05/10/2010

Jardim República



Atractylis gummifera L.

Lisboa 1914. Quando se rumoreja na cidade que os inimigos das árvores planeiam um morticínio, ninguém quer acreditar. É certo que alguns jornais começam a bravatear, numa linguagem medonha, contra os promotores de iniciativas tão pacíficas como a Festa da Árvore e a recém-constituída Associação Protectora da Árvore que começou por adoptar o nome ainda mais provocador de Associação do Culto da Árvore. Até um poeta de fama, o finíssimo António Correia de Oliveira, ousa lançar um livro com o herético título de A Alma das Árvores. É de mais. O cântaro extravasa. «Feiticeiros pagãos» e «idólatras dos deuses vegetais» são alguns dos muitos epítetos com que a imprensa conservadora nomeia os excomungados naturalistas. Um dos periódicos chega a consignar um «veemente protesto contra o abuso que se está fazendo da liberdade de consciência, forçando milhares e milhares de crianças a enfileirarem numa festa mais do que pagã.» (…) Apesar disso, os programas festivos continuam a decorrer com ações de sensibilização nas escolas, concursos juvenis para a inventariação dos exemplares históricos em cada concelho, oferta de vasos com plantas, visitas de estudo a parques, jardins e, sobretudo, «cerimónias» de plantação de árvores por jovens. (…) Ocorrem, entretanto, num fim de tarde, terríveis acontecimentos. Finda a interpretação do hino, os presentes rompem em vivas à República. E muitos-muitos aplausos. Depois, no momento em que um dos dirigentes da Associação Protectora da Árvore inicia uma preleção sobre o problema da desarborização alarmante que não cessa de estropiar as serras do interior, é interrompido por uma turba danada que força a entrada no Jardim Botânico e investe aos gritos de «abaixo os livre-pensadores, morram os hereges! Morra a República! Morra, morra!»

Sem que se perceba logo o motivo da desordem, os intrusos precipitam-se para a área onde haviam sido plantadas as frágeis árvores. Crianças e adultos assistem com olhos de medo à sanha dos espezinhadores. Os amigos das árvores ripostam com energia, porém são neutralizados em pouco tempo pelas longas naifas e varapaus da matula irada. (…) Os salteadores descem em tropel a encosta que dá acesso ao arboreto. De machados em punho vão destroçando aqueles seres vegetais que não conseguem opor resistência. Em escassos minutos devastam largas dezenas de plantas. Não se via tamanha violência desde que, sete anos antes, em vésperas da ditadura de João Franco, a Polícia entrou de rompante na Escola Polytechnica, ali mesmo ao lado. (...)

O bando retira-se, deixando o Jardim Botânico transformado num caos de maldade.


Pedro Foyos (Editorial Hespéria, 2010)

1 comentário :

Unknown disse...

é bom ir lembrando para que não se repita!