30/11/2010

Baleio

Levantámo-nos cedo, num rebuço de infância, ainda as estradas não estavam postas. Íamos ver orquídeas de Verão junto à Lagoa da Vela, em Quiaios, mas o atraso dos acompanhantes do passeio permitiu que vagássemos antes pelo pinhal. Ali a areia é fina, pronta a saltar para a bainha das calças ao menor gesto do pé, e o ar cheira a lavado. Em passadas curtas, com o embalo silencioso das caminhadas na neve, percorremos algumas dunas, de olhos ensonados no chão. O manto de estrelinhas amarelas pareceu-nos àquela hora um pouco baixo, mas não desconfiámos, afinal nas madrugadas acontecem coisas estranhas porque ninguém está acordado para as ver.

Odontitella virgata ( Link ) Rothm. — Mata Nacional das Dunas de Quiaios


Mas, ao contrário dos bafejados com encontros do terceiro grau, que raramente têm à mão uma oportuna máquina fotográfica, o nosso fotógrafo registou a aparição. Para mais tarde se confirmar que afinal se tratava apenas de espigas ligeiramente curvadas de flores e cápsulas de sementes ainda com o estilete longo, dispostas de lado como figuras egípcias.

Aprendemos depois que esta hemiparasita anual é um endemismo ibérico, mais abundante na metade ocidental, nativa de quase todas as províncias portuguesas. É uma herbácea peludinha, de hábito desgrenhado (virgata), com caules que podem chegar aos 60 cm de altura e folhas opostas lineares. O nome dela vem mudando há dois séculos, desde a designação Euphrasia linifolia atribuída por Brotero em 1804 por pensar que seria a espécie assim nomeada por Lineu; mas essa é a que hoje se chama Odontites luteus (L.) Clairv. e, de facto, não ocorre em Portugal. Depois de ser Odontites virgata, emancipou-se em 1943 como espécie única do género Odontitella, com base em diferenças na corola e no pólen.

O cálice de cada flor, protegido por brácteas um pouco mais curtas (veja a imagem à direita), é tubular mas fendido até um terço — medida que ajudou à sua saída do género Odontites, onde tal sulco é mais cavado. A corola é bilabiada e tem cerca de 15 mm; amarelece laranja e mostra timidamente um lábio inferior dividido em três lóbulos pouco profundos — o detalhe que a distingue do género Euphrasia — e um superior como um capucho onde os estames se protegem.

O nome, que deriva de Odontites a que se juntou o sufixo diminutivo ella, alude às propriedades medicinais da Odontites vulgaris Moench, que serviu noutras eras para acalmar dores de dentes, ou para alindar os molares dos que riam casquinando, a sacudir o corpo como quem se livra do excesso de riso.

1 comentário :

horticasa disse...

Lindo sitio e bela escrita.
Parabens