Brava tulipa
Num dos contos de A derrocada da Baliverna, de Dino Buzzati (tradução de Margarida Periquito para a Cavalo de Ferro em 2008), há três satélites — um que parece um lápis prateado, outro em forma de ovo cor de laranja e um pintado com riscas amarelas e pretas — enviados para o espaço entre 1955 e 1958 e que, em vez de funcionarem como previsto, levaram as suas tripulações para um lugar onde ficaram penduradas a girar em silêncio. No lançamento, milhares de pessoas esperançadas ergueram o nariz para a atmosfera; agora só alguns poucos espreitam, pela surdina, os três pontinhos no céu, quando a luz e a hora o permitem.
[Nas cidades iluminadas, mesmo quando não é época natalícia, isso não é possível. Mas na serra da Arrábida, área cársica que é um paraíso para muitas plantas, pode até ver-se à noite a Via Láctea.]
Rói em todos a indignação pelo que aconteceu; e deste modo protestam «pela descoberta que lhes mudou a vida». Depois de uma largada perfeita, de uma trajectória impecável e de uma viagem tranquila, os satélites selaram-se inertes, com uma última comunicação enigmática: «Que música estranha... Raios, mas nós aqui viemos parar ao...!»
[Onde? Fosse a um terreno inculto e pedregoso ou a uma mata de montanha, poderiam avistar esta tulipa silvestre resistindo às estiagens e florindo de Março a Junho. As flores são em geral solitárias, sem estilete e com estames penugentos na base. As pétalas amarelas nascem por vezes com listas verdes ou vermelhas por fora. Distingue-se da espécie T. sylvestris L. por ter só duas folhas — lineares e na base de uma haste glabra —, ostentar flores menores e, em geral, não ir além dos 30 cm de altura.]
Não demorou a descobrir-se o significado das mensagens espantadas. «De maneira que hoje ninguém duvida — excepto alguns poucos casmurros irredutíveis que gostariam que o orgulho humano não cedesse — ninguém duvida já de que os três projécteis tenham sido atingidos pelo som a que a nossa pobre alma não resiste.» Os tripulantes foram parar ao céu.
Seguiram-se dias de desorientação, ira e polémica. «Que vulgaridade — disseram os cientistas, insurgindo-se contra a absurda hipótese —, já não estamos na Idade Média! Que vergonha!, disseram os teólogos, ofendidos com a ideia temerária de o reino dos Céus se encontrar assim próximo, aqui suspenso por cima de nós, de tal modo que, levantando a cabeça, quase chocamos com ele.» O planeta parece ter minguado com a casa dos anjos nos subúrbios. E, cheios de razão, ficámos ofendidos: o paraíso é afinal a nossa última fronteira, que nos barra o caminho e nos aprisiona.
[Na Europa mediterrânica, Portugal, Suíça e Bulgária partihamos a cela com esta flor. Que pesado castigo.]
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