Christella dentata (Forssk.) Brownsey & Jermy [= Cyclosorus dentatus (Forssk.) Ching]
Qual a importância de preservar populações naturais de plantas amplamente cultivadas ou que subsistem livres de ameaças noutras paragens? A primeira resposta é de ordem quase emocional. Gostamos de acreditar que aqui e ali, mesmo no mais civilizado dos continentes, existem retalhos de natureza mais ou menos intocados, em que plantas e animais se mantiveram por milénios, indiferentes ao cerco que lhes foi montado pela espécie humana. A erradicação local de espécies é um rombo nessa visão ingénua, dir-se-ia desesperadamente idílica, da imutabilidade da natureza. Alguma da mais valorizada biodiversidade europeia está ligada a práticas humanas ancestrais de agricultura, pastoreio e silvicultura. Um lameiro, que é um habitat artificial, pode ser mais rico em espécies vegetais do que um bosque de velhos carvalhos. Não será então para preservar a "natureza no seu estado puro", como dizem os maus textos de promoção turística, que insistimos na sobrevivência das populações silvestres ameaçadas. Mais correcto será falar da preservação da diversidade genética. As plantas cultivadas representam, em geral, apenas uma fracção ínfima do património genético de cada espécie. Há casos em que todas essas plantas são clones umas das outras, tornando-se altamente susceptíveis a pragas e doenças; para descobrir novas variedades mais resistentes, é imprescindível recorrer às populações espontâneas. Outro aspecto da diversidade genética é o de, por exemplo, um carvalho-roble (
Quercus robur) em Portugal não ser idêntico às árvores da mesma espécie que crescem noutros países da Europa, ou até noutros pontos do país. Para evitar a poluição genética, as campanhas de reflorestação de espaços naturais devem sempre usar árvores obtidas a partir das que já existem no local.
A
Christella dentata, que hoje ocupa o escaparate, foi fotografada no Jardim Botânico do Porto, onde vegeta, plena de vigor, em lugar umbroso continuamente atroado pelo trânsito da VCI. Também há notícia do seu cultivo na Estufa Fria, em Lisboa. É um bonito feto que só tangencialmente faz parte da flora europeia: existe ou existia apenas em Creta, na Galiza e na Andaluzia. Na Galiza já se extinguiu; e na Andaluzia (ou mais precisamente no Parque Natural dos Sobreirais [=
Alcornales], em Cádiz) quase tinha o mesmo destino, mas houve gente perspicaz e dedicada que o fez regressar à vida (história completa
aqui). No resto do planeta a sua sorte é bem diferente, pois encontra-se espalhado por regiões tropicais ou sub-tropicais de mais quatro continentes: África (incluindo Madagáscar), Ásia (Índia, China e Japão), Oceânia (Austrália e Nova Zelândia) e América (onde está naturalizado na faixa que vai do sudoeste dos EUA ao norte da Argentina). Em vários pontos do globo a desmatação das florestas indígenas criou condições para que a
Christella dentata seja hoje mais abundante que nunca. Na Madeira e nos Açores, onde também ocorre, há dúvidas sobre se a sua presença é espontânea ou se se deve ao cultivo em jardins. Rui Teles Palhinha, em artigo de 1943 sobre os
Pteridófitos do arquipélago dos Açores, assinala que a presença deste feto (a que o autor chama
Dryopteris dentata) em quase todas as ilhas do arquipélago (a excepção é o Corvo) o leva a admitir que ele não seja introduzido. Desde então não parece ter sido feito nenhum estudo que esclarecesse o assunto. Hanno Schäfer, no seu
Flora of the Azores — A Field Guide (2.ª edição, 2005), opina que nos Açores o feto é exótico; mas, na
Checklist da Flora de Portugal, ele é considerado nativo tanto da Madeira como dos Açores.
Como se adivinha pelo facto de os dois já terem integrado o mesmo género, a
Christella dentata, que tem frondes que podem chegar a um metro de comprimento, apresenta algumas semelhanças com o feto-macho (
Dryopteris filix-mas ou
D. affinis). A diferença mais evidente é que, ao contrário do que sucede nesse feto (conferir
aqui), na
C. dentata duas pínulas contíguas estão separadas apenas até cerca de metade da profundidade; além disso, a venação tem um desenho peculiar, ligando-se sem quebras de uma pínula à seguinte (ver foto 6). E a
C. dentata tem um aspecto felpudo que o feto-macho não compartilha.
Em jeito de conclusão, diga-se que o resgate
in extremis da
Christella dentata andaluza foi um feito conservacionista da maior importância, uma daquelas coisas que nos alimentam a esperança. Em contrapartida, o cultivo da espécie em jardins botânicos ou em jardins particulares não tem qualquer significado ou impacto na conservação de uma espécie que, globalmente, atravessa um período próspero. Se não tivesse sido possível recuperar a população de Cádiz, ninguém se lembraria de lá introduzir plantas cultivadas de outra origem. De modo semelhante, ter um azevinho ou um teixo no jardim não resolve nem alivia o problema (grave no caso do teixo) da conservação dessas espécies na natureza. Apenas satisfaz o nosso legítimo desejo de nos rodearmos de coisas belas.