Do Havai para Valongo
O escocês Arthur Conan Doyle (1859–1930) não foi só autor de Sherlock Holmes. A certa altura até se cansou de registar os casos do eminente detective e quis livrar-se dele atirando-o por uma ravina abaixo; depois, já se sabe, teve de ressuscitá-lo, explicando de forma canhestra que ele afinal não caíra no precipício. Conan Doyle queria ser reconhecido como escritor sério, ou pelo menos não ficar amarrado a um único personagem. Escreveu vários contos sem Sherlock Holmes, romances históricos à maneira de Walter Scott (escocês), e outros de aventuras que nada ficam a dever aos de Robert Louis Stevenson (também escocês).
The Lost World, livro que Conan Doyle publicou em 1912, narra uma aventura na América do Sul. Mais ou menos no local onde Brasília seria construída, ou talvez uns milhares de quilómetros a noroeste (as indicações geográficas são imprecisas), uma expedição liderada pelo tempestuoso Professor Challenger descobre, num planalto quase inacessível, formas de vida que se julgavam extintas há milhões de anos — incluindo, claro está, todos os dinossauros que viriam a ganhar fama no Jurassic Park, mas também hominídeos (o tal missing link muito discutido na imprensa da época) e uma curiosa variedade de plantas.
O imenso planalto onde a vida pré-histórica se refugiou é de formato oval e está delimitado, a todo o perímetro, por uma ravina de uns 100 metros de altura, inclinada para dentro. É como um estádio descomunal desprovido de acessos por lapso do arquitecto. O isolamento em relação ao exterior terá protegido os dinossauros das convulsões que ditaram a sua extinção no resto da planeta.
A vida vegetal do enclave é uma miscelânea de épocas e de latitudes. As mesmas condições que salvaguardaram os dinossauros permitiram a sobrevivência das plantas suas contemporâneas; e há também plantas modernas cuja presença não carece de grandes explicações, pois as sementes têm os seus próprios meios de vencer barreiras geográficas. Suscita estranheza que o autor fale de carvalhos e faias, árvores que julgamos ser europeias, mas há árvores dos mesmos géneros (Quercus e Fagus) originárias do continente americano, pelo menos da metade norte. Damos o devido desconto e deixamo-nos embalar na aventura. As plantas primevas incluem ginkgos (confere, pois diferentes espécies desta árvore espalharam-se pelo mundo no período jurássico), fetos e equisetáceas. E poderiam incluir licopodiáceas como a planta que hoje aqui trazemos, mas admite-se que Conan Doyle não tenha sido exaustivo: ele quis afinal escrever um romance de aventuras e não um tratado de botânica.
Tanto as equisetáceas como as licopodiáceas são das plantas terrestres mais primitivas que se conhecem. Surgiram no período devónico (de 415 a 360 milhões de anos atrás), foram das primeiras a terem raízes e folhas reconhecíveis, e delas se formaram as florestas que primeiro revestiram os continentes. E eram florestas a sério, pois essas famílias botânicas incluíam árvores de grande porte, apesar de hoje, da mesma linhagem, só restarem plantas herbáceas.
A presença da Lycopodiella cernua — uma planta prostrada e muito ramificada com caules que atingem os 50 cm de comprimento — no vale do rio Ferreira, em Valongo, é ainda mais misteriosa do que a dos carvalhos e faias no mundo perdido de Conan Doyle. Não por se tratar de uma relíquia pré-histórica que se acreditava extinta e só sobreviveu em Valongo: de facto, a planta tem uma distribuição cosmopolita e é mesmo abundante em certos habitats. Mas são habitats tropicais ou temperados húmidos: Havai, América e Ásia tropicais, Macaronésia. Na Europa, a Lycopodiella cernua só ocorre em Valongo... e na Sicília. Assevera a Flora Ibérica que se trata de populações naturalizadas. Serão mesmo? Quem iria dar-se ao trabalho de importar, e logo para um vale quase desabitado em Valongo, uma planta tão pouco vistosa?
Seja qual for a explicação para a sua presença nas margens do rio Ferreira, o que é certo é que a Lycopodiella cernua é uma das plantas mais raras e ameaçadas de toda a flora portuguesa.
1 comentário :
A hipótese de Lycopodiella cernua ter sido introduzida parece-me pouco sustentável por todas as razões que o Paulo indica. Não é uma planta de jardim e o facto de necessitar de um habitat com características muito concretas não favorece nada a hipótese da introdução.
Em Valongo, está entregue ao acaso. Bastará que um dia deste alguém decida alargar um pouco o caminho para facilitar o (pouco) transito que por ele passa ou que um incêndio ocorra na zona para que desapareça. É uma pena.
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