Onychium japonicum (Thunb.) Kunze
Este feto asiático, que encontrámos numa berma de estrada na ilha do Pico, poderia ter vindo de Sichuan, uma das províncias da China central, mas também de muitos outros lugares e países do extremo oriente, como o Japão, Coreia, Taiwan, Tailândia, Vietname, Nepal, Índia, Paquistão e Filipinas. Os horticultores ocidentais comercializam-no com o nome de
Sichuan lace, pois as suas frondes muito recortadas e de textura delicada são comparáveis à mais fina renda. Iguais encómios têm merecido alguns fetos do género
Davallia: no Brasil, a
Davallia fejeensis (que não é portuguesa nem europeia) tem sido chamada de
renda-portuguesa. O que temos à mão em Portugal continental e na Madeira é a
Davallia canariensis, que apelidamos de
cabrinha por causa do
rizoma alongado, coberto de escamas arruivadas, que faz lembrar as patas desse bicho. Embora o
Onychium japonicum tenha um rizoma curto que não suscita tal comparação, parece-nos desculpável chamar-lhe
cabrinha-de-Sichuan. Até porque já houve gente muito qualificada que a confundiu com a verdadeira cabrinha, e que vai daí anunciou ao mundo que a
Davallia canariensis é espontânea nos Açores. Os erros de gente qualificada podem ter uma longevidade assombrosa, já que os desmentidos, para produzirem efeito, terão de vir de gente não menos qualificada. Foi em 1899 que Michel Gandoger (que já referimos a propósito do
folhado açoriano), no artigo
Plantes nouvelles pour les îles Açores, proclamou que, ao contrário do que Trelease (em
Botanical observations on the Azores, 1897) afirmara, a
Davallia canariensis existia realmente no arquipélago. Quem tinha razão, segundo Gandoger, era Drouet, que defendera isso mesmo em 1866, no seu
Catalogue de la flore des îles Açores. Eis o que escreveu Gandoger:
Davallia canariensis Sm. — Cette Fougère, indiquée aux Açores par Drouet, Cat., p. 213, en a été exclue par Trelease, Bot. azor., p. 170, qui dit: «Evidently an error, the specimens perhaps from Madeira.» Mais M. Carreiro vient de l'y retrouver, au Pico do Salomão. Cependant les échantillons des Açores ne cadrent pas exactement avec ceux que je possède d'une quinzaine de localités des Canaries, de Madère, de Portugal et d'Éspagne. La plante des Açores devra être dénommée (...)
... e a essa peculiar forma açoriana da cabrinha deu Gandoger o nome de
Davallia canariensis var.
azorica. Na descrição em latim, Gandoger chama a atenção para a disposição linear dos esporângios, bem diferente da que a
Davallia costuma apresentar. De facto, o feto colhido em São Miguel que Gandoger descreveu como um novo táxon não era senão o
Onychium japonicum — comparem-se os seus
esporângios com os da
D. canariensis. Os estudiosos da flora açoriana não se deixaram enganar pelo erro — nem Palhinha nem Franco incluem a
D. canariensis na lista de espécies do arquipélago — mas, na falta de um desmentido formal escrito na mesma língua por botânicos igualmente reputados, persiste ainda hoje, em obras de referência francesas (por exemplo no livro, de resto excelente,
Les fougères et plantes alliées de France et d´Europe occidentale, de Rémy Prelli, publicado em 2000), a ideia de que a
D. canariensis existe nos Açores. Embora, curiosamente, nunca se faça menção da var.
azorica.
O
Onychium japonicum, que está naturalizado nos Açores há mais de um século, tem-se comportado com louvável comedimento. Mantém-se nas mesmas três ilhas em que foi assinalado — São Miguel, Pico e Faial — e pelo menos nas duas últimas continua a ser muito raro. A razão talvez seja a fraca produção de esporos, já que não conseguimos detectá-los nas plantas que examinámos.
Uma outra confusão rodeia o nome
Onychium japonicum, pois esse binómio tanto parece aplicar-se ao feto que apresentámos como a uma certa orquídea também asiática cujo nome actual é
Dendrobium moniliforme. Um dos princípios basilares da taxonomia botânica é que o mesmo nome não pode designar duas espécies diferentes. Este caso viola tal princípio de forma agravada:
Onychium tanto parece ser nome de um género de fetos como de um género de orquídeas. O que sucedeu foi que em 1825 o holandês Carl Ludwig Blume (1796-1862) baptizou um género de orquídeas com o nome
Onychium, ignorando que o mesmo nome já tinha sido atribuído em 1820 pelo alemão Georg Friedrich Kaulfuss (1786–1830) a um género de fetos. Por força da regra da prioridade, o uso do nome
Onychium para designar orquídeas é ilegal, e portanto
Onychium japonicum é a designação válida de um feto e não de uma orquídea. Mas este estranho caso do feto e da orquídea homónimos ilustra ainda a conveniência de usar nomes botânicos completos, que incluam os respectivos autores:
Onychium japonicum (Thunb.) Kunze já é diferente de
Onychium japonicum Blume, e só a primeira combinação é válida.
Açores: Pico com São Jorge ao fundo