22/11/2010

Uma casa na árvore

Um erro comum nos percursos marcados em espaços naturais portugueses é o de supor que todos nós temos um interesse absorvente pela etnografia — ou, trocando por miúdos, que adoramos ver povo. E assim nos fazem deambular por aldeias (a)típicas e quase nos enfiam em casa de gente que não tem feitio para servir de atracção turística. Compreendo muito bem que alguns se sintam incomodados por ver chegar forasteiros tão abelhudos, e tomem medidas para os manter à distância. Em Paredes de Coura, por exemplo, um dos trilhos na paisagem protegida de Corno de Bico, o do Alto dos Morrões, passa por duas aldeias, Giesteira e Túmio, e proporciona uma vista desafogada para várias salas de estar, cozinhas e pátios de gente que, como nós, tem direito à privacidade. O resultado é que, na vizinhança dessas aldeias, principalmente em Giesteira, os indicadores do percurso foram metodicamente sabotados, chegando a ser colocadas cancelas a barrar o caminho. O percurso ainda se consegue adivinhar se for feito no sentido anti-horário (ao contrário do que é recomendado), mas no sentido oposto os caminhantes depressa perdem todas as referências. Quando, já perto de completarmos o circuito, deparámos com um portão e uma corda a travar-nos a passagem, fomos perguntar a um sujeito que trabalhava num campo se era mesmo aquele o caminho para Giesteira. A resposta foi estranhíssima: temos muito gosto em vos ver por aqui. Em vez de responder à pergunta, ele quis atenuar (ou, quem sabe, sublinhar) o repúdio pela nossa presença que transparecia de tão inesperados obstáculos. O homem pode ter sido sincero ou hipócrita, mas é certo que alguém ali (talvez ele mesmo) não gosta de nós.

Vila da Serreta — ilha Terceira
Os percursos que pude fazer na Terceira não sofrem desse pecado. Atravessam áreas de genuíno interesse paisagístico e natural e não insistem em desviar-nos para a Casa do Povo ou para a igreja. O trilho que vai da Serreta à Lagoinha, por exemplo, começa já fora do núcleo urbano da vila. Mas eu gostei da Serreta, onde me demorei a fazer horas para a camioneta de volta, apesar de a povoação pouco mais ser do que o casario baixo ao longo da estrada, com uma ou outra canada cortando em direcção ao mar. Aqui deixo pois duas fotos em que os únicos habitantes a botar figura são duas galinhas, captadas à distância para não se lhes reconhecerem as feições.

Hymenophyllum tunbrigense (L.) Sm.
Retomando o inventário das plantas que vivem na floresta húmida açoriana, falemos agora de epífitas. Tal como os espigos-de-cedro, andam às cavalitas das árvores, mas, ao contrário destes, não são plantas parasitas, pois fabricam honestamente o seu próprio sustento. Uma das epífitas mais comuns, tanto em juníperos como em loureiros ou até mesmo em criptomérias, é este feto de frondes semi-transparentes que gosta da companhia dos musgos. A semelhança do Hymenophyllum tunbrigense com o Trichomanes speciosum é notória, e de facto os dois fetos pertencem à mesma família botânica; mas as frondes do primeiro são mais pequenas (6 cm contra 15 a 20 cm) e têm as margens dentadas (clique nas fotos para ampliar). Além disso, o Hymenophyllum vive nas árvores e o Trichomanes prefere agarrar-se às rochas.

O Hymenophyllum tunbrigense é espontâneo na Macaronésia, na Europa ocidental e na América do Norte. Nos Açores aparece ainda uma espécie gémea, o H. wilsonii, com frondes mais curtas e menos divididas, que partilha os mesmos habitats aéreos mas tem uma distribuição mais escassa.

Sticta canariensis (Ach.) Bory ex Delise
As mesmas árvores que serviam de morada ao feto enfeitavam-se com outros adereços de índole vegetal. O mais vistoso era este líquen foliforme que julgamos ser a Sticta canariensis. É uma espécie de lugares húmidos e protegidos que habita troncos musgosos mas também aparece em rochas e pode mesmo descer até ao solo. Está presente em quatro das ilhas açorianas (São Miguel, Terceira, Pico e Flores) e, mais globalmente, na Macaronésia e na Europa. Se nos arquipélagos atlânticos a sua sobrevivência não suscita preocupações, já o mesmo não se passa no continente europeu, onde a espécie é considerada vulnerável ou mesmo em perigo de extinção.

A Sticta canariensis tem a peculiaridade de existir sob duas formas muito diferentes, que no entanto pertencem à mesma espécie por serem associações simbióticas do mesmo fungo. Quando o fungo se associa a uma alga verde, temos o morfotipo retratado na foto. Quando ele se associa a uma cianobactéria (também chamada alga azul), o resultado é este morfotipo com talos acastanhados e rugosos, mais comum no norte da Europa.

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