Tudo corre pelo melhor no melhor dos mundos possíveis
[Este texto, aqui em versão retocada, apareceu há dois dias no blogue A Baixa do Porto, em resposta a dois textos lá surgidos que defendiam, com argumentos sui generis, as obras de remodelação da Escola Secundária Filipa de Vilhena (e o abate de árvores por elas provocado) e a prevista requalificação do Pavilhão Rosa Mota (e a consequente destruição do lago e da esplanada dos jardins do Palácio de Cristal).]
Quem se bate por utopias pode ser perigoso; mas os anti-utopistas, ou discípulos de Pangloss (cuja filosofia se encontra resumida no título), são deprimentes. Os leitores da Baixa do Porto foram há pouco brindados com dois textos impregnados dessa filosofia ultra-optimista: o de Manuela Monteiro e o de José Paulo Andrade. E que nos dizem esses textos? Que certas obras realizadas no Porto foram excelentes, por duas razões óbvias: as obras foram de facto feitas, e por isso a sua existência é boa e indiscutível (tudo quanto foi feito e existe é bom e indiscutível); e o nosso mundo, com o estilo de vida que tanto prezamos, seria inimaginável sem elas. Donde se deduz que os que se opuseram a tais obras não passavam de velhos do Restelo (ou, pior ainda, de velhos da horta) incapazes de acertar o passo com as mudanças do mundo.
Cândido aprendeu à própria custa que a filosofia do seu mestre Pangloss tinha sérias limitações. Não desejo que estes novos discípulos do mestre passem por infortúnios semelhantes, mas gostava de contrapor, a esse entusiasmo obreirista, um outro modo de ver as coisas. E, de passagem, aproveito para corrigir o excesso de ligeireza de algumas afirmações nesses textos.
Manuela Monteiro dá três exemplos de coisas boas que felizmente não foram travadas pela ortodoxia paralisante. Abstenho-me de discutir o caso do Museu Gulbenkian, por desconhecer os pormenores da história, mas os outros dois casos são de bradar aos céus (um deles, o da horta de Serralves, destruída para se construir o Museu de Arte Contemporânea, também foi referido por José Paulo Andrade). A Manuela Monteiro acha mesmo que o Jardim do Marquês ficou muito melhor depois de construída a estação de metro no subsolo? Olhe que a minha opinião (e a de muitas outras pessoas) é bastante diferente, como pode conferir aqui. Mas a sua opinião é tão taxativa, e tão radicalmente oposta à minha, que me parece perda de tempo discutirmos o assunto.
Jardim de aromáticas - Serralves - Agosto de 2006 (em fundo um pinheiro-manso)
A propósito da horta de Serralves, José Paulo Andrade cita um parágrafo de quem na altura se opôs à construção do museu:
«Quando um museu de arte moderna destrói a horta de Serralves, destruindo assim a unidade de uma das últimas quintas de recreio do Porto (fazendo perder sentido ao todo que lá existia) o edifício pode ser a oitava maravilha do mundo e criar um espaço magnífico, admita-se em tese que seja melhor até que o relevo cultural de uma das últimas quintas de recreio do Porto, mas será sempre sobre um acto de destruição patrimonial que se terá erguido o novo património.»
José Paulo Andrade conclui, triunfante, que o museu é hoje uma realidade indiscutível, e que já ninguém chora a perda da horta. Mas o que me parece igualmente indiscutível é que a destruição do património para o qual o parágrafo alertava se concretizou, e que a unidade patrimonial da Quinta de Serralves foi destruída. Hoje a horta não existe, nem existe nada de semelhante (o jardim de aromáticas, apresentado na altura como uma compensação pela perda da horta, é de facto outra coisa, e em todo o caso está praticamente ao abandono). Claro, dirá José Paulo Andrade, mas existe o museu, que é coisa muito melhor do que a horta e muito mais visitada.
Estes casos parecem reduzir-se ao mesmo princípio: se queremos progresso (mais cultura, melhor mobilidade, escolas com melhores condições), temos de sacrificar outros valores menores (como sejam a horta, o jardim, as árvores). Acontece que esses valores menores só são assim considerados porque os poderes que nos governam, e a própria mentalidade nacional, não os valorizam devidamente. Os dilemas apresentados (ou museu ou horta; ou jardim ou metro; ou árvores ou escolas) só o são porque as alternativas nunca chegam a ser seriamente estudadas. E não são estudadas porque no outro prato da balança estão coisas que, no entender do senso comum, valem pouco mais que um chavo.
Um exemplo de âmbito mais geral para ilustrar isso mesmo. Lendo os jornais, folheando revistas, ouvindo opiniões e entrevistas dos agentes culturais, depressa ficamos a saber que o ministro da Cultura é um desastre, como aliás já tinha sido a sua antecessora. Que eu saiba, porém, nem este ministro nem a sua antecessora têm tido como objectivo central da sua política a destruição sistemática dos museus e de todo o património cultural do país. Aquele ministro que de facto é um coveiro do património que lhe cabe gerir é o actual ministro do Ambiente, certamente o pior ministro (juntando todos os ministérios de todos os governos) de que há memória desde o fim do PREC. No entanto, tal ministro não é um escândalo público e os jornais não se enchem de artigos de opinião a denunciá-lo. Porquê? Porque a conservação da natureza não é importante, ao passo que a cultura já é.
Admito que as pessoas até gostem de jardins, parques e árvores. Têm é dificuldade em conceber que tais coisas tenham um valor próprio que possa sobrepor-se a outros valores. As árvores e os jardins, entendem elas, podem ser a cereja em cima do bolo, e tanto melhor se o bolo for um edifício desenhado por Siza Vieira ou uma estação de metro por Souto Moura. O que faz falta é entender que as árvores, a horta e os jardins podem constituir, por si só, o bolo e a cereja.
Esplanada do Palácio de Cristal - Julho de 2009 (castanheiro-da-Índia à esquerda e liquidâmbar à direita)
Adenda. José Paulo Andrade escreve que o Palácio é um «pequeno jardim local, actualmente não muito utilizado». Isso não é verdade: os jardins do Palácio são os mais frequentados da cidade (muito mais do que os de Serralves, onde à semana pouca gente vai). Além dos muitos turistas e utentes habituais, quase diariamente há visitas de escolas. Muita gente vai para a esplanada, muitos outros participam em sessões de ioga, muitos pais levam as crianças ao parque infantil, e é comum os lugares de estudo na biblioteca estarem todos ocupados. Não é para servir melhor estes muitos utilizadores do jardim que a Câmara quer destruir o lago e acabar com a esplanada.
[Se o leitor quiser manter-se a par desta discussão, é à Baixa do Porto que se deve dirigir. Recomendo ainda a leitura deste comentário de José Rui Fernandes ao texto de Manuela Monteiro.]
2 comentários :
Eu cá fiquei feliz com esse nome "velha da horta"
que em pequenita tinha medo do velho do restelo
e do adamastor
e do salazar
e agora, grande, também. Mas é mais dos emes-bês-às na cultura, na arquitectura, na gestão dos recursos, hídricos, humanos, bio
Mas dizem-me que é o melhor dos males...
Uns patriotas numa cidade moderna, que giro, que gente virada para o futuro, tanta lata com rodas, tanta esquina de loja se torna banco - que lindo e asséptico, em vez da loja dos 300s, o dinheiro em notas pequeninas do multibanco e um olho "sorria, está a ser lixado"
os caixotinhos das árvorezinhas
as obrinhas
as trocas e baldrocas (e é que já está construído, o mamarracho a casar com a C da Música, um bocado mais esquinudo e metaludo, dizem que vai ser banco e hotel; falido? nã, bancos nunca falam nem abrem falência)
portugal dos pequenitos
e o porto dos periquitos, muita asa muito piu-piu
Acho que me perdi de ceguinha que fiquei com o Museu em cima da horta ser agora uma grande obra - melhor é ignorarem o comentário. E o pior é que a palavra a verificar é "ressea" e cá por mim falta-lhe um r - eu passo a vida a ressear
A sério, não publiquem - fica para vosotros, irmanos das huertas.
Abçs
Bettips:
É claro que comentários como esse são para publicar: tinha pouco jeito ficarem só para nós. Se os que pensam diferente escondem o que dizem, qualquer dia estamos todos a ler pela mesma cartilha (ou a fazer vénias aos mesmos arquitectos).
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