Lagoa do Fogo, ilha de São Miguel
Completámos este Verão a ronda de visitas botânicas aos Açores que iniciámos em 2010. Ao longo destes anos, estivemos pelo menos uma semana em cada ilha, e a quatro delas (Terceira, Flores, Pico e São Jorge) voltámos repetidas vezes em diferentes períodos do ano. Não sendo nós botânicos profissionais, seria inapropriado dizer que foram visitas de trabalho, mas a exploração botânica serviu-nos de pretexto para as férias activas de que gostamos. Esse
não-trabalho teve como resultado visível os cento e tantos textos sobre os Açores e a sua flora que aqui publicámos, e o lançamento (ainda a meio-gás) do portal
Flora-On Açores, iniciativa da Sociedade Portuguesa de Botânica de que somos colaboradores empenhados. Porque seria presunção achar que já lhe conhecemos todos os cantos, continuaremos a visitar o arquipélago. Move-nos também o impulso de regressar aos lugares onde nos sentimos bem.
São Miguel foi a última ilha do nosso roteiro botânico. Dirão alguns que deixámos o melhor para o fim, mas não foi essa a impressão com que ficámos. Mais do que qualquer outra ilha açoriana, São Miguel vive um paradoxo: faz do turismo de natureza o seu cartaz, mas sobra nela muito pouco (ou mesmo nada) da natureza virginal que os visitantes imaginam lá existir. As cerradas plantações de criptómerias, as ondulantes pastagens, a proliferação descontrolada de invasoras como o
incenso, a hortênsia e a
conteira — tudo isso remeteu a vegetação natural à invisibilidade, fazendo-a regredir a um ponto de não retorno. Só no Pico do Vara e em alguns cumes em volta da lagoa do Fogo pudemos reencontrar, em versões empobrecidas, as florestas húmidas de juníperos e de louros que aprendemos a amar noutras ilhas.
Para minimizar o desgosto, talvez tivesse sido melhor conformarmo-nos ao papel de turistas que vêm para admirar as vistas. Ainda que saibamos como o verde que as rodeia é tantas vezes adulterado, as lagoas de São Miguel são mesmo de encher o olho. Mas, se mudarmos abruptamente de escala e começarmos a esquadrinhar as plantas herbáceas, reconhecemos, algo inesperadamente, que não foram poucas as plantas nativas (ou mesmo endémicas) que conseguiram adaptar-se a habitats dominados por espécies exóticas. Orquídeas como a
Platanthera pollostantha são frequentes, nas partes altas da ilha, em matas de criptomérias e em taludes de estrada, e quase sempre lhes fazem companhia duas asteráceas endémicas de floração estival: uma leituga (
Tolpis azorica) e um patalugo (
Leontodon rigens).
Leontodon rigens (Aiton) Paiva & Ormonde
Os patalugos (nome que se dá às espécies açorianas do género
Leontodon) apresentam-se em duas versões, ambas já aqui mostradas: o
patalugo-maior e o
patalugo-menor. É mentira que o primeiro seja maior do que o segundo. A diferença mais evidente é que o patalugo-menor (nas fotos) tem inflorescências abundantes, formadas por várias dezenas de capítulos, enquanto que o patalugo-maior as tem esparsas, com um máximo de meia dúzia de capítulos por haste. Há ainda um importante critério geográfico, só recentemente clarificado, que se resume a isto: em nenhuma ilha do arquipélago os dois patalugos coexistem. O patalugo-maior é exclusivo do grupo central, e o patalugo-menor fica-se por São Miguel, Flores e Corvo. (Notícias antigas sobre a ocorrência do patalugo-maior nas Flores e em São Miguel são equivocadas, pois referem-se a híbridos do patalugo-menor com o
Leontodon taraxacoides, uma espécie ruderal muito disseminada no continente e nas ilhas.)
No mesmo artigo (disponível
aqui) em que põem em ordem a distribuição dos patalugos pelas diferentes ilhas, os autores (Mónica Moura, Luís Silva, Elisabete F. Dias, Hanno Schaefer, Mark Carine) concluem que afinal há dois patalugos-menores, pois as plantas de São Miguel não são iguais às do grupo ocidental (Flores e Corvo). Estas últimas passam a chamar-se
Leontodon hochstetteri, e o nome
Leontodon rigens fica reservado à espécie de São Miguel. É verdade, trata-se de um endemismo de uma ilha só. Felizmente não é nada raro: quem em Agosto percorrer as cercanias da lagoa das Sete Cidades ou da lagoa do Fogo, ou subir ao Pico da Varra ou à serra da Tronqueira, não deixará de avistar grandes e floridas populações empoleiradas nas bermas das estradas ou em ladeiras íngremes.
Para além das divergências genéticas apontadas no artigo, que diferenças visíveis há entre o
Leontodon rigens e o agora chamado
Leontodon hochstetteri? Como muito bem assinalam os autores, os capítulos do
Leontodon hochstetteri têm pedúnculos curtos, e por isso a inflorescência é compacta, arredondada, em forma de umbela (fotos
aqui). No
L. rigens, pelo contrário, os pedúnculos são compridos (última foto acima), resultando daí uma inflorescência mais ampla e achatada (o termo técnico é
corimbosa).
Não conseguimos decidir qual das duas variantes é mais bonita. Mas, como testemunham as imagens, o patalugo de São Miguel gosta, tal como nós, de contemplar lagoas, e temos que lhe agradecer por nos tornar essa contemplação menos frustrante.