O fisco na província
Herniaria ciliolata subsp. robusta Chaudhri
Novembro 1871.
Em Abrantes — segundo informações de um amigo nosso, jurisconsulto ilustre — sucede este estranho caso:
Pela lei de 10 de Julho de 1843 só são obrigados ao imposto do pescado os pescadores que exercem a sua indústria em água salgada — e naquela parte dos rios somente até onde cheguem as marés vivas do ano.
Ora em Abrantes entende-se de um modo largamente torpe esta acção do fisco sobre a pesca. Vinte homens, extremamente miseráveis, que pescavam no rio — onde não podiam chegar marés vivas — e alguns mesmos que de todo não pescavam, foram obrigados a pagar o imposto do pescado! Uns não se defenderam desta extorsão por pobríssimos: outros não se defenderam em virtude da ideia popular na província — de que, com o fisco, paga-se sempre e nunca se questiona, porque naturalmente depois é-se obrigado a pagar mais.
Isto constitui puramente, numa linguagem talvez plebeia, mas exacta, um roubo. Obrigar um pescador do rio a pagar o imposto do pescador do mar, é (além de uma confusão deplorável do velho e respeitável Oceano com qualquer fio de água que murmura e foge) um sistema extremamente parecido com o que empregam as pessoas estimáveis que nos metem a mão na algibeira e levam para casa o nosso lenço. Nós não desejamos embaraçar os negócios fiscais. Somente nos parece que impor a qualquer cidadão, mesmo quando não pesque, o imposto do pescado, é um expediente sumamente complicado. E o fisco, que deve ser parcimonioso do seu tempo e dos seus recursos, tem um meio mais singelo e mais expedito, que consiste em se aproximar de qualquer, e gritar-lhe pondo-lhe uma carabina ao peito:
— Passe para cá o que leva na algibeira!
Estes processos do fisco, que se repetem arbitrariamente em toda a província e que são sem dúvida um dos recursos do Estado, parecem-nos imprudentes — porque estabelecem confusão. Há por essas estradas isoladas, em certas vielas de cidades mal policiadas, nos pinheirais, nos sítios ermos e amados da sombra, uma espécie de cidadãos, de resto singularmente diligentes, que se deram por missão suspender por um momento as pessoas que passam, e pela maneira mais delicada tirar-lhes o dinheiro, os relógios e outras insignificâncias. Por seu lado o fisco costuma deter os cidadãos, e sob qualquer pretexto (como por exemplo no caso de Abrantes, por serem pescadores de água salgada) exigir-lhes uma quantia e entregar-lhes um recibo. Estes dois processos, o do fisco e o dos senhores ladrões, oferecem uma tal similitude que pedimos ao Governo que distinga por qualquer sinal (um uniforme por exemplo), estas duas estimáveis profissões; para que não suceda que os cidadãos se equivoquem e que vão às vezes lançar a perturbação na ordem social, confundindo o facínora e o funcionário — apitando contra o fisco e pedindo humildemente recibo ao salteador!
Eça de Queiroz, O fisco na província (Uma Campanha Alegre, vol. I, cap. XLVIII)
4 comentários :
Mais uma brilhante passagem do nosso ilustre Eça de Queiroz e que por incrivel que pareça , permanece tão actual como quando foi escrita pois se á coisa que não muda é o Governo .
Olá.
Pois é.A diferença está em que agora a extorsão já quer levar mesmo o que não há na carteira.
Só apuraram os métodos e aumentaram,exponencialmente,o número.
Cordialmente,
mário
Dias sem flores
"Deu-se o menino ao trabalho de subir a encosta, e quando chegou lá acima, que viu ele? Nem a sorte nem a morte, nem as tábuas do destino...Era só uma flor. Mas tão caída, tão murcha, que o menino se achegou, de cansado. E como esse menino era especial de história, achou que tinha de salvar a flor."
Ao vosso/nosso mestre Saramago-menino Zé, com respeito e admiração por demais, as mais belas flores com "todas as cores de arco-íris", a MAIOR FLOR DO MUNDO, se calhar.
Maria Angélica Alves
Rio de Janeiro/Brasil
De uma actualidade tão actual. Mudam-se os tempos, mas só mudam os meios, pois a mentalidade continua igual.
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