Marsilea hirsuta R. Br. [=
Marsilea azorica Launert & Paiva]
Quanto mais alto se sobe, maior é a queda: eis um dito que se aplica a usurpadores ou vigaristas apeados no auge da carreira, mas que parece inapropriado quando se fala de plantas ou de bichos. No entanto, plantas e bichos também podem cair em desgraça. Na Austrália, coelhos e gatos, que tanta gente acarinha como animais de estimação, são alvo de impiedosas campanhas de extermínio por se terem reproduzido descontroladamente em ambientes naturais. E, aqui ou na Austrália ou em muitas outras paragens, são inúmeras as plantas introduzidas como ornamentais que se transformaram em pragas de impossível erradicação. Com a consciência gradual dos estragos que as espécies exóticas, animais ou vegetais, podem causar, a nossa escala de valores alterou-se: a «beleza» das mimosas (
Acacia dealbata) não nos deve impedir de reconhecê-las como árvores daninhas e indesejáveis no nosso país.
Nada disto nos preparou para a revelação de que a
Marsilea azorica, um raríssimo endemismo açoriano de que se conhecia uma única população em todo o arquipélago (na Terceira), é afinal uma planta exótica e potencialmente invasora. De seu verdadeiro nome
Marsilea hirsuta, é originária da Austrália e terá chegado à Terceira por via dos EUA, onde, no estado da Florida, se tem vindo a comportar como colonizadora agressiva de ecossistemas aquáticos. Foram os botânicos Hanno Schaefer, Mark A. Carine e Fred J. Rumsey, em artigo científico acabado de publicar (disponível
aqui), que desmascararam a pretensa
Marsilea «azorica».
É verdade que a singularidade da distribuição deste feto, encontrado nos Açores pela primeira vez em 1971 e descrito como uma nova espécie, endémica do arquipélago, em 1983, tinha já suscitado a estranheza de alguns botânicos. Vale a pena reproduzir o comentário que Carlos Aguiar
aqui deixou em Dezembro de 2010:
A distribuição desta planta nos Açores é surpreendente: uma lagoa na berma de uma estrada movimentada, na ilha Terceira. Não me surpreenderia que um dia alguém descobrisse que se trata de um neófito de origem neotropical.
Apesar das dúvidas em surdina, a
Marsilea «azorica» sempre recebeu as maiores honrarias. Foi incluída na lista vermelha da
IUCN com o estatuto de
espécie em perigo crítico; e, no livro
Flora Vascular dos Açores — Prioridades em Conservação, de Luís Silva
et al. (edição Amigos dos Açores, 2009), aparece em primeiro lugar entre 90 espécies, como aquela cuja conservação é mais prioritária.
Tudo galardões de que a australiana
Marsilea hirsuta não tardará a ser despojada. Contudo, ficam ainda muitos genuínos endemismos açorianos de que importa cuidar. O mais ameaçado é talvez o
Myosotis azorica, em vias de extinção nas Flores (o Corvo é a única outra ilha onde ele ocorre) por causa dos rebanhos de cabras devoradoras que os serviços da Secretaria Regional do Ambiente se recusam a controlar.
Deparia petersenii (Kunze) M. Kato [=
Diplazium allorgei Tardieu]
Vem a propósito deslindar uma história algo semelhante envolvendo outro feto colectado nos Açores. Em Dezembro de 1938, foi publicado, na revista
Notulae Systematicae (vol. VII, fasc. 3), um artigo de Tardieu-Blot com o título «
Sur un Diplazium des Açores» [clique no título para ler o artigo], descrevendo uma nova espécie a que a autora chamou
Diplazium allorgei. A confusão, de acordo com Schaefer e seus co-autores, só seria desfeita quatro décadas mais tarde (em 1975 ou 1977), quando W. A. Sledge revelou, na
Fern Gazette, que o hipotético endemismo açoriano era indistinguível da asiática
Deparia petersenii.
A história, contudo, não se passou exactamente assim. Nada indica que alguma vez alguém tenha considerado esse feto como endémico dos Açores. A própria Tardieu-Blot considerava-o como possivelmente introduzido, embora não soubesse de onde ele teria vindo. Mais: Tardieu-Blot reconhecia que o seu feto e o
Diplazium petersenii (nome que então se dava à
Deparia petersenii) eram muito semelhantes, mas entendia haver diferenças suficientes para definir uma nova espécie.
Em 1943, Rui Teles Palhinha (1871-1957) publica, no
Boletim da Sociedade Broteriana (vol. 17), uma lista dos «
Pteridófitos do arquipélago dos Açores» [clique no título]. Entre os fetos por ele considerados como «subespontâneos ou fugidos de cultura» encontra-se o
Diplazium petersenii, «da China, Índia e Java»; não há menção ao
Diplazium allorgei. No seu livro póstumo
Catálogo das plantas vasculares dos Açores, de 1966, Palhinha parece ter mudado de opinião: faz desaparecer o
Diplazium petersenii para o substituir pelo
Diplazium allorgei, deixando porém a hipótese de este ser de origem asiática ou sul-americana.
Acontece que, de facto, Palhinha não mudou de opinião. As páginas sobre pteridófitos no livro póstumo não foram escritas por ele mas sim pelo editor A. R. Pinto da Silva, o qual, conforme esclarece o prefácio, se baseou no artigo de 1943 de Palhinha e num outro de 1961 de Pierre Dansereau. Havendo, como há neste caso, discrepâncias entre o livro póstumo e o artigo de 1943, a opinião de Palhinha é a que está no artigo e não a do livro. É pois plausível afirmar que W. A. Sledge, em 1975 ou 1977, não revelou nada que em 1943 Palhinha não soubesse já.
Como nota final, assinale-se que João do Amaral Franco, no vol. 1 (de 1971) da
Nova Flora de Portugal, adopta o nome
Diplazium allorgei. Mas considera-o uma espécie introduzida de origem sul-americana — o que, embora não seja correcto, se explica pela circunstância de o feto estar igualmente naturalizado no Brasil.
Em conclusão: o
Diplazium allorgei nunca foi seriamente considerado como um endemismo açoriano, e desde sempre foi conhecida a possível sinonímia entre
Diplazium allorgei e
Diplazium petersenii (=
Deparia petersenii). Afinal a história nem sempre se repete.