Desaparecida
Desde a chegada do doutor Haselmayer até à sua partida, o egrégio senhor conde e o seu respeitável hóspede costumavam passar o tempo todo juntos, sem comerem, sem tocarem nas cobertas da cama, a falar constantemente da Lua, com um fervor misterioso que eu não conseguia entender. A sua exaltação atingia o auge quando a lua cheia calhava justamente no dia 21 de Julho: de noite, iam ao pequeno charco pantanoso do castelo e passavam horas e horas de olhos fixos na água, contemplando a imagem argêntea do disco celeste. Uma noite, ao passar casualmente pelo local, cheguei mesmo a ver os dois senhores a lançarem à água uns pedaços esbranquiçados — muito provavelmente, miolo de pão — e quando o doutor Haselmayer se apercebeu, disse prontamente:
- Estamos só a dar de comer à Lua... oh, perdão, queria dizer ao... ao cisne.
Mas a perder de vista não havia um cisne que fosse. Nem um peixe.
O que ouvi, por acaso, nessa noite pareceu-me estar ligado por um laço misterioso à cena a que assistira, pelo que se me gravou na memória, palavra por palavra, e logo o transcrevi fielmente.
- (...) Seria um mal assim tão grande?
- Mal? Inconcebível! Tremendo! — vociferou o conde com a sua voz estridente. Pensai um pouco: o homem dotado da capacidade de propagar a civilização no cosmos! Como pensais que seria a Lua passadas duas semanas, meu caro? Em cada cratera haveria um velódromo e, a toda a volta, terrenos de decantação das águas de esgoto. Se é que, antes disso, não se imiscuiu a chamada arte dramática, e o solo não se tornou árido, eliminando para sempre qualquer possibilidade de vegetação. Gostaríeis porventura que os planetas estivessem ligados telefonicamente de acordo com a hora das cotações da Bolsa, e que as estrelas duplas da Via láctea fossem obrigadas a exibir certificados oficiais de casamento? Não, não, meu caro, por mais algum tempo o universo pode muito bem ir vivendo na rotina do costume.
Gustav Meyrink, Die Vier Mondbruder [Os quatro irmãos da Lua] (A Biblioteca de Babel, textos seleccionados por Jorge Luis Borges, Ed. Presença, 2007)
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