Cebolinha albarrã
Cebola-albarrã é o nome que se dá em Portugal à Urginea maritima. É uma planta bolbosa que no Outono faz brotar uma vistosa espiga de flores brancas, muitas vezes com mais de um metro de altura, desacompanhada de folhas. Estas só surgem depois, discretamente, quando a haste floral já secou, mantendo-se visíveis no Inverno e na Primavera. Em Espanha e nas Canárias, nomes equivalentes (cebolla albarrana ou cebolla almorrana) designam tanto a Urginea maritima como plantas de porte mais modesto, como esta de flores lilás que as fotos ilustram, e que é endémica das Canárias. Se abstrairmos da cor e do tamanho, e do facto de, na planta canarina, flores e folhas surgirem em simultâneo, conseguimos detectar evidentes traços de família entre as duas plantas: têm o mesmo tipo de inflorescência, as flores têm igual estrutura (estreladas, com seis tépalas, seis estames, um único estigma, ovário súpero), e ambas apresentam só folhas basais. Lineu, com o seu critério de classificação baseado nos orgãos sexuais das plantas, não teria dúvidas em incluí-las no mesmo género: o nome original da nossa cebola-albarrã, publicado em 1753 no Species Plantarum, é justamente Scilla maritima.
Mas até as flores podem enganar, e tem-se vindo a descobrir que o género Scilla, tal como circunscrito por Lineu, é um saco demasiado amplo onde cabem coisas muitos díspares. Houve o que se chama convergência evolutiva, que é o que acontece quando ramos evolutivos separados desenvolvem características comuns de forma independente. Neste caso, as "flores tipo Scilla" terão aparecido em várias plantas que não partilhavam antepassados próximos. Por exemplo, a (agora chamada) Urginea maritima está evolutivamente mais distante das "verdadeiras cilas" do que as plantas do género Muscari, que têm flores de aparência muito diferente.
A reorganização filogenética da taxonomia botânica obrigou a grandes mudanças que ainda estão em curso. O princípio básico é que cada grupo taxonómico deve conter todos os descendentes de uma certa entidade, e apenas esses. Como o género Scilla era polifilético (continha espécies com ascendências diferentes), houve necessidade de o desmembrar. Entre os géneros criados por essa verdadeira pulverização contam-se Prospero (para onde transitou a Scilla autumnalis), Tractema (que recebeu a Scilla ramburei, a S. verna e a S. odorata), Oncostema (nome actual da vistosa Scilla peruviana) e Nectaroscilla (que acolheu a Scilla hyacinthoides). Das sete espécie de Scilla assinaladas em Portugal continental, apenas a S. monophyllos não foi obrigada a mudar de género.
E quantos às cilas das Canárias? Houve uma tentativa para as incluir num género próprio, Autonoe, onde também caberia a muito semelhante (e muito rara) cila-da-Madeira (Scilla madeirensis), mas a aceitação da proposta não é unânime.
Seja qual for o nome do género, esta cebolinha-albarrã é uma das duas "cilas" presentes nas Canárias, por sinal a menos vistosa. As hastes florais, de cor avermelhada, têm 10 a 20 cm de altura; as folhas, em número de 2 ou 3, são estreitas (de 1 a 2 cm de largura) e têm 10 a 20 cm de comprimento. A planta vive em habitats rochosos, amiúde perto da costa, e floresce principalmente de Janeiro a Abril, com mais intensidade em anos pluviosos. Ainda era cedo em Dezembro, data da nossa viagem, e o ano tinha decorrido muito seco, de modo que o prémio para os nossos esforços de prospecção foram apenas duas plantas em flor (no sítio de Interián, em Los Silos) e umas tantas rosetas de folhas sem sinal de floração, estas nuns rochedos da costa noroeste a que chegámos após cruzar uma interminável plantação de bananeiras.