Cárice levitante
Há coisas grandes que nos habituamos a não ver, ou que vemos apenas pelo canto do olho, sem lhes darmos atenção. Parecem-nos já conhecidas, um capítulo já encerrado, e agora apetece-nos ver e apender coisas novas. Até que alguém olha melhor e conclui que houve confusão, que aquilo que está diante de nós é diferente e merece observação atenta. Fica a lição de humildade: sabemos menos do que julgamos saber, e devemos estar sempre disponíveis para testar os limites do nosso conhecimento, mesmo que com isso a nossa vaidade fique machucada.
Existe em Portugal continental e em quase toda a Europa um cárice gigante, de seu nome Carex pendula, morador de bosques ribeirinhos (amiais e salgueirais) e de outros lugares alagadiços. Destaca-se pela envergadura (pode ultrapassar os dois metros de altura) e pelas espigas longas e curvadas, algumas com uns 20 cm de comprimento, todas penduradas do mesmo lado da haste. Considerava-se que essa espécie ocorria também na Madeira e nos Açores — e, pelo menos no segundo arquipélago, ela (ou algo que se fazia passar por ela) não era difícil de observar na generalidade das ilhas. Na Madeira a situação era outra: a espécie (ou alguma sua sósia) sempre foi tida como rara; e o reverendo Richard T. Lowe (1802–1874), primeiro grande estudioso da flora madeirense, achou-a diferente da C. pendula usual e, em artigo de 1833, chamou-lhe C. myosuroides. Contudo, à luz das regras da nomenclatura botânica, esse nome era inválido por já ter sido usado uns bons antes (em 1779) para designar uma espécie totalmente diferente. Ainda assim, alguns autores adoptaram o nome Carex pendula var. myosuroides para as plantas das ilhas, presumindo que a mesma variedade, distinta da versão continental, ocorria nos dois arquipélagos.
E assim decorreram quase dois séculos, até que em 2021 foi publicado o artigo Systematics of the Giant Sedges of Carex Sect. Rhynchocystis (Cyperaceae) in Macaronesia with Description of Two New Species. Apoiados por estudos genéticos exaustivos, os autores concluem que, na Madeira e nos Açores, o que existem são plantas aparentadas com Carex pendula, mas suficientemente distintivas para constituírem espécies próprias, endémicas de cada um dos arquipélagos. A dos Açores ficou a chamar-se Carex leviosa — o epíteto, que talvez signifique levitante, vem do universo de Harry Potter. Assim se reforça a tendência recente de se reconhecerem novos endemismos açorianos: pelo menos uma dúzia nas últimas duas décadas, e há mais a caminho. A flora açoriana, embora menos rica do que a madeirense (o que se explica pela juventude do arquipélago e pela maior distância a que está dos continentes), não é tão pouco diversa como se supunha — estava era mal estudada.
Como ainda não dispomos de leitores de DNA portáteis, é conveniente que, além da divergência genética, haja diferenças morfológicas visíveis. É esse, felizmente, o caso do levitante cárice açoriano, que se distingue do seu primo continental por ter invariavelmente, no ápice das hastes, uma espiga masculina acompanhada por uma feminina (enquanto que o outro só aí tem uma ou duas espigas masculinas), e por as brácteas (os especialistas dizem glumas) serem mais compridas do que os frutos (utrículos para os entendidos), quando na C. pendula são distintamente mais curtas (ver foto).
Também nas preferências ecológicas a Carex leviosa se diferencia da sua congénere continental, já que os lugares por ela frequentados podem não ser especialmente húmidos: qualquer clareira de bosque, seja de faias, urzes ou incensos, lhe pode servir de casa. É uma adaptação ditada pelas circunstâncias, já que em várias ilhas açorianas não existem ribeiras permanentes. No Faial, onde a espécie é abundante em vários locais (por exemplo, numa das vertentes do Cabeço do Fogo), não a vimos em margens de ribeiras torrenciais (o único tipo de ribeiras que há na ilha), mas apenas em bosques comparativamente secos.