30/03/2022

Joina da Zarza

O Pico de la Zarza, no Parque Natural de Jandía, é o mais alto em Fuerteventura, com cerca de 800 metros de altitude máxima. A lista de endemismos conhecidos que habitam o topo deste monte é notável, e por isso preparámo-nos para uma visita de um dia inteiro. Estávamos esperançados de lá encontrar humidade e ar fesco que bastassem a um prado verdejante com muitas plantas em flor. Um longo estradão, ondulante e pedregoso, conduz-nos desde Morro Jable até à crista. O olhar vai-se cansando na subida, sob um céu quente e sem nuvens, com a nossa atenção dividida entre as pedras escorregadias do caminho, a vegetação rasteira (composta predominantemente por Launaea arborescens e, mais acima, por uma eufórbia arbustiva e pelo endémico Asteriscus sericeus), a paisagem árida mas reminiscente de antigos rios, e o nível de água nos nossos cantis.



Como o percurso é famoso, somos acompanhados por inúmeros outros visitantes de boné, pingando suor, animados e muito faladores no início da caminhada, calados e poeirentos quando atingem a meia encosta, desunidos e surpreendentemente lestos na descida de regresso aos hotéis. Ultrapassam-nos na subida e cruzam-se novamente connosco ao retornarem porque o nosso passo é mais lento, atentos que vamos às plantas que vão surgindo. Subidos os últimos metros por uns degraus improvisados, estamos finalmente no cimo do pico. Uns tantos corvos pedinchões conversam com turistas, como se fossem papagaios, recebendo contentes restos de almoço. Mas não há nenhum prado, nem se vêem flores; só o mar ao longe e uma praia fabulosa na base do despenhadeiro.



A crista tem uma rede de protecção a que todos se agarram para espreitar melhor o precipício. Sem poder avançar mais, resta-nos tentar detectar nas paredes o perfil das plantas que vínhamos conhecer. E na vertente mais próxima estão afinal umas flores rosadas a espreitar para o lado de cá enquanto nós espreitamos para o lado de lá: são exemplares de um endemismo raro de Fuerteventura.

Ononis christii Bolle


O género Ononis conta nas Canárias com pelo menos 16 espécies, um quarto das quais só ocorrem nestas ilhas. Da O. christii, de flores axilares com estandarte listado de rosa e quilha branca, são conhecidas outras populações no Pico del Mocán, no Morro Cavadero e no Pico del Viento — elevações modestas na Península de Jandía. As plantas desta espécie têm um hábito decumbente, folhas redondas cobertas por uma penugem esbranquiçada e margens serradas. Segundo a magnífica flora ilustrada de T. Muer, H. Sauerbier e F. Cabrera Calixto, a O. christii floresce entre Março e Junho. As flores das fotos, de Dezembro, foram portanto um presente do Pico de la Zarza, em jeito de prémio pelo esforço da subida.

22/03/2022

Erva-pulgueira (com ou sem lã)



Como símbolo de resistência e de esperança, uma flor no deserto é mais eficaz se o encontro com ela for inesperado. Para quem estiver armado de experiência e conhecimento, e souber que o fenómeno nada tem de raro, a flor mais ou menos solitária não funciona como revelação, mas apenas como confirmação apaziguadora de que, no nosso planeta, a vida é a regra e nunca a excepção. A península de Jandía, no extremo sul de Fuerteventura, nunca há-de ter as suas planuras arenosas convertidas em prados floridos: a chuva aqui é desconhecida; e, mesmo que ela caísse, só uma cobertura vegetal rala poderia medrar neste terreno esquelético. Essa vegetação esparsa e rasteira já existe; e, entre as plantas que se adaptaram a condições tão agrestes, são especialmente vistosas estas asteráceas rasteiras com grandes capítulos dourados.

Pulicaria canariensis Bolle subsp. canariensis


O nome científico Pulicaria pode traduzir-se como erva-das-pulgas, o que sugere uma função (a de repelir esses desagradáveis insectos) que nem todas as espécies do género estão equipadas para cumprir. À Pulicaria canariensis, que é endémica das ilhas de Fuerteventura e de Lanzarote, basta-lhe ser bonita; ninguém pede que justifique a existência trabalhando em nosso proveito. É uma planta atarracada, que forma pequenas moitas, com hastes de 10 a 20 cm de altura rematadas por capítulos amarelos de 3 a 5 cm de diâmetro. As folhas são curtas, espatuladas, e toda a planta é coberta por uma penugem mais ou menos espessa. É aliás pelo grau de pilosidade que se diferenciam as duas subespécies que lhe são reconhecidas: a subespécie nominal (fotos em cima, tiradas em Fuerteventura), que ocorre em Fuerteventura e em Lanzarote, é menos tomentosa, e a planta é de cor verde; a subespécie lanata, que só existe em Lanzarote (onde as fotos em baixo foram obtidas), tem um indumento lanoso muito mais desenvolvido, o que dá à planta um tom esbranquiçado.

Pulicaria canariensis subsp. lanata (Font Quer & Svent.) Bramwell & G. Kunkel


Ver plantas tão agasalhadas em lugares tão quentes pode suscitar estranheza. Afinal, quando o calor é muito estamos habituar a despir agasalhos e a reduzir as vestes ao mínimo que a decência impõe. Mas os povos que vivem no deserto, em lugar de usarem trajes sumários, cobrem-se de mantas e capas que lhes tapam o corpo da cabeça aos pés. É a mesma sageza que leva plantas de deserto como esta Pulicaria a protegerem-se revestindo-se com uma espessa penugem: ao minimizarem as perdas de água por transpiração, estão mais aptas a sobreviver à secura impenitente. Mas que água? A que a penugem capta de nevoeiros e orvalhos, e que é depois conduzida sem desperdício às raízes pela folhagem em roseta.

16/03/2022

Cardón de Jandía

A ilha de Fuerteventura é a mais antiga do arquipélago das Canárias, com cerca de 22 milhões de anos. A idade destas ilhas diminui de este para oeste, tendo El Hierro apenas 1.2 milhões de anos. Por isso, talvez não seja ousado imaginar que Fuerteventura nos mostra o futuro das outras ilhas das Canárias. Fuerteventura também já foi verdejante, e teve picos altos e frescos, mas a chuva que agora por vezes ali cai flui sem uso para o oceano por não haver vegetação que a retenha. A erosão ao longo de milhões de anos aplanou a ilha, enquanto criava extensas dunas e praias de areia fininha, e arruinou a floresta de montanha, os rios e o solo fértil de outrora. Restam em Fuerteventura sobretudo plantas de porte baixo, resistentes ao calor e à secura; e vastas regiões áridas, habitadas por uma ou duas espécies de falsos cactos.

O primeiro exemplar que vimos de Euphorbia handiensis, endemismo da Península de Jandía, estava guardado por uma cabrinha. Mal afastámos o olhar, prosseguiu com o paciente mordiscar da base da planta. Julgámos, portanto, o caso mal parado. Mas não: logo depois surgiu uma montanha cheia de pés desta eufórbia, vigorosos e sem dentadas. Era Dezembro e não estavam em flor; fosse outro o mês, e o cenário seria o de um jardim, ainda que concebido por alguém que só gosta de uma planta.



Com essa idade e esse percurso geológico, não nos surpreende que haja vários endemismos exclusivos na flora de Fuerteventura. E que, por isso, quase todo o interior da ilha, feito de paisagens vulcânicas em tons avermelhados e cinzentos, seja área protegida. Estudos conduzidos recentemente mostram que nas ilhas Canárias (como aliás também nas açorianas) há uma percentagem elevada de endemismos, descendentes de plantas herbáceas do continente, que nas ilhas se tornaram espécies lenhosas. Afirma essa investigação ser garantido que o carácter lenhoso de pelo menos 220 espécies endémicas das Canárias se desenvolveu nas ilhas, após a colonização de locais muito secos, ventosos e com pouca água. E que as eufórbias, em particular as de Fuerteventura, são dos exemplos mais eloquentes deste processo de adaptação.

Euphorbia handiensis Burchard


Em Portugal, as eufórbias são herbáceas frágeis, várias delas dependentes da água nas margens de riachos. As excepções honrosas são a Euphorbia pedroi, com distribuição restrita às arribas marítimas do Cabo Espichel, as açorianas Euphorbia stygiana e Euphorbia santamariae, e as madeirenses Euphorbia piscatoria e Euphorbia mellifera. Nas ilhas Canárias, porém, são muitas as espécies arbustivas do género Euphorbia, e outras cuja morfologia lembra a dos cactos, reminiscentes de plantas do norte de África.

08/03/2022

Balancé das areias

Traganum moquinii Webb ex Moq.


Fuerteventura, a mais árida e mais africana das ilhas Canárias, parece ter sido concebida para estes tempos em que, para a maior parte da população ocidental, férias e lazer são sinónimos de praia. Até terá sido algo sobredimensionada, pois a ilha tem 100 km de uma ponta a outra e a costa é quase um areal ininterrupto. Nem no pico do Verão será preciso procurar muito para encontrar uma praia longe das multidões. Em alguns pontos as dunas penetram vários quilómetros pelo interior da ilha, mas talvez uma praia de onde o mar não se aviste seja insatisfatória mesmo para os veraneantes que só queiram tomar banhos de sol. Já não é praia, mas sim deserto — uma miniatura do Sara onde a solidão, em vez de convidar ao apaziguamento, nos enche de inquietude.

A vegetação das dunas, em Fuerteventura, não é uniforme, dependendo do grau de proximidade do mar e da maior ou menor consolidação do substrato arenoso. Há plantas que gostam de ser regularmente salpicadas pelas ondas e banhadas pelas marés (por exemplo, a Suaeda vera), outras que se mantêm distantes da linha de costa mas preferem as dunas fixas (como a Salsola vermiculata), e finalmente aquelas que vivem em dunas instáveis — às quais, na nossa latitude, chamaríamos dunas primárias, mas que em Fuerteventura podem estar a uma distância considerável do mar. Um exemplo desta última classe é o Traganum moquinii, que nas Canárias é conhecido como balancón, quem sabe se por viver sobre chão tão oscilante. Por sinal, as três plantas arbustivas que demos como exemplo pertencem todas à família Amaranthaceae (e integravam antes a família Chenopodiaceae), que é largamente dominante entre as comunidades vegetais de baixa altitude em Fuerteventura. As duas primeiras, porém, ocorrem também na Europa (e, em particular, em Portugal, sobretudo na metade sul), enquanto que o Traganum moquinii apenas está presente nas Canárias, em Cabo Verde e no litoral de Marrocos.

Arbusto rasteiro e muito ramificado, embora capaz, com a idade, de atingir 2 ou 3 metros de altura, o Traganum moquinii tem uma silhueta muito reconhecível quando se avista ao longe na crista das dunas. Mais ao perto, distingue-se pelas folhas suculentas, curtas, com ápice arredondado, dispostas em fascículos densos, e pelas flores diminutas, de cinco pétalas amarelas, que surgem aninhadas nas axilas das folhas.

03/03/2022

Cebolona albarrã



Esta é a imagem que retemos da chegada ao Barranco de Las Peñitas, em Fuerteventura. Por aqui já correu um rio, o Palmas, num desfiladeiro fundo ladeado por impressionantes taludes rochosos. Do rio e das suas águas pouco resta, para além do gigantesco paredão da albufeira que o aprisionava para que ele não fugisse para o mar sem antes ter alguma serventia. A impressão à entrada é, portanto, desoladora: um calor intenso no ar seco e sem brisa, nenhuma esperança de sombra, e um silêncio da passarada que nos avisa que o lugar é inóspito e que, se insistirmos em prosseguir a caminhada, o problema é nosso.

E lá fomos. Uns minutos depois cruzámo-nos com meia dúzia de pessoas, cansadas, suadas, de semblante carregado, rostos castanhos de poeira, sem sinal de regozijo. Mau sinal, pensámos. Dois passos adiante, porém, encontrámos as primeiras plantas que vínhamos ver, da espécie Volutaria bollei, endémica de Lanzarote e Fuerteventura. É certo que só havia plantas mirradinhas, mas ficámos contentes por saber que será possível noutra altura (entre Janeiro e Maio) vermo-las ali formosas e fresquinhas.

Animados, avançámos em direcção a um núcleo de palmeiras (Phoenix canariensis, muito vulgares em jardins portugueses), parte do que terá sido outrora um oásis de verdura. Apesar da sombra escassa, nos rochedos das margens notavam-se pequenas cavidades onde a temperatura era bastante mais amena. Encavalitados como cabritos, espreitámos. Começámos por ver inúmeros tufos de Cosentinea vellea, um feto de frondes peludinhas que aprecia fissuras de rochas em locais secos e soalheiros, e que suporta a desidratação por períodos prolongados. Isto está a correr bem, dissemos. Mais adiante, aconchegados à sombra de uma espécie muito comum nas Canárias, Launaea arborescens, havia também muitos pés de Caralluma burchardii, um endemismo canariense raro, da lista de espécies em perigo. Antes de descermos cautelosamente a encosta rochosa reparámos numa forma tubular roxa ondulante, escondida num desvão escorregadio e de difícil acesso — mas perfeitamente alcançável pelo fotógrafo destemido que ilustra este blogue.

Scilla latifolia Willd. [= Autonoe latifolia (Willd.) Speta]


Esta Scilla robusta, com inflorescências densas que lembram caudas de raposa, é nativa de Marrocos e das ilhas Canárias. Floresce no Outono, por isso foi uma sorte vê-la florida em Dezembro. Fortuna que parece ter bafejado apenas a nós, naquele dia de tantos visitantes ao Barranco de Las Peñitas.

21/02/2022

Cenoura à beira-rio


Myrrhoides nodosa (L.) Cannon


Eis uma umbelífera de ampla distribuição europeia e mediterrânica que, à partida, pouco tem para se fazer notada. Em Portugal, estando no limite da sua área de distribuição, é uma planta pouco vista, praticamente restrita ao quadrante nordeste do país. De seu nome Myrrhoides nodosa, vive em lugares sombrios, algo nitrificados, na proximidade de cursos de água, e não chama a atenção nem pelo porte (entre 30 e 100 cm de altura), nem pela floração (as umbelas são modestas, com dois a quatro raios, cada um deles sustentando meia dúzia de pequenas flores brancas), nem pela folhagem (semelhante à de muitas outras umbelíferas, em especial à do cerefolho). Contudo, quem olhar os detalhes não terá dificuldade em identificá-la se atentar nos pêlos brancos, longos e rígidos que revestem hastes, bractéolos, pedúnculos e frutos. Outro pormenor inequívoco é o inchaço do caule abaixo de cada nó, como se vê nesta foto.

Por preguiça ou conveniência, associámos a planta, no título deste escrito, à umbelífera de flor branca mais comum no nosso país: a cenoura-brava (Daucus carota). Não consta, contudo, que a Myrrhoides nodosa tenha usos culinários ou seja sequer comestível. Talvez decifrando-lhe o nome a consigamos inscrever numa linhagem prestigiada: Myrrhoides significa presumivelmente "semelhante à mirra". Referir-se-á à mirra que trouxeram os reis magos do Oriente? Não, é antes à Myrrhis odorata, uma umbelífera também de flores brancas, por certo olorosa, que não é espontânea em Portugal e que, na Península Ibérica, está restrita aos Pirenéus e à Cordilheira Cantábrica. A verdadeira mirra é extraída de uma pequena árvore, Commiphora myrrha, nativa de África e da Península Arábica — e com a qual, obviamente, a nossa Myrrhoides não tem qualquer afinidade. E mesmo esta associação espúria está em risco, pois há quem defenda a revogação do género Myrrhoides, ficando a nossa umbelífera a chamar-se Chaerophyllum nodosum.

15/02/2022

Madama de risco



Juraríamos que o deserto, seco, muito quente e sem uma brisa, é um ambiente hostil para qualquer planta ou bicho. Até aprendermos que há inúmeras espécies muito bem adaptadas a esse tipo de habitat, e que até nem querem outro. O nosso olhar, habituado a outro clima e a outras plantas, imagina as do deserto angustiadas de calor e sede, à beira da morte por desidratação. Coitadinhas, dizemos, de folhas com um tom verde baço a denunciar a fraqueza, inchadas e cheias de espinhos. E mal se aguentam, as infelizes, empoleiradas perigosamente nos penhascos.

Mas estamos enganados. O carácter suculento das folhas, aliado a raízes longas e bem espalhadas, mas pouco profundas, é um estratagema muito eficiente de captação e reserva de água, das breves chuvas ou da humidade nocturna, absorvida rapidamente antes que o solo seque sob o calor intenso. Naturalmente, o armazenamento de água nas folhas requer protecção dessas reservas, e um renque de espinhos bem colocado inibe qualquer animal sequioso; e, claro, viver numa escarpa de difícil acesso garante que se é menos incomodado. Finalmente, o verde acinzentado das folhas não é palidez de morte, mas uma boa opção para manter as plantas frescas, porque essa cor clara reflecte melhor o calor da luz.

Em épocas de menor humidade, as plantas destes habitats áridos largam a maioria das folhas, no que poupam água, ou adoptam um regime anual, apostando na produção rápida de sementes em vez de mais anos de vida. Outras há, porém, que se mantêm perenes e tolerantes à secura, mas estas têm folhas finas, organizadas em rosetas para gerirem bem a sombra, e cobertas por uma substância resinosa (mas translúcida, para não impedir a fotosíntese) que as protege de infecções e minimiza a perda de água por evaporação. Algumas accionam ainda um sistema engenhoso de abertura e fecho dos poros que, não impedindo a entrada de dióxido de carbono durante a noite, reduz a perda de água por transpiração durante o dia.

Allagopappus canariensis (Willd.) Greuter


Esta asterácea, endemismo das Canárias, ilustra bem a descrição anterior. Ocorre em La Gomera, Gran Canaria e Tenerife. Como se tivessem sido um dia excelentes alunas no deserto, as plantas desta espécie mantêm-se rentes ao chão até que os dias se tornem mais frios e a humidade persista. Depois, com vagar, vão dispondo talo acima as rosetas de folhas resinosas e, no topo, durante a Primavera, corimbos planos e densos de capítulos amarelos sem lígulas. O género, também endémico das Canárias, abriga outra espécie (Allagopappus viscosissimus), de que só se conhecem registos na Gran Canaria, com folhas ainda mais finas e margens inteiras mas perfil idêntico.

06/02/2022

Erva raposeira

Reseda barrelieri Bertol. ex Müll. Arg.


Para quem vem do centro da Península em direcção ao norte, as montanhas calcárias de Palência anunciam, em modo suave, que estamos a chegar à Cordilheira Cantábrica, deixando para trás as estradas rectilíneas que cruzam planaltos infindáveis. A montanha palentina pode ser vista como um aperitivo modesto para quem vai em busca de paisagens de cortar o fôlego, e anseia por afastar-se de lugares muito marcados pela presença humana. Aqui, os rios correm pachorrentos por declives imperceptíveis, as povoações esparsas são entremeadas por extensos campos de cultivo geometricamente parcelados, e há zonas industriais e pedreiras activas nos arredores de pequenas cidades como Aguilar de Campoo. Mesmo assim, quem percorre as margens do rio Pisuerga em Villaescusa de las Torres, ou ascende aos afloramentos calcários sobranceiros à aldeia, se não encontra "natureza em estado puro" (esse mito romântico tão ao gosto de quem escreve para viajantes de sofá), pelo menos mergulha numa paisagem ordenada onde o que é espontâneo e genuíno na natureza ocupa lugar central.

À lista de preciosidades botânicas de Villaescusa de que já demos notícia (Saxifraga cuneata, Arenaria grandiflora, Telephium imperati, Lactuca perennis e Berberis vulgaris), juntamos agora uma reseda com preferência por substratos calcícolas ou margosos que tem a distinção de ser um endemismo ibérico e que, em espanhol, é conhecida como hopo de zorra (rabo-de-raposa). Com hastes erectas que podem chegar a um metro de altura e floração que se estende de Março a Julho, a Reseda barrelieri (o epíteto homageia Jacques Barrelier, botânico e padre dominicano francês do séc. XVII) apresenta fortes semelhanças com congéneres suas como a R. alba e a R. suffruticosa; da primeira distingue-se pelas flores sésseis (a R. alba tem pedicelos bem desenvolvidos), e da segunda por ter folhas basais menos recortados (as da R. suffruticosa são bipinatífidas). Tanto a R. barrelieri como a R. alba estão assinaladas como espontâneas em Portugal; e ambas, infelizmente, correm o risco de desaparecer do nosso país: a R. alba, que na Lista Vermelha da Flora de Portugal [LVF] foi considerada em "perigo crítico", só era conhecida das dunas de Tróia, e já não é vista desde 2015; a R. barrelieri, tanto quanto se sabe, ainda se vai aguentando na envolvente das antigas minas de Santo Adrião, em Vimioso, mas com um efectivo populacional de poucas dezenas (a LVF considerou-a "em perigo").

Santo Adrião é o maior afloramento calcário de Trás-os-Montes e dá abrigo a algumas plantas únicas. Com o fim das actividades extractivas em 2001, é hoje um espaço natural protegido incluído na Rede Natura 2000. Será isso suficiente para a Reseda barrelieri ter futuro? Em Portugal, e como a campanha do lítio tem eloquentemente mostrado, só interessa proteger a natureza enquanto valores (económicos) mais altos não se levantam.

01/02/2022

Alfavaca de Sicó

No âmbito da elaboração da Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal, ficámos a saber que o Astragalus glaux ocorre em tomilhais do maciço de Sicó, em substrato calcário margoso. As plantas desta espécie perene são herbáceas pequenas, penugentas, ramificadas na base e de hábito rasteiro, por vezes com talos delgados quase lenhosos. É relativamente frequente em Espanha e na região mediterrânica, especialmente em zonas montanhosas, mas por cá os registos da sua presença são raros, restritos a alguns núcleos na Beira Litoral, Alentejo e Estremadura.

- Espera. Disseste solo margoso?...

Sim. Esta alfavaca floresce entre Março e Maio, e as inflorescências são racimos arredondados e erectos. As flores são rosadas, com estandartes estreitos mas longos, a apontar para cima, muito bem arrumadas em torno de um centro onde a floração é mais tardia.

- Solo margoso é o que não falta nas faldas da serra de Janeanes, onde vimos o Andropogon distachyos. Poderíamos ir lá em Maio, num dia em que não chova para não nos enterrarmos na argila.



E fomos. A população de Astragalus glaux que encontrámos, não exactamente em Janeanes mas mais a sul, já no concelho de Ansião, de apenas vinte plantas, tinha inúmeras flores e alguns frutos: aglomerados globosos que parecem obtidos das inflorescências por substituição de cada flor por um fruto ovóide, peludo e com um bico.

Astragalus glaux L.


Há na natureza, e entre as plantas em particular, muitas instâncias de sincronização, de que os milhares de pirilampos a piscar em sintonia são talvez o exemplo mais famoso. Os renques de jacarandás completamente floridos de roxo parecem sugerir que há um relógio que todas as plantas da mesma espécie consultam, e a que todas as flores de uma mesma planta obedecem escrupulosamente. Mas entre as herbáceas de pequeno porte a opção de gastar todas as flores em poucos dias talvez seja demasiado arriscada. O Astragalus glaux mantém flores e frutos (nada vistosos, aliás) em simultâneo, garantindo desse modo que a atenção dos insectos não enfraquece enquanto há pólen ou sementes para disseminar.