Margarida do rio seco
Andar num vale seco e silencioso onde antes fluiu um rio causa alguma estranheza. O chão, de rocha bem polida, é ondulado, e o percurso ao longo do barranco encaixado é sinuoso, alimentando a cada dúzia de passadas a euforia, ou o receio, da surpresa ao virar da esquina. A impressão inicial é a de estarmos num lugar hostil que, por constantemente nos recordar o caudal de outrora, tem um carácter indeciso, como se a qualquer momento a água pudesse voltar a jorrar, submergindo-nos. Mas basta olhar para as paredes do barranco para se ter a certeza de que esse não é risco que corramos: são inúmeras as plantas que exigem solo enxuto que, uma vez desaparecido o rio, ousaram colonizar esses taludes, e nos vão tranquilizando com a sua presença.
Visitámos o Barranco del Agua, em Anaga, numa tarde quente com céu encoberto. No início da caminhada uns magros pingos de chuva salpicaram-nos, prometendo uma frescura que afinal não se concretizou. Mas na vertente sombreada do barranco notava-se o efeito dessa rara humidade, pois empoleirados em patamares onde o sol não incide e a temperatura é mais amena notavam-se uns poucos exemplares de Ranunculus cortusifolius em flor, o mesmo que encontramos abundantemente nas ilhas chuvosas dos Açores. Algures a meio do passeio vimos esta margarida de folhas carnudas e um verde inesperado num local tão árido, com grandes capítulos dispostos em corimbo.
O género Gonospermum é endémico das Canárias e é quase verdade que a cada ilha coube a sua espécie, diferindo sobretudo no tamanho das inflorescências e na maior ou menor segmentação das folhas. O Gonospermum canariense é endémico das ilhas ocidentais do arquipélago (El Hierro e La Palma) e é um arbusto que pode ultrapassar 2 metros de altura; do G. ferulaceum, famoso pelos corimbos densos de flores, há registo apenas na Gran Canaria; o G. fruticosum, conhecido como corona de la reina, é a espécie mais frequente (dispersão talvez ajudada pela jardinagem), e pode ver-se em Tenerife, La Gomera, El Hierro e La Palma. Temos ainda o G. gomerae, endemismo de La Gomera, e o G. revolutum, com inflorescências menos densas, que só existe no norte de Tenerife, desde Roque Bermejo até Punta del Hidalgo.
O G. revolutum já se chamou Lugoa revoluta mas, depois de alguma controvérsia e estudos de genética molecular, o género Gonospermum passou a abrigar, desde 2001, algumas espécies antes incluídas em Lugoa e Tanacetum. Trata-se de uma herbácea perene, de base lenhosa, com cerca de meio metro de altura e cujas folhas, dispostas em vistosa roseta basal e ao longo da haste floral, exibem margens curvadas para a face inferior. É uma espécie legalmente protegida, classificada como vulnerável na lista vermelha da flora vascular espanhola.