31/10/2015

Flor de cuco


Lychnis flos-cuculi L.
Apesar de muita gente confundir as duas coisas como fazendo parte da mesma ruralidade bucólica e mitificada, e por causa disso termos tido há uns anos uma ministra que acumulava as duas pastas, a verdade é que natureza e agricultura são conceitos frequentemente antagónicos. A desmatação de terrenos para cultivos ou pastagens não cessou de transformar o mundo natural desde que a recolecção, a caça e a pesca deixaram de ser suficientes para sustentar a humanidade. Na Europa que recebemos de herança são poucos ou nenhuns os espaços que escaparam incólumes à influência humana. Mas, entre a floresta virgem que não temos e as monoculturas que se estendem por muitos quilómetros quadrados, entre a natureza "pura" e a sua absoluta ausência, há vários estádios intermédios em que a natureza pode estar viva, ainda que moldada às nossas necessidades. Há habitats artificiais, como os lameiros no norte do país e os montados de sobreiros e azinheiras no sul, que são refúgio de muitas plantas especializadas, e que só continuarão a sê-lo enquanto se mantiverem as práticas tradicionais que lhes deram origem. Essa simbiose precária entre agricultura e natureza vai-se quebrando com a mecanização, com as culturas intensivas, com o uso imoderado de químicos. As maiores ameaças actuais a muitas das espécies da nossa flora são a expansão e intensificação das explorações agrícolas, quando desacompanhadas (como tem sido a norma) por medidas de protecção da biodiversidade.

A realidade, porém, não é uniforme de norte a sul de Portugal: no Alentejo multiplicam-se os olivais intensivos, e no Douro os montes são rapados à escovinha para o plantio de vinhedos; mas também se tem assistido, em muitos pontos do interior norte e centro do país, ao abandono progressivo de campos agrícolas e de pomares, e ao notável ressurgimento de algumas espécies vegetais outrora tidas como raras. A terra fria transmontana é talvez o ponto do país onde esta recuperação em contraciclo da biodiversidade é mais evidente. Um exemplo é dado pela quase desaparecida flor-de-cuco (Lychnis flos-cuculi), uma planta que a agricultura moderna e a drenagem de terrenos húmidos têm feito recuar por toda a Europa. Não é grande surpresa que os dois únicos registos da espécie no portal Flora-On sejam transmontanos, apesar de a Flora Ibérica não indicar a sua presença nessa província, mas apenas na Beira Alta, Beira Litoral e Estremadura.

Não fomos nós os autores desses registos, e de facto nunca vimos a flor-de-cuco do lado de cá da fronteira. Os poucos e tardios exemplares que encontrámos na Cantábria em Julho já quase não tinham flores, e nem puderam ser fotografados com vagar porque uns cães ameaçadores nos forçaram a regressar ao carro. Convém precisar que as flores têm em geral cinco pétalas (não quatro como mostra a segunda foto), e que cada pétala, dividida em quatro segmentos desiguais, parece por si só uma flor completa. O conjunto é assaz confuso, o que talvez explique o nome de ragged-robin que os anglo-saxónicos dão a esta herbácea vivaz. As flores do (seja então) pisco-maltrapilho, que se agrupam em cimeiras de 5 a 8 e têm uns 4 a 5 cm de diâmetro, surgem em hastes finas, ramificadas, algo viscosas, que podem atingir 70 ou mais centímetros de altura.

27/10/2015

Flores de perdição


Aconitum vulparia Rchb


Na viagem de volta da Cantábria, a estrada pareceu-nos perigosamente estreita, de tal modo que os inúmeros carros de turistas que por ali transitavam eram obrigados a dispor-se em fila ordeira. Era afinal uma impressão falsa, criada pelos rochedos gigantes, desfiladeiros temerosos e naves de arrepiar numa cordilheira montanhosa quase inacessível. Os exemplares desta planta, altos de uns 2 metros, com folhas palmadas muito divididas e inflorescências erectas ramificadas, estavam junto a um ribeiro em cujas margens pedregosas a gotejar se viam dezenas de exemplares de Pinguicula grandiflora. Reconhecemos o capuz das flores, mas a perdição-dos-lobos (wolfbane, monkshood, devil's helmet, queen of all poisons ou blue rocket) que conhecíamos da literatura (não a portuguesa: são raros os escritores nacionais que sabem os nomes e as características das plantas, ou que lhes concedem um protagonismo que vai além de matéria para cenário) tem flores roxas. Esse é o Aconitum napellus, o único que ocorre em Portugal, contando de momento no portal Flora-On com um só registo da subespécie lusitanicum algures num bosque em Trás-os Montes.

Sabendo quão peçonhentas são algumas das espécies deste género (incluindo a das fotos), não arriscámos sequer tocar numa flor. Mas podem analisar connosco alguns pormenores, ver aqui um corte em detalhe e comparar, no Flora-On, estas com outras flores complicadas da família Ranunculaceae (como as de Aquilegia ou Nigella, em contraste com as mais simples, do género Ranunculus). Cada flor tem cinco sépalas, duas laterais largas e achatadas, duas mais estreitas à frente e uma a formar um capuchinho. Dentro dele, estão duas pétalas com um pé alto e um esporão onde se guarda o néctar, indicando que os insectos polinizadores devem ter línguas finas e longas. Espreitando para o interior da flor, vê-se uma câmara com um molho de estames na base.

As plantas do género Aconitum são vivazes e há cerca de 150 espécies no hemisfério norte, cinco das quais se abrigaram na Península Ibérica. O A. vulparia é nativo da Europa e do norte de África; curiosamente, o epíteto específico refere-se a raposas, não a lobos. Algumas espécies inofensivas e de floração outonal, como o A. carmichaelii, são frequentes em jardins (não portugueses, claro). As tóxicas continuam, contudo, a ser as mais apreciadas, seja para facilitar a vitória dos heróis da mitologia, suprimir os rivais em narrativas de reis, princesas e bruxas, eliminar inimigos em histórias de detectives, caçar grandes presas à lança ou simplesmente como sugestão literária de veneno.

24/10/2015

Cabaceira de outros picos



Adenostyles alliariae subsp. pyrenaica (Lange) P. Fourn.


Vistas ao longe, com uns olhos que a idade vai desgastando, as inflorescências e as folhas desta asterácea de porte avantajado (pode superar 1 metro de altura) trazem-nos à memória a Pericallis malvifolia, uma sedutora planta açoriana conhecida no arquipélago como malvavisco ou cabaceira. A afinidade das folhas e do porte geral é inegável mas, quando nos aproximamos, a indistinta mancha lilás das flores resolve-se nas suas componentes, e verificamos que os capítulos desta cabaceira alpina pouco têm a ver com os da espécie insular, que afinal não é sua sósia. Os capítulos da Pericallis são do tipo "malmequer", com os florículos centrais muito diferentes dos periféricos que dão as "pétalas", ao passo que os capítulos da Adenostyles, destituídos de "pétalas", são formados apenas por florículos tubulares. Porém, como não temos nome mais aceitável para lhe dar, e aliás em castelhano até a tratam por calabacera, continuaremos a chamar-lhe cabaceira. A alternativa seria inspirar-nos no epíteto alliariae, alusivo à semelhança das suas folhas com as da erva-alheira (Alliaria petiolata), e dar-lhe um nome insultuoso como falsa-erva-alheira.

Quanto mais alta é a montanha mais tardia é a Primavera. É em Julho e Agosto, quando nas planícies a cor dos prados desfalece com a estiagem, que as plantas alpinas florescem profusamente numa urgência de agarrar o breve intervalo em que a neve e o frio dão tréguas. No início de Julho, data da nossa visita à Cantábria, a floração da cabaceira era ainda incipiente e as plantas estavam pouco desenvolvidas; muito mais vistoso teria sido o espectáculo umas três ou quatro semanas mais tarde.

Distribuída pelas montanhas do oeste da Europa, em ladeiras pedregosas ou no sopé de penhascos, em lugares abertos ou algo sombrios, e vegetando tanto em substratos calcários como siliciosos, a Adenostyles alliariae é uma planta vivaz que passa boa parte da sua vida enterrada na neve. Há contudo alguma controvérsia sobre o nome correcto das plantas que fotografámos: dependendo dos autores consultados, na Península Ibérica ocorre apenas a Adenostyles alliariae, dividida em duas subespécies, ou ocorre ainda a Adenostyles alpina, caso em que as plantas cantábricas se deveriam chamar Adenostyles alpina subsp. pyrenaica. Aguardemos pelo volume correspondente da Flora Ibérica para tirar o assunto a limpo.

20/10/2015

Uma flor para Rapunzel


Phyteuma hemisphaericum L.


Gostamos de tecer à volta das plantas histórias que dêm testemunho da sua convivência com os homens. Podem ser lendas, contos de fadas ou tradições de origem incerta, mas o importante é sentirmos que, muito antes de nós, outras vidas se cruzaram com essas plantas e foram influenciadas por elas. Às vezes, porém, esta vontade de humanizar as plantas, sobretudo as que não têm uma utilidade óbvia, esbarra em incertezas inultrapassáveis. Os nomes populares das plantas são, em regra, caóticos: dependendo da região em que é usado, o mesmo nome pode designar plantas muito diferentes (veja-se a persistente confusão entre o Rhododendron ponticum e o Nerium oleander, ambos conhecidos como loendros); além disso, a mesma planta pode ter diversíssimos nomes. Há ainda os nomes que são esquecidos à medida que o conhecimento tradicional das plantas se vai perdendo, e outros que subsistem vagamente sem que se saiba ao certo que plantas teriam sido por eles designadas. Por exemplo, dizem certas fontes que o topónimo "Carregal" resultaria de "carrega", que seria uma gramínea própria de lugares alagadiços, mas hoje em dia não parece haver em Portugal nenhuma planta que seja conhecida por esse nome.

Contam os irmãos Grimm que Rapunzel, a rapariga de longos cabelos aprisionada numa torre, devia o nome à planta que a sua mãe comeu avidamente quando estava grávida, e pela qual pagou o preço de entregar a filha à bruxa logo após o nascimento. Rapunzel seria o nome dado localmente a alguma variedade de Phyteuma, mas é improvável que se tratasse da planta alpina que hoje apresentamos, pois ela, pela sua pequenez e estreiteza de folhas, pouco teria que se comesse. Na verdade, é até plausível que a planta que saciou a fome à mãe de Rapunzel não fosse uma Phyteuma, mas sim uma outra campanulácea, a Campanula rapunculus, planta comprovadamente comestível usada em tempos como substituta do rabanete.

Uma recolha de contos tradicionais não é um tratado de botânica (nem sequer de etnobotânica), e não devemos censurar os irmãos Grimm pela falta de notas de rodapé que resolvessem semelhantes dilemas. Poderiam tê-lo feito, pois viveram depois de Lineu, quando as plantas europeias mais comuns dispunham já de nomes científicos de aceitação universal. Os dois nomes em jogo neste caso (Campanula e Phyteuma) até são da lavra de Lineu, ou pelo menos foram por ele legalizados, já que "Campanula" foi antes usado por Tournefort (1656–1708). Quanto a "Phyteuma", Lineu parece ter sido o primeiro a usá-lo para estas plantas, muito diferentes daquelas (do género Reseda) que tinham o mesmo nome na antiga Grécia. Nem sempre as escolhas taxonómicas de Lineu obedeceram a uma lógica inatacável.

Dispersa por prados e fissuras de rochas nas mais altas montanhas da Europa ocidental, desde os Alpes aos Pirenéus e à Cantábria, esta herbácea de uns 10 a 20 cm de altura só floresce no Verão. É uma das cinco espécies do género Phyteuma na Península Ibérica, todas elas (tanto quanto se sabe) ausentes do nosso país. A inflorescência globosa, reunindo uma dúzia de pequenas flores, é típica do género: cada flor é tubular e as pétalas começam a descolar por baixo, deixando entrever os estames; o estilete, rematado por três estigmas, fica a sobressair do "tubo" (penúltima foto). Enquanto estão fechadas, as flores assemelham-se a um molho de garras afiadas, mas depois as inflorescências assumem um aspecto desgrenhado, como se fossem taças de esparguete azul.

17/10/2015

Estrela maior


Abiada, Cantábria — bosque ribeirinho de Fagus sylvatica
Imagine o leitor que segue por um trilho numa floresta atapetado de folhas e com solo esbranquiçado que parece calcário, a saltitar para não se molhar nos regatos que se atravessam no caminho — e lhe aparece esta planta. Que nome lhe daria? Dir-se-ia que as folhas são de uma Anemone gigante, mas o porte erecto e as inflorescências lembram os do género Eryngium. Não concorda? Ora repare nas brácteas duras, coloridas de verde ou púrpura e com um ápice aguçado, a formar uma taça que envolve as flores. É certo que, embora quase sempre presente nas umbelíferas, este tipo de invólucro nem sempre está tão desenvolvido como nos cardos, mas as flores das asteráceas não são assim. Bem, confiemos na intuição e avancemos: está encontrada a família, Apiaceae. E temos um candidato a género; a confirmar-se, falta descobrir a espécie.


Astrantia major L.


Uma busca rápida num guia de plantas das Astúrias mostra, mais uma vez, como as aparências podem iludir os amadores. Trata-se de uma umbelífera, sem dúvida, mas não do género Eryngium. A designação Astrantia foi proposta por Lineu e esta espécie, por ser uma herbácea alta (acima dos 40 cm de altura), com umbelas que, ao longe, parecem grandes malmequeres (cada uma com 30 a 50 flores minúsculas, de uns 3 a 4 mm de diâmetro), é a Astrantia major. A menos robusta, que prefere substratos silíceos acima dos 1800 m de altitude e não vive nas montanhas cantábricas que visitámos, ficou com o nome Astrantia minor. São ambas espécies nativas do centro e sul da Europa, de prados de montanha, clareiras de bosque ou locais rochosos. O género Astrantia integra ainda umas oito espécies adicionais na Europa e no oeste da Ásia, todas de habitats montanhosos, mas nenhuma delas se estabeleceu em Portugal.

O nome Astrantia, que deriva do termo grego ástron (estrela) parece querer dizer que esta planta é obviamente uma margarida. Afinal não fomos os únicos enganados ao primeiro olhar pela sua aparência.

13/10/2015

Cabrinha de Sichuan



Onychium japonicum (Thunb.) Kunze



Este feto asiático, que encontrámos numa berma de estrada na ilha do Pico, poderia ter vindo de Sichuan, uma das províncias da China central, mas também de muitos outros lugares e países do extremo oriente, como o Japão, Coreia, Taiwan, Tailândia, Vietname, Nepal, Índia, Paquistão e Filipinas. Os horticultores ocidentais comercializam-no com o nome de Sichuan lace, pois as suas frondes muito recortadas e de textura delicada são comparáveis à mais fina renda. Iguais encómios têm merecido alguns fetos do género Davallia: no Brasil, a Davallia fejeensis (que não é portuguesa nem europeia) tem sido chamada de renda-portuguesa. O que temos à mão em Portugal continental e na Madeira é a Davallia canariensis, que apelidamos de cabrinha por causa do rizoma alongado, coberto de escamas arruivadas, que faz lembrar as patas desse bicho. Embora o Onychium japonicum tenha um rizoma curto que não suscita tal comparação, parece-nos desculpável chamar-lhe cabrinha-de-Sichuan. Até porque já houve gente muito qualificada que a confundiu com a verdadeira cabrinha, e que vai daí anunciou ao mundo que a Davallia canariensis é espontânea nos Açores. Os erros de gente qualificada podem ter uma longevidade assombrosa, já que os desmentidos, para produzirem efeito, terão de vir de gente não menos qualificada. Foi em 1899 que Michel Gandoger (que já referimos a propósito do folhado açoriano), no artigo Plantes nouvelles pour les îles Açores, proclamou que, ao contrário do que Trelease (em Botanical observations on the Azores, 1897) afirmara, a Davallia canariensis existia realmente no arquipélago. Quem tinha razão, segundo Gandoger, era Drouet, que defendera isso mesmo em 1866, no seu Catalogue de la flore des îles Açores. Eis o que escreveu Gandoger:
Davallia canariensis Sm. — Cette Fougère, indiquée aux Açores par Drouet, Cat., p. 213, en a été exclue par Trelease, Bot. azor., p. 170, qui dit: «Evidently an error, the specimens perhaps from Madeira.» Mais M. Carreiro vient de l'y retrouver, au Pico do Salomão. Cependant les échantillons des Açores ne cadrent pas exactement avec ceux que je possède d'une quinzaine de localités des Canaries, de Madère, de Portugal et d'Éspagne. La plante des Açores devra être dénommée (...)

... e a essa peculiar forma açoriana da cabrinha deu Gandoger o nome de Davallia canariensis var. azorica. Na descrição em latim, Gandoger chama a atenção para a disposição linear dos esporângios, bem diferente da que a Davallia costuma apresentar. De facto, o feto colhido em São Miguel que Gandoger descreveu como um novo táxon não era senão o Onychium japonicum — comparem-se os seus esporângios com os da D. canariensis. Os estudiosos da flora açoriana não se deixaram enganar pelo erro — nem Palhinha nem Franco incluem a D. canariensis na lista de espécies do arquipélago — mas, na falta de um desmentido formal escrito na mesma língua por botânicos igualmente reputados, persiste ainda hoje, em obras de referência francesas (por exemplo no livro, de resto excelente, Les fougères et plantes alliées de France et d´Europe occidentale, de Rémy Prelli, publicado em 2000), a ideia de que a D. canariensis existe nos Açores. Embora, curiosamente, nunca se faça menção da var. azorica.

O Onychium japonicum, que está naturalizado nos Açores há mais de um século, tem-se comportado com louvável comedimento. Mantém-se nas mesmas três ilhas em que foi assinalado — São Miguel, Pico e Faial — e pelo menos nas duas últimas continua a ser muito raro. A razão talvez seja a fraca produção de esporos, já que não conseguimos detectá-los nas plantas que examinámos.

Uma outra confusão rodeia o nome Onychium japonicum, pois esse binómio tanto parece aplicar-se ao feto que apresentámos como a uma certa orquídea também asiática cujo nome actual é Dendrobium moniliforme. Um dos princípios basilares da taxonomia botânica é que o mesmo nome não pode designar duas espécies diferentes. Este caso viola tal princípio de forma agravada: Onychium tanto parece ser nome de um género de fetos como de um género de orquídeas. O que sucedeu foi que em 1825 o holandês Carl Ludwig Blume (1796-1862) baptizou um género de orquídeas com o nome Onychium, ignorando que o mesmo nome já tinha sido atribuído em 1820 pelo alemão Georg Friedrich Kaulfuss (1786–1830) a um género de fetos. Por força da regra da prioridade, o uso do nome Onychium para designar orquídeas é ilegal, e portanto Onychium japonicum é a designação válida de um feto e não de uma orquídea. Mas este estranho caso do feto e da orquídea homónimos ilustra ainda a conveniência de usar nomes botânicos completos, que incluam os respectivos autores: Onychium japonicum (Thunb.) Kunze já é diferente de Onychium japonicum Blume, e só a primeira combinação é válida.


Açores: Pico com São Jorge ao fundo

10/10/2015

Com o frio nas orelhas



Sedum candollei Raym.-Hamet


Excluindo as quatro espécies de Sedum que são endémicas do arquipélago da Madeira, o que deste género se conhece em Portugal pode ver-se nesta página da Flora-on, onde apenas faltam registos de Sedum candollei. De acordo com Amaral Franco na Nova Flora de Portugal (que usa a designação Mucizonia sedoides (DC.) D.A. Webb.), deveríamos encontrá-lo em fendas de rocha e margens secas de lagoas na serra da Estrela, em solos pedregosos e siliciosos acima dos 1800 metros; mas a verdade é que nunca o vimos por cá. Ocorre em zonas montanhosas da Península Ibérica e de França, e a Flora Ibérica indica várias cordilheiras ibéricas onde há notícia da sua presença. As fotos são de uma população numerosa que formava em Julho passado um tapete rosado no topo do Pico Tres Mares, na Cantábria.

Esta herbácea é anual e a floração decorre essencialmente no Verão. Note-se como as flores são erectas e se agrupam em cimeiras terminais densas e vistosas. Esta é uma espécie morfologicamente próxima do S. andegavense, S. brevifolium e S. pedicelatum, mas as corolas sésseis rosadas (lembram as do S. maireanum), de pétalas mais compridas do que o tubo, distinguem-na perfeitamente das outras três.

A designação Sedum candollei, proposta em 1929 pelo botânico francês Raymond-Hamet (1890-1972) homenageia o botânico suiço Augustin Pyrame de Candolle (1778-1841), um dos professores de botânica de Karl Wilhelm von Nageli. Ao mesmo tempo, o epíteto assinala que a primeira descrição desta planta se deve precisamente a A. de Candolle, que lhe chamou, em 1808, Cotyledon sedoides. Ironicamente, à luz das regras de taxonomia estabelecidas pelo Código Internacional de Nomenclatura Botânica, o nome Sedum candollei não é actualmente considerado válido. Ao leitor curioso sobre os meandros deste caso sugerimos o artigo Un nombre nuevo para Sedum Candollei Raym.-Hamet, nom illeg., que começa na página 221 do número 52 (1994) da revista Anales do Jardin Botánico de Madrid, onde pode analisar as razões aduzidas por Ginés López González para se considerar ilegítima esta nomenclatura. Nesse texto, G. López propõe um novo nome, Sedum candolleanum Raym.-Hamet ex G. López, mas algumas Floras ainda não o adoptaram. Entretanto, podemos optar, como os espanhóis, por lhe chamar orelhas-de-monge, em alusão às folhas carnudas, roliças, vermelhuscas e imbrincadas.


Alto Campoo, Cantábria

06/10/2015

À espera do degelo


Polystichum lonchitis (L.) Roth


Sabemos que a Terra é (aproximadamente) esférica, mas às vezes esquecemo-nos de fazer uso prático desse conhecimento. Por exemplo, o caminho mais curto entre dois lugares situados à mesma latitude não é, em geral, ao longo de um paralelo, a menos que eles estejam perto do equador; e quanto mais subimos para norte mais se estreita a distância entre os continentes. Se partirmos da Península Ibérica e sobrevoarmos o Atlântico, a América parece-nos distante, mas do norte da Suécia ao Alasca passando pelo Pólo Norte é só um pulinho. Nas suas migrações, as plantas há muito que aprenderam a tirar partido dessas circunstâncias geográficas. As espécies vegetais do hemisfério norte que gostam do frio não raro têm uma distribuição circumboreal, ocupando um anel à volta do Árctico que abrange três continentes. Não é um feito extraordinário, pois nessas geladas latitudes os continentes encostam-se uns aos outros como que para se resguardarem do frio. Muito menos numerosas são as espécies de climas temperados que surgem naturalmente nos dois lados do Atlântico.

O Polystichum lonchitis, que gosta de cumes rochosos a grandes altitudes e deve o epíteto lonchitis às folhas em formato de lança, fornece um exemplo paradigmático dessas migrações através do gelo, distribuindo-se desde o Canadá, norte dos EUA e Gronelândia até à Islândia, Suécia e montes Urais. Tendo entrado pelo norte, não desdenha contudo descer até ao sul, aproveitando os lugares onde a neve cai regularmente, como as montanhas da Cantábria e a serra Nevada em Espanha, ou as montanhas do Atlas em Marrocos. Por contraste, o seu congénere P. setiferum, que vive em bosques e desgosta de temperaturas negativas, revelou-se incapaz de transpor as lonjuras do Atlântico, estando confinado à Europa, à região mediterrânica e à Macaronésia.

As nossas montanhas são baixas, demasiado sujeitas à influência moderadora do oceano, com uma neve que nem sempre cai a contento dos esquiadores. Por falta de resposta cabal ao caderno de encargos apresentado, o Polystichum lonchitis preferiu não se instalar no nosso país (se isso serve de consolo, também não quis a Galiza). A fentanha (Polystichum setiferum) é assim a única espécie do género em Portugal continental. Além das preferências ecológicas distintas, os dois fetos têm perfis muito diferentes: o P. setiferum tem folhas largas e grandes (até 1 m de comprimento), duas vezes divididas, enquanto que o P. lonchitis tem folhas estreitas e pequenas (de uns 20 a 40 cm de comprimento), coriáceas, divididas apenas uma vez. O parentesco entre os dois é porém indesmentível, pois em ambos as divisões de última ordem das frondes têm quase a mesma forma, como se pode ver comparando as fotos aí em cima com esta outra. Um outro feto que apresenta arquitectura semelhante, e de facto parece uma versão a traço grosso do Polystichum lonchitis, é o asiático Cyrtomium falcatum, que já se chamou Polystichum falcatum e está naturalizado nos Açores, onde é um invasor temível.


Pico Tres Mares, Cantábria

Sementes de Portugal


Numa época em que a jardinagem quase desapareceu dos nossos espaços públicos (mesmo dos lugares a que, por hábito, continuamos a chamar jardins), cabe à iniciativa privada não permitir que Portugal seja o país menos florido da Europa. E a inspiração pode vir-nos dos lugares onde a natureza ensaia, sem a nossa ajuda, as mais inesperadas combinações de cores e formas. Trazer para os jardins as plantas dos campos é a a ideia luminosa que move este projecto de João Gomes, que agora lança o seu catálogo de sementes revisto e aumentado para 2015-16, abrangendo cerca de 400 espécies da nossa flora. Para mais informações, consulte o blogue das Sementes de Portugal.

03/10/2015

Visgo, vidálias & painhos


Praia da Graciosa, Açores
A ilha Graciosa é a menos montanhosa das ilhas açorianas, não subindo além dos 405 metros de altitude. Por isso, e apesar da proximidade das outras ilhas do grupo central onde chove bastante durante todo o ano, o clima na Graciosa é mais temperado e muito mais seco. O relevo manso e a amenidade do clima contribuíram para que fosse colonizada quase imediatamente após a descoberta, sendo certo que no início da década de 1440 já por lá pastava gado para apoiar um futuro povoamento da ilha. Hoje a água continua a ser escassa, a área que não foi convertida em pastagens está maioritariamente ocupada por criptomérias e árvores-do-incenso, a vegetação endémica é residual e a ilha tem perdido população. Contudo, em 2007, a ilha foi classificada pela Unesco como Reserva da Biosfera. Estranhámos o galardão: se compararmos com as outras ilhas açorianas, não parece injusto considerar que da floresta laurissilva não sobra na Graciosa o suficiente para justificar tamanho destaque. Felizmente as ligações aéreas entre a ilha e o continente obrigaram-nos a ficar alguns dias mais na ilha, e pudemos corrigir esta impressão.


Graciosa: ilhéu da Praia


É que a ilha Graciosa tem ao largo dois ilhéus, o Ilhéu de Baixo e o Ilhéu da Praia, onde decorrem, há mais de vinte anos, programas de conservação da flora e da fauna com um sucesso invejável. E foi precisamente no ilhéu da Praia que, com permissão de quem cuida do Parque Natural da Graciosa e guiados por dois zelosos vigilantes da natureza, reencontrámos algumas boas populações da flora endémica açoriana e uma ave extraordinária.


Azorina vidalii & Tolpis succulenta no ilhéu da Praia


Durante décadas, o ilhéu da Praia serviu como parque de merendas para as tardes de domingo dos moradores da Graciosa. Tornou-se um torrão ressequido, quase sem vegetação. Quando começou o programa de reintrodução de plantas e de conservação das aves que nidificam ou poisam no ilhéu, o acesso ao ilhéu foi condicionado e hoje nota-se o resultado dessa redução da pressão humana. A população de Azorina vidalii no ilhéu é surpreendente (ela que se recusa a germinar nos calhaus das praias da Graciosa) e a de Tolpis succulenta é um regalo para quem sabe como ela é rara nos Açores (com excepção da ilha de Santa Maria). E o esforço com que cuidaram da ave marinha Oceanodroma monteiroi, aumentando significativamente os seus efectivos, é digno não apenas da honra e glória de uma medalha da Unesco mas merecedor de um apoio financeiro consistente, que garanta que o empenho nestas medidas de preservação não esmorece.


juvenil de painho-de-Monteiro (Oceanodroma monteiroi Bolton et al., 2008)
Esta ave rara (mas, segundo Gaspar Frutuoso em Saudades da terra (sec. XVI), antes muito abundante, tendo sido dizimada para alimentação e extração do óleo) é endémica dos Açores e o maior contingente está precisamente nos ilhéus da Graciosa. Nidifica apenas nestes dois ilhéus e apresenta diferenças relevantes em relação à espécie que se conhece da Madeira (Oceanodroma castro, o painho-da-Madeira, que também ocorre noutras ilhas açorianas e nas ilhas Galápagos), em particular o tamanho, a época de reprodução e o piar. Podem parecer detalhes de somenos, mas eles impedem que as aves açorianas e madeirenses se reproduzam entre si, originando a individualização das duas espécies. O epíteto específico homenageia o ornitólogo Luís Monteiro, que estudou esta ave e se apercebeu das diferenças com a espécie madeirense, mas faleceu (num avião da Sata que em 1999 se despenhou no Pico da Esperança, na ilha de São Jorge, por causa de uma tempestade) antes de ser validada, através de análise genética, a distinção taxonómica que propôs.

Falta registar que a nossa visita à Graciosa no início de Agosto coincidiu em parte com uma festa religiosa de renome que duplicou o número de visitantes na ilha e esgotou a produção das deliciosas queijadas locais. Fica o leitor avisado.