08/03/2010

Prímula entre iguais

Primula vulgaris Huds. subsp. vulgaris
Desde o tempo de um certo ministro da educação que o grilo do Campo Alegre toca violino num patamar entre dois curtos lanços de escadas. Viveu tempos de decadência: ficou maneta, perdeu a cor, desapareceu-lhe o arco com que atacava o instrumento. Mas lá o restauraram com o dinheiro de alguma Queima das Fitas, e agora está como novo. Menciono-o por me servir de ponto de referência: no patamar logo acima há um gradeamento que veda um quintal desleixado, pertença de uns barracos pré-fabricados onde ainda vai morando gente. Tanto os barracos como o quintal são invisíveis da rua, ocultos que estão por um muro rústico e por velhas casas de um ou dois pisos, numa fiada que destoa vivamente dos altos prédios habitacionais do outro lado da rua.

Graças ao abandono, o quintal quase merecia ser promovido à categoria de reserva natural local. Encontram-se lá flores que nos desabituámos de ver na cidade, seja por falta de solo livre, seja porque a jardinagem a que estamos condenados insiste na abolição de tudo quanto é espontâneo. Sirva de exemplo o imenso relvado que cerca os edifícios universitários. Só as boninas e outras flores de existência acelerada conseguem pôr a cabeça de fora enquanto não vem o cortador de relva para a carecada mensal. Em contraste com esse verde impenitente, o desgrenhado quintal parece um arco-íris. A rede que o impede de ser assaltado pela zelosa máquina cria um refúgio onde proliferam, entre outras plantas espontâneas, alhos silvestres (Allium triquetrum L.), fumárias, dentes-de-leão, jarros, Bidens aurea e Calystegia silvatica. E, claro está, prímulas — que, como sugere o seu nome, são as primeiras em cada ano a dar um ar da sua graça, quando o Inverno ainda está para durar.

Das cerca de 400 espécies do seu género, só a Primula vulgaris [sinónimo Primula acaulis (L.) L.] é nativa de Portugal, onde, tirando breves incursões ao centro e ao sul, parece restringir-se à metade norte do território. Várias congéneres suas têm flores agrupadas em umbelas na extremidade de hastes erectas; no entanto, a flores desta prímula brotam em curtas hastes individuais e ficam aninhadas na roseta basal formada pelas folhas.

Se o leitor observar com atenção as fotos acima (clicando pode vê-las em ponto maior), notará que nalgumas flores o estigma é saliente, enquanto noutras ele parece estar escondido. Essa variação é típica do género Primula, e — conforme é aqui muito bem explicado — tem como propósito evitar o cruzamento entre plantas geneticamente próximas.

3 comentários :

Luz disse...

É tão sábia a naturaza!!! Nunca tinha reparado na diferença do estigma...
Esta é mais uma das plantas que cresce espontâniamente na Serra de Sintra e no quintal dos meus pais. mais uma que me acompanha desde que me lembro, e que eu adoro por ser simples, bonita e singela.

Paulo Araújo disse...

Olá, Luz. Fiquei então a saber que a planta também existe em Sintra. De facto, de acordo com o mapa de distribuição que aparece na Flora Digital de Portugal, ela está concentrada a norte, mas há umas manchinhas isoladas mais a sul. Uma delas deve correspender a Sintra. Para baixo disso, só reaparece numa pequena parte da serra algarvia. Mas também pode suceder que o mapa não esteja inteiramente correcto.

António disse...

Só vocês para, em mais um dia soturno num Inverno interminável, nos alegrarem com a Primavera: prímulas, "pão-com-queijo".
Bem-hajam!