28/09/2010

Por quem os montes ardem


Succisa pinnatifida Lange



Funes não só se lembrava de cada folha de cada árvore de cada monte, como também de cada uma das vezes que a tinha notado ou imaginado. (...) Suspeito, no entanto, de que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos.

Jorge Luis Borges, Funes el memorioso (Ficciones, 1944, trad. José Colaço Barreiros, Ed. Teorema)

Logo que soubemos que uma espécie do género Succisa já foi abundante em Valongo mas que agora está à beira da extinção, apressámo-nos a ir à serra despedir-nos dela. Tínhamos lido que uma das ameaças a esta planta é a vizinhança de espécies mais competitivas. Além disso, é exigente quanto às características do solo — xistoso, mas não de qualquer composição —, e não parece ter uma estratégia que a sustente em habitats degradados. Por isso, as populações conhecidas deste endemismo galaico-português estão em grave declínio, e ele consta da lista vermelha da flora vascular ameaçada (em Espanha; Portugal não tem tal lista), estando sob protecção de várias directivas ambientais (espanholas, pois as entidades portuguesas desconhecem o problema).

Como dizia, no sábado fomos procurá-la. Queríamos um terreno devastado por um incêndio há não mais que dois anos. Nas serras de Valongo, que têm ardido muito e anualmente, há vertentes xistosas extensas de solo negro queimado que, em poucos anos, se cobrem de urze, carqueja, tojo, fetos e pequenos eucaliptos; nessa altura, cremos, esta Succisa desaparece vencida pela concorrência, mas logo a seguir ao incêndio tem alguma chance de ali se instalar. Era esse o nosso devaneio de manhã.

Ao início da tarde encontrámos um núcleo de cerca de cem exemplares, a maioria dos pés em flor, numa clareira à beira de um caminho com cerca de cinco metros de diâmetro e junto a um poste de electricidade. Um pouco adiante terá havido mais alguns porque avistámos um solitário no meio fio de um estradão recém-aberto — já se sabe que os azares acontecem, é uma desgraça mas ninguém teve má intenção, desculpem lá.

Os exemplares das fotos têm uns 60 cm de altura, revelando os vários tipos de folhas desta espécie e o voltear dos sucessivos nós das inflorescências, mas havia muitos só com a roseta basal. Nas fotos não se nota, mas a inflorescência é menor que a da S. pratensis; contudo, o estilete de cada flor é mais longo, embora pareça só se desenvolver quando já quase todos os estames perderam a antera, provavelmente para evitar a autopolinização (última foto).

Não se depreenda deste relato que afinal os incêndios são indispensáveis à conservação da biodiversidade. Antes da eucaliptização intensiva e dos fogos quase anuais, a Succisa não corria grandes riscos; só agora, com o equilíbrio natural quebrado, é que ela está em perigo. Sem uma acção inequívoca para a salvar, restar-nos-á reconstituir de modo intoleravelmente preciso, como Funes, os contínuos avanços da ruína.

5 comentários :

Rosa disse...

Não é então uma scabiosa? São géneros diferentes pelos vistos. Isto da botânica é uma complicação e eu cada vez sei mais que nada sei : )

Anónimo disse...

Bom dia Maria!
Com a eloquência de quem sabe e a delicadeza das versadas,conseguiu inquietar-me também.
Manuela Moutinho

Maria Carvalho disse...

Não é Scabiosa, Rosa, embora pareça. Pode reparar, por exemplo, que na Succisa as flores têm quatro pétalas; as do género Scabiosa têm cinco.

Seja bem vinda, Manuela. Obrigada pela sua gentileza.

Rosa disse...

Obrigada Maria, com essa explicação não volto a confundi-las. Não há dia em que não se aprenda alguma coisa por aqui. :-)

GPC disse...

As entidades portuguesas aparentemente só conhecem uns tais de "mercados internacionais" e nada mais lhes parece interessar.