareza: o poeta celebrava em versos de rigorosa métrica as belezas (naturais ou humanas) da sua terra, e o pintor cumpria igual tarefa com óleos e aguarelas. O âmbito geográfico restrito dos motivos de inspiração não tolhia o surgimento de vocações universais: o artista podia ser do mundo inteiro sem deixar de ser da sua aldeia. Mas hoje, com o descrédito da rima e da arte figurativa, e sobretudo com as facilidades de locomoção, só os artistas menores se refugiam na celebridade local e no patrocínio das juntas de freguesia; e mesmo esses têm o mundo inteiro, ou a aparência fugaz dele, à distância de um voo low cost. Já ninguém põe em verso a vida rústica. Alberto Caeiro, o último poeta rural português, cantou o bucolismo abstracto de uma aldeia imaginária, numa época em que já todos os seus confrades tinham desistido da aldeia real.

Lembrei-me disto ao ver a exposição de António Cruz (1907-1983) que está no Museu Soares dos Reis até ao fim de Janeiro. Eis um pintor que, sem ser figurativo, fixou nas suas aguarelas uma cidade brumosa em cujos volumes e contornos esfumados o Porto facilmente se reconhece. António Cruz é sem dúvida um artista portuense; de facto, nunca terá havido artista mais portuense, mas essa condição bairrista só o engrandece. O poeta e diplomata António Feijó (1859-1917) é outro caso de apego às raízes. Nascido em Ponte de Lima, cônsul geral de Portugal em Estocolmo durante mais de duas décadas, acabou por morrer no exílio «polar» da capital nórdica. Só foi poeta da sua terra quando já lá não podia voltar: à «neve cobrindo tudo» e aos «anos inteiros sem primavera» da sua vivência sueca contrapunha a memória do Minho soalheiro, com «verdes colinas» e «águas claras».

Não estou certo de que António Feijó quisesse reconhecer a sua terra natal nesta foto do rio Lima em tarde de má catadura. Não era das névoas de Inverno que ele tinha saudades - dessas estava ele bem servido na Escandinávia -, mas do ar luminoso e transparente dos dias primaveris. António Cruz, por seu lado, gostava era do Inverno, com árvores nuas e vultos incertos despontando do nevoeiro. Não teria sido surpresa encontrá-lo, numa tarde como esta, de cavalete montado à beira-rio.

3 comentários :

patologista disse...

Tomei a liberdade de fazer um link desta vossa bonita casa.
E voltarei sempre.

A D R I A N A disse...

Alberto Caeiro - ou Pessoa - é o último de qualquer tipo de escritor!

Eu AMO o nome desse blog.
Gosto quando vc publica, Paulo!
Há tempos venho acompanhando e hoje quis deixar um registro!

a d´almeida nunes disse...

O Inverno também nos consegue proporcionar belíssimas obras de arte, como é o caso.
Fantástico.
António Nunes