Desaprender
Euphorbia milii Des Moul. [variedade cultivada]
Há uma altura em que, depois de se saber tudo, tem de se desaprender. Sucede assim com o escrever. Com o escrever do escritor, entenda-se. Eu, provavelmente poeta, estou a aprender a... desaprender. E para quê e como se desaprende? Para deixar de ronronar, para que o leitor, quando o nosso produto lhe chega às mãos, não exclame, satisfeito ou enfastiado: «- Cá está ele!».
Na verdura dos seus anos, a preocupação do escritor parece ser a da originalidade. Ser-se original é mostrar-se que se é diferente. E as pessoas gostam das primeiras piruetas que um sujeito dá. E o sujeito gosta de que as pessoas vejam nele um talento.
Atenção, vêm aí as receitas, as ideias feitas, os passes de mão, os clichés, os lugares selectos ou, mais comezinhamente, os lugares comuns. O escritor está instalado. Revê-se na sua obra. Começa a abalançar-se a voos mais altos, a mergulhos mais fundos. É a intelectualidade que o chama ao seu seio, o público que o põe, vertical, nas suas prateleiras. Arrumado.
Quase sem dar por isso, o escritor acomodou-se e tornou-se cómodo, quando propendia, nos seus verdes anos, a incomodar-se e a tornar-se incómodo. Organiza «dossiers» com os recortes das críticas que lhe fizeram ao longo da sua carreira (nome, já de si, chamuscante), vai a colóquios, celebrações, congressos. Ganha prémios. É traduzido e publicado no estrangeiro. Por desfastio (e por que não?, algum dinheiro) aceita colaborar em conspícuas revistas ou em jornais efémeros como o dia a dia em que vão sendo publicados. Está de tal modo visível que já ninguém dá por ele. É o escritor.
Alexandre O'Neill, Uma Coisa em Forma de Assim (1985)
3 comentários :
Um escritor (bom) acompanha-nos, procuramos-lhe o rasto,
tal como uma árvore
(mesmo não lhe sabendo o nome, sabemos quanto gostamos dela)
Lemos, olhamos, amamos.
Abçs a todos vós e que os nossos "dias" continuem ... resistentes, insistentes, com árvores e frutos poéticos, como a Natureza.
(estas ""meninas" parecem de comer)
bettips: A Euphorbia milii tem flores minúsculas ao centro agasalhadas por um invólucro de brácteas de cor vermelha intensa, em pares que parecem representar um diagrama de yin e yang. O cultivar de jardim das fotos, com brácteas amareladas, é de receita idêntica e igualmente espinhoso e tóxico, um lugar comum entre as eufórbias.
Obrigada Maria, aqui nunca se "desaprende" ...
Não quero gastar ou repetir "todas as palavras" em cada pedaço de Natureza revelada; mas os meus votos aos autores são benevolentes, como as árvores acenando.
Abç
Enviar um comentário