30/12/2022

Ervas do sul

Reichardia picroides (L.) Roth


Mesmo as plantas anónimas que parecem acompanhar-nos por todo o lado, e que se instalam com grande à-vontade em taludes e bermas de caminhos, podem ser motivo de surpresa. Consideremos, por exemplo, os dentes-de-leão: é habitual vê-los em relvados ou despontando nas rachas dos passeios, denunciando pela sua presença mais ou menos conspícua o grau de zelo (ou falta dele) de quem deveria cuidar desses espaços. A parte interessante é que, sendo cada dente-de-leão por si só uma planta bonita e digna da nossa atenção (a jardinagem que defendemos e, em pequena escala, praticamos é outro nome para a anarquia), há muitas plantas diferentes que se escondem sob essa designação imprecisa. Até dentro do género Taraxacum — que é quase intratável do ponto de vista taxonómico e reúne a maioria dos dentes-de-leão que vemos nos relvados — é grande a diversidade, e há várias outras compostas que, pelos seus capítulos amarelos formados exclusivamente por florículos ligulados (não se distinguindo, como acontece nos malmequeres, um disco central de florículos tubulares), merecem também ser chamadas dentes-de-leão. Dessas, a mais bem sucedida entre nós parece ser a Hypochaeris radicata, que aparece de norte a sul do país (sem falhar as ilhas) tanto em jardins citadinos como em ambientes rurais. Mas há dentes-de-leão não tão adaptáveis, alguns deles restritos a um tipo preciso de habitat: por exemplo, a Reichardia gaditana, prima da planta que hoje destacamos, é exclusiva de dunas marítimas e pouco tolerante a perturbações do habitat. Já a Reichardia picroides (fotos acima) não parece ser tão picuinhas, beneficiando por isso de uma distribuição mais ampla, que no caso de Portugal continental abrange grande parte do centro e sul do país. Não se lhe conhecendo preferência marcada por lugares alterados, não podia, até há poucos anos, ser qualificada como planta ruderal. Nota-se, contudo, que em anos recentes ela se vem expandindo para o norte do país, e aí qualquer recanto lhe serve de poiso: na ânsia de firmar raízes em território novo, abdica de qualquer exigência e assume descomplexadamente um comportamento low life.

As fotos que ilustram o texto foram captadas há oito anos junto à praia de Adraga, em Sintra. Porque a nossa geografia é mais nortenha, não era planta que víssemos com frequência, e por isso a submetemos a uma sessão fotográfica. A falta de familiaridade não nos permitia, no imediato, saber se estávemos em presença da Reichardia picroides (como depois se confirmou) ou da sua congénere Reichardia intermedia. Uma diferença decisiva é que as brácteas involucrais da segunda têm uma margem escariosa mais ampla — compare esta imagem com a 4.ª foto aí em cima. Nos anos que entretanto decorreram, não voltámos a Sintra, mas continuámos a encontrar a planta, e em lugares cada vez mais a norte. Vimo-la em São Jacinto (Aveiro) e em Gaia junto ao Cabedelo. Um ou dois anos depois atravessou o Douro, e agora, se quisermos novamente fotografá-la, não precisamos de sair da nossa cidade. Instalou-se não propriamente numa viela de má fama, mas numa daquelas pequenas ruas de traseiras onde sobrou um muro velho entre dois prédios de betão e vidro. Vá-se lá entender o que faz as plantas mexerem-se.

22/12/2022

Salmo


Deste-nos, é certo, o corrimão.
Mas os degraus,
os degraus onde começam?


Estendeste-nos a mão,
mas por dentro da fogueira. Por dentro
da fogueira que difícil é tocar-te.


Hospedaste nossa alma
numa torre acastelada, mas a torre
levantaste-a em terrenos inimigos.


Rasgaste em toda a parte veios de água.
Mas a sede
temos nós de procurá-la.


José Miguel Silva, O sino de areia (Gilgamesh, 1999)

12/12/2022

Sargacinho da levada



As montanhas sobranceiras a Güímar, em Tenerife, guardam um dos segredos mais inesperados da maior ilha das Canárias. A cerca de 1060 metros de altitude, corre uma levada esculpida nas encostas rochosas, furando túneis e debruçando-se em abismos de causar vertigens. Tal como na Madeira, é possível caminhar vários quilómetros ao longo da levada, tendo sempre a máxima cautela para não dar um passo em falso. Não há quaisquer resguardos para evitar quedas, e de facto vêem-se, no início do percurso, muitas tabuletas desencorajando os visitantes a aventurarem-se na caminhada. Não tendo acatado tais conselhos, avançámos sempre com prudência. Afinal, se na Madeira tivéssemos respeitado todas as proibições não teríamos visitado nem a levada do Caldeirão Verde nem a da Ribeira da Janela, e o nosso conhecimento da flora madeirense seria mais pobre.

Apesar de levar pouca água e de atravessar lugares não muito verdejantes, a levada de Güímar prometia-nos acesso a tesouros botânicos de outro modo inalcançáveis. À altitude a que aqui estamos, a vegetação é dominada pelos pinheiros-das-Canárias (Pinus canariensis), mas nestas encostas quase verticais a arborização é esparsa e presente apenas nos lugares mais resguardados. É sobretudo a vegetação herbácea e arbustiva que nos atrai a atenção: várias suculentas do género Aeonium, as estreleiras (género Argyranthemum), as emblemáticas canarinas (Canarina canariensis) e os simpáticos dragõezinhos (Dracunculus canariensis) são presença regular ao longo do passeio. Mas é só depois de atravessarmos o primeiro túnel (200 metros, uma brincadeira comparado com os da Madeira) que nos surge a mais rara das plantas que vimos nesse dia: uma pequena cistácea arbustiva de um género eminentemente mediterrânico, Helianthemum, que está bem representado na flora portuguesa, sobretudo na metade sul do país.

Helianthemum broussonetii Dunal


O sargacinho que viemos incomodar no seu esconderijo chama-se Helianthemum broussonetii. Endémico de Tenerife e La Palma, distingue-se dos seus congéneres (há dezasseis espécies de Helianthemum nas Canárias, a maioria endémicas) pelas folhas lanceoladas e relativamente grandes (até 2,5 cm de comprimento), e pelo indumento de pêlos curtos (em contraste com o aspecto hirsuto do Helianthemum teneriffae, endémico de Tenerife). Floresce de Maio a Junho e tem preferência por lugares de altitude elevada, tanto assim que há quem lhe chame jarilla de monte. Como invariavelmente sucede na família das cistáceas, as flores duram poucas horas antes de deixarem cair as pétalas. Por isso o encontro com uma planta florida é sempre uma ocasião feliz, e o fotógrafo sabe que não há tempo a perder: a foto é para tirar agora, pois no regresso pode já ser tarde.

06/12/2022

Cravos de Outono

É fácil ser planta. A vida é um pouco parada, é certo, mas não lhe falta um propósito nem uma agenda de tarefas, que cumpre escrupulosamente. Com os dias geridos pelos genes, não se aflige com o destino ou com a morte, nem busca uma razão divina para a sua presença no planeta. Tem de competir por espaço e recursos, mas não inicia uma guerra por isso. Trata-se apenas de sobreviver até garantir descendência, e nisso o tempo, nosso inimigo, é o seu maior aliado.

Ainda que a comparação com as espécies animais seja inapropriada, e neste âmbito seja raro haver certezas, parece que, quando existem, as raízes funcionam como o cérebro das plantas, coordenando as várias fases do seu ciclo de vida. As flores, porém, dedicadas àquela que é a tarefa mais relevante para a espécie, são criadas para serem belas e atrairem polinizadores. Não admira que durem pouco. Em milhões de anos, por adaptação a novos polinizadores ou a novos habitats, as flores podem mudar bastante de forma, tamanho, época de maturação e período de abertura. E de pétalas.

Dianthus broteri Boiss. & Reut.


As pétalas fimbriadas, ou de margens finamente divididas, parecem um esforço de beleza um pouco exagerado, mas é um pormenor presente na floração de inúmeras famílias. A função biológica desse detalhe na pétala, em geral o orgão mais simples da flor, varia com as espécies. Dizem que é bastante comum naquelas que os polinizadores visitam de noite. Percebe-se porquê: para o reconhecimento da flor, mal o insecto aterra nela, ajuda tactear a textura da flor e sentir o aroma do néctar; mas a aproximação dos insectos à flor faz-se confiando na informação visual. Ora, é garantido que, na escuridão do fundo, a franja longa das pétalas, em combinação com a sua coloração clara e o movimento das fímbrias, aumenta a visibilidade das flores.

Se o leitor já usou, para aromatizar a casa, uns frasquinhos de líquido perfumado onde se mergulham umas varas finas de madeira dispostas em cone, ou em leque, talvez conjecture, como alguns botânicos, que a divisão fina das pétalas pode também servir para espalhar melhor o perfume das flores, sinalizando sem ruído a sua presença. Faltam testes comparativos e experiências de campo credíveis para tornar plausível esta explicação. Mas sabe-se que, em milhões de anos de adaptações, houve espécies cujas flores mudaram de figurino, ganhando e perdendo a franja nas pétalas várias vezes. Um evoluir da arquitectura das corolas em tudo semelhante ao rodopio anual da nossa moda de Outono-Inverno.

25/11/2022

Acima das nuvens



Entre Maio e Junho, na montanha do Teide, em Tenerife, é a floração do taginaste que mais atrai a admiração dos turistas. Os exemplares de Echium wildpretii que, por inadvertência, instalam as suas torres vermelhas junto aos escassos pontos de estacionamento, são obrigados, qual presidente Marcelo, a posar ao lado das hordas de visitantes em busca das selfies mais invejáveis. E é plausível que no mundo vegetal a inveja também jogue o seu papel, pois afinal no Teide há muito mais plantas dignas de serem vistas e os apressadinhos dos turistas não lhes ligam nenhuma. Um exemplo é esta giesta branca que leva o nome de Spartocytisus supranubius, mas não parece, à primeira vista, ser assim tão diferente do nosso Cytisus multiflorus, que floresce em Abril (ou ainda mais cedo) em grande parte do interior norte e centro de Portugal. No Teide, tal como em Portugal, a giesta branca, cobrindo grandes extensões de terreno, funciona como neve primaveril para quem junta a imaginação à miopia, isto em territórios onde a neve propriamente dita é rara mesmo no Inverno.

Spartocytisus supranubius (L. f.) Christ [= Cytisus supranubius (L. f.) Kuntze]


A arrumação da giesta tenerifenha num género próprio (Spartocytisus em vez de Cytisus) sugere que as diferenças entre ela e a giesta-branca continental são de alguma monta. Olhemo-la então de perto para tomar nota dos detalhes. Das folhas não tiramos qualquer conclusão: ambas as espécies as largam cedo, ainda antes de abrirem as flores. Contudo, pode notar-se que as hastes floríferas da retama-do-Teide (nome vernáculo do S. supranubius) são algo mais robustas do que as do Cytisus multiflorus, e que as flores, tendo pedúnculos nitidamente mais curtos, aparecem agrupadas em verticilos sucessivos em vez de se distribuírem espaçadamente pela haste acima. Se já houvesse frutos para inspeccionar, notaríamos que as vagens da retama-do-Teide são glabras, enquanto que as da nossa giesta branca são peludas. São diferenças bastantes para aceitarmos estar em presença de duas espécies diferentes, mas justificar-se-á arrumá-las em géneros distintos? O nome Spartocytisus sugere que estas plantas sejam intermédias entre as do género Cytisus e as do género Spartium — de que o representante mais conhecido é o Spartium junceum. Contudo, pelas folhas unifoliadas (em vez de trifoliadas), pelas hastes roliças (em vez de estriadas) e pelos frutos compridos e estreitos, o Spartium junceum está morfologicamente muito mais distante da retama-do-Teide do que estão as giestas do género Cytisus. E é essa a opinião que recentemente tem prevalecido, com a generalidade dos autores a defender que o género Spartocytisus (de que há nas Canárias uma segunda espécie endémica, S. filipes) deve ser assimilado ao género Cytisus.

A retama-do-Teide não é exclusiva de Tenerife — aparece também na ilha de La Palma, a altitudes igualmente elevadas (em geral acima dos 2000 metros) — e nem sempre dá flores de um branco imaculado (veja nesta página). Porém, o epíteto supranubius é certeiro: o mar de nuvens criado pelos ventos alísios costuma quedar-se na vertente norte do Teide, originando um clima mais fresco e uma paisagem mais verdejante na metade setentrional da ilha. As nuvens ficam estacionadas bastante abaixo da cota dos 2000 metros, com o resultado de que a chuva quase nunca cai nessas regiões mais elevadas. Só alguns raros nevões e geadas no Inverno contrariam a secura dominante. Assim, a vegetação dos cumes do Teide está verdadeiramente adaptada a condições inóspitas, em que a falta de humidade é agravada (como acontece nos desertos continentais) pelas grandes amplitudes térmicas. A semelhança superficial entre a retama-do-Teide e a nossa giesta-branca disfarça uma incompatibilidade profunda: não há provavelmente nenhum lugar no mundo onde elas possam viver juntas.

20/11/2022

Bencomia duas vezes

As espécies dióicas (em que as flores masculinas e femininas nascem em indivíduos distintos) parecem-nos mais bem adaptadas às exigências da Terra, talvez pelo carácter igualmente dióico da nossa espécie. Mas, nas plantas, essa separação dos géneros obriga-as a encontrar um meio eficaz de coordenar a floração (algo que é automático em flores hermafroditas) e a fabricar flores masculinas claramente distintas das femininas, não vá dar-se o azar de os polinizadores se enganarem e não iniciarem a sua tarefa na fonte de pólen. Por isso, entende-se que, em espécies dióicas cuja fecundação depende do apoio de insectos, as flores masculinas sejam frequentemente maiores ou mais vistosas, e até possam estar prontas a ser visitadas mais cedo do que as femininas. É o caso dos salgueiros, cujas flores masculinas asseguram, mal surge a Primavera, o fornecimento de pólen e néctar a inúmeros insectos recém-nascidos que, ávidos por proteínas, inicialmente as preferem às femininas. Pelo contrário, na Ginkgo biloba, espécie dióica que produz amentilhos cónicos e se serve do vento para espalhar o pólen, as flores dos dois géneros são inconspícuas e reduzidas ao essencial.

As espécies do género Bencomia, também dióicas, seguem outra estratégia. As flores dos dois tipos são diminutas, quase indistinguíveis, mas as masculinas nascem agrupadas numa longa espiga (pode chegar aos 40cm) amarelada, enquanto que as espigas femininas não ultrapassam os 12cm e têm uma tonalidade rosada. Bencomia é um género endémico das ilhas Canárias, havendo notícia de quatro espécies, todas arbustivas. A folhagem delas é perene e muito graciosa: as folhas são grandes, pinadas com folíolos ovados, de um tom verde escuro brilhante que contrasta com o tomento esbranquiçado na face inferior; além disso, têm margens uniformemente serradas e agrupam-se em (falsas) rosetas terminais, o que dá à planta o perfil de uma pequena árvore, com um tronco curto mas uma copa atraente.

Comecemos pela Bencomia exstipulata, conhecida como bencomia de cumbre, que ocorre em lugares de altitude elevada nas ilhas Tenerife e La Palma. É tardia a florir (entre Abril e Maio), mas é a mais bonita das que conhecemos. Vimos alguns exemplares em dois locais na montanha do Teide: nos Roques de Chaval, onde estavam protegidos por uma cerca dada a sua raridade, e em La Fortaleza. Podem analisar mais pormenores desta espécie nesta ligação.

Bencomia exstipulata Svent.




A Bencomia caudata (chamada bencomia de monte) é menos rara do que a espécie anterior e floresce entre Fevereiro e Junho. Ocorre nas ilhas centrais do arquipélago (Gran Canária, Tenerife, El Hierro e La Palma). As fotos são de exemplares dos barrancos de Badajoz e Añavingo, em Tenerife. Algumas floras dão-na como presente também na ilha da Madeira, no que constitui um excelente exemplo de uma falsa notícia transformada em verdade pela comunicação deficiente entre botânicos. A Flora of Madeira, de J. R. Press e M. J. Short, esclarece o engano: durante o século XIX, alguém avistou um exemplar masculino a norte do Funchal, plantado num jardim. No entusiasmo da descoberta, ninguém se lembrou que uma espécie dióica não pode ser um endemismo numa ilha se dela só aí existir um indivíduo masculino. Esta Bencomia gosta de ladeiras expostas ao sol, na laurissilva ou em pinhais, entre os 500 e os 1200 metros de altitude.

Bencomia caudata (Aiton) Webb & Berthel


A Bencomia brachystachya (dita bencomia de Tirajana) floresce em geral um mês mais tarde do que a espécie anterior, e só há registo dela na Gran Canaria. Ainda não a conhecemos, mas podem compará-la com a B. caudata e a B. exstipulata aqui.

O isolamento entre as ilhas Canárias criou uma outra espécie de bencomia, a Bencomia sphaerocarpa (bencomia herreña), cuja distribuição se restringe a El Hierro. Ainda não visitámos esta ilha, mas há boas fotos da planta neste portal.

12/11/2022

Perfume dos bosques



Outono nos bosques é tempo de cogumelos (que, por precaução, nunca colhemos), de castanhas (essas sim, apanhamo-las, ainda que os castanheiros assilvestrados produzam frutos de calibre reduzido), e de diversos cheiros rústicos que misturam humidade com matéria vegetal em decomposição. A imagem acima, de um faial (de Fagus sylvatica) algures na Cantábria, foi captada com as cores frescas da Primavera, e entretanto pelo mesmo bosque já passaram repetidamente as sucessivas estações do ano, cada uma com a sua combinação peculiar de cores e cheiros. Em Portugal também temos faiais, mas são tristes plantações florestais e não bosques espontâneos, e por isso lhes faltam quase todos os ingredientes que fazem o encanto dos faiais do norte de Espanha. Por exemplo, não temos cá nem o super-chícharo, nem a valeriana-gigante, nem esta madressilva, nem a hepática, nem, finalmente, o Galium bem cheiroso que é pretexto para a conversa de hoje.

Galium odoratum (L.) Scop.


O Galium odoratum é uma planta de climas temperados ou frios que vegeta em bosques mais ou menos sombrios — não apenas de faias, mas também de abetos ou de azevinhos — e se encontra distribuída por grande parte da Europa e da Ásia, rareando na região mediterrânica. Não por acaso, a sua distribuição na Península Ibérica sobrepôe-se em grande parte à da faia enquanto árvore espontânea: é frequente na Cordilheira Cantábrica e nos Pirenéus, e quase inexistente a sul dessas cadeias montanhosas. Adaptada à luz escassa, a planta optou por um tipo de crescimento mais ou menos rastejante, comum a várias espécies (como a hera) que vivem nas mesmas circunstâncias. Tenta assim maximizar a cobertura do solo e aproveitar, tanto quanto possível, as nesgas de luz que a folhagem das árvores vai deixando coar. Apesar de serem muitas as espécies de Galium na flora portuguesa, nenhuma tem essa vocação para tapete vegetal, e as que vivem em bosques tendem a refugiar-se em clareiras, sendo talvez o Galium rotundifolium a mais notória excepção a essa regra.

Se o epíteto que ostenta não for falsa promessa, alguma mais valia olfactiva há-de o Galium odoratum trazer aos bosques onde mora. As fontes consultadas confirmam que isso é verdade, mas ressalvam que talvez o perfume exalado pela planta não seja muito pronunciado quando as folhas estão ainda tenras. Será essa a razão para o não termos detectado? O perfume de cumarina (igual ao da Magydaris panacifolia, umbelífera frequente em Trás-os-Montes) é produzido por toda a planta, não especialmente pelas flores, e persiste quando a planta é cortada, acentuando-se à medida que ela seca. Não espanta que, muitas vezes, o seu destino seja transformar-se em pot-pourri. Praticado em grande escala, talvez esse aproveitamento fosse uma ameaça à sobrevivência da espécie, mas nem toda a gente está habilitada a reconhecê-la na natureza e, em todo o caso, há já quem a cultive para esse fim.

06/11/2022

Jocama



Hoje conversamos sobre flores. Como o leitor sabe, as plantas distinguem-se formalmente por duas coordenadas (género e espécie), como se fossem lugares numa sala de cinema ou endereços de casas numa rua. Nós conhecemos plantas de cerca de 400 géneros, o que parece muito mas é na realidade um conhecimento diminuto: só na Península Ibérica (na Sierra Nevada ou nos Pirenéus) há mais do dobro que nunca vimos. Esta classificação, inventada por Lineu, inspirou-se na morfologia das plantas, e presta atenção especial às flores quando elas existem. Contudo, actualmente, não basta listar diferenças na aparência (fonte de muitos deslizes na história da taxonomia), apelando-se à genética para distinções mais fundamentadas. Mas há alguns géneros em que a identificação só pelas flores nos deixa poucas dúvidas.

Um deles é o género Teucrium, de que há umas 15 espécies em Portugal continental (das mais de 80 na Península Ibérica), todas herbáceas e aromáticas, das quais duas são endemismos portugueses: o T. vicentinum e o T. salviastrum. Nos Açores, estranhamente, não há registo de nenhum Teucrium endémico. No arquipélago da Madeira, porém, há uma mão cheia de espécies endémicas de Teucrium, algumas arbustivas, todas com floração muito vistosa (fotos e demais informação aqui). São elas o T. betonicum, o T. heterophyllum subsp. heterophyllum, o T. abutiloides e o T. francoi. Número que bate, por uma vez, o de endemismos deste género nas ilhas Canárias. Em La Gomera, La Palma, Tenerife e Gran Canaria ocorre a subespécie T. heterophyllum subsp. brevipilosum; e o T. heterophyllum subsp. hierrense, mais hirsuto que o anterior, só ocorre em El Hierro.

Nunca encontrámos a subspécie madeirense de T. heterophyllum, mas ela distingue-se das subspécies canarienses sobretudo pelas folhas crenadas e moderadamente tomentosas. Vimos a subspécie brevipilosum a uns 600m de altitude nas proximidades de Chinamada, aldeia da região de Anaga, em Tenerife. A jocama, nome que provém da língua guanche, é um arbusto que pode chegar aos 2m de altura, com folhas e talos aveludados, quase brancos de tanta penugem. Mas é claro que foram as flores vermelhas, em contraste com a folhagem, que nos encantaram. Enfim, os Teucrium que conhecíamos têm flores amareladas, brancas, cor-de-rosa ou violeta, em tons suaves e discretos. Esta exuberância em que as ilhas são férteis é, dizem, consequência da adaptação ao habitat ou aos polinizadores. Mas não será simples resultado da boa vida que nelas se leva?

Teucrium heterophyllum subsp. brevipilosum Gaisberg


As flores dos Teucrium têm um lábio grande, além de dois abanicos um pouco acima, atrás de estames proeminentes. Note agora nas fotos acima que as flores do T. heterophyllum são bilabiadas: os tais abanicos fecharam-se e formam um pequeno tecto (um lábio bífido) que cobre os estames. Curiosamente, na Madeira esta configuração da flor repete-se no T. betonicum e no T. abutiloides, mas não no T. francoi (espécie próxima do T. scorodonia continental).

27/10/2022

Dupla atracção



Na nossa terceira visita a Tenerife, em Maio deste ano, aterrámos no aeroporto sul da ilha. Foi uma estreia, mas é para lá que voa a TAP e tínhamos uns vouchers pandémicos da companhia aérea nacional para gastar. Como de costume, reservámos hotel na capital, Santa Cruz, que fica no extremo oposto da ilha. Esperava-nos assim uma viagem de 60 km, com algumas pausas no meio, antes de podermos arrumar as malas. Era ao princípio da tarde, e parámos em Las Eras, pequeno povoado costeiro onde os lotes abandonados e as ruas por asfaltar testemunhavam ambições imobiliárias que deram para o torto. Não foi certamente a beleza do local que nos atraiu: o restaurante popular onde almoçámos peixe grelhado abria portas para uma rua poeirenta que nem a proximidade do mar redimia. Estranhamente, não retomámos a viagem logo após a refeição. Em vez disso, fizemos um percurso de quase duas horas nas falésias próximas, sacudidos por um vento bravio que ora se opunha determinadamente ao nosso avanço, ora se esforçava por nos atirar ao mar mudando traiçoeiramente de direcção. Afinal não fora por inépcia do piloto que o avião tanto dançara na aproximação à pista.

Que fazíamos ali nessa tarde ventosa e desagradável, se podíamos estar já (imitando os hábitos de repouso do povo que vínhamos visitar) tirando uma siesta no aconchego do hotel? Observávamos plantas, como é nossa sina, mesmo que o vento furioso tornasse problemático captá-las em fotos. Aquele ponto da costa leste de Tenerife ficava-nos mesmo no caminho, e para os dias seguintes tínhamos outros passeios programados. Além de que já tínhamos aprendido nas visitas anteriores que não há lugar nesta ilha (mesmo numa costa tão castigada pelo turismo e pelo mau urbanismo) que seja destituído de interesse botânico.

Atractylis preauxiana Sch. Bip.


A persistência foi recompensada quando, debruçando-nos na falésia, vimos este arbusto de porte compacto, agachado para melhor se proteger do vento. Por que escolhem certas plantas viver à beira mar se depois são obrigadas a tantas cautelas? Não podem erguer um ramo que vem logo o vento vergá-lo. E assim ficam, rentes ao chão, talvez porque a proximidade do mar e os salpicos de água salgada sejam brindes irrecusáveis. As folhas suculentas e acetinadas, assim como a forma atarracada, reflectem a adaptação desta planta ao ambiente agreste. Os capítulos florais brancos cravados na almofada folharuda são de uma beleza discreta, e as brácteas involucrais formam um mosaico bicolor, verde-glauco e castanho-púrpura. O efeito é digno do mais requintado jardim, mas esta Atractylis preauxiana só sabe viver junto ao mar e com o embalo do vento. E tem que ser em Tenerife, no solo duro incrustado nas falésias de certos pontos da costa oriental da ilha, ou em lugares semelhantes na vizinha Grã-Canária: endémica do arquipélago canarino, a planta só existe nestas duas ilhas, e é muito rara em qualquer delas.

São duas as espécies de Atractylis endémicas do arquipélago, ambas confinadas a habitats costeiros. A segunda, restrita às ilhas de Lanzarote e Grã-Canária, é a Atractylis arbuscula, que é mais avantajada do que a A. preauxiana (50 cm de altura contra 10 ou 20 cm) e não apresenta a mesma forma almofadada, distinguindo-se também pelos capítulos mais estreitos.

Atractylis cancellata L.


Por completude, convidámos também a Atractylis cancellata a vir aqui mostrar-se. É a terceira espécie do género no arquipélago, e fotografámo-la também em Tenerife, mas anda longe de ser endémica dessas ilhas: existe em Portugal continental e em quase toda a bacia mediterrânica. É um pequeno cardo anual de hábito rastejante, sem qualquer semelhança com as suas primas das Canárias. Sem desdenhar da beleza que lhe advém sobretudo do porte miniatural, perde claramente em confronto com as outras duas. Mas não é nada rara na sua ampla área de distribuição — e, no que toca a assegurar a sua própria sobrevivência (bitola pela qual é razoável medir o sucesso de um organismo vivo), é óbvio que leva grande vantagem.

20/10/2022

Tomateiro arbóreo

Solanum betaceum Cav. [= Cyphomandra betacea (Cav.) Sendtn.]


Era uma vez uma ilha onde se perdia o tempo. Os habitantes começavam todos por chegar de alguma parte. Instalavam-se, casa, horta, pomar. Mas aos poucos iam perdendo os dias da semana, uma quarta-feira, uma sexta-feira, algumas tardes, muitas noites frias. A horta crescia e decrescia mas de parte nenhuma para parte nenhuma e a certa extraordinária altura quando alguém comia por exemplo uma salada de tomate perguntava já o que é isto.

Ana Hatherly, 463 tisanas, Quimera Editores, 2006