Lysimachia azorica Hornem. ex Hook. [= Lysimachia nemorum subsp. azorica (Hornem. ex Hook.) Palhinha]
Após um intervalo de quatro semanas, regressamos à ilha das Flores e à flora açoriana para fazer dois aditamentos. Neste primeiro mostramos uma das plantas mais comuns em lugares húmidos - o que nas Flores abrange quase a ilha inteira. Aí, de facto, a
Lysimachia azorica só está ausente dos pontos mais baixos do litoral. À medida que subimos pela estrada em direcção às caldeiras, o amarelo das suas flores vai-se tornando mais frequente nos taludes; até que, nas turfeiras que se sucedem às pastagens, não há metro quadrado de terreno que ela desaproveite. A única outra planta nativa que com ela rivaliza em abundância é o feto-pente (
Blechnum spicant). E a
Lysimachia azorica não é apenas nativa: é uma planta endémica açoriana; existe em todas as ilhas do arquipélago, mas não existe em nenhum outro lugar do mundo.
Ou será que existe? A
Lysimachia azorica é sósia quase perfeita da
Lysimachia nemorum, uma espécie europeia que se distribui do norte da Península Ibérica até à Grã-Bretanha e à Escandinávia, e daí desce até à Itália. Já que a espécie açoriana nem sequer ganhou nome vernáculo, inspiramo-nos naquele que os britânicos dão à sua irmã gémea (
yellow pimpernel) para lhe chamar
morrião-dourado. A semelhança entre as duas suscita uma pergunta inquietante: não se dará o caso de serem uma e a mesma espécie?
A pergunta não tem deixado de apoquentar os botânicos desde que, em 1817, Jens Wilken Hornemann (1770–1841), director do Jardim Botânico de Copenhaga, cultivou a planta a partir de sementes trazidas dos Açores por um oficial da marinha dinamarquesa. O próprio Hornemann começou por considerar que se tratava da
Lysimachia nemorum, mas mudou de opinião e baptizou-a como
Lysimachia azorica. No entanto, Moritz August Seubert (1818–1878), na sua
Flora Azorica (1844), volta a chamar-lhe
Lysimachia nemorum. Em meados do século XX a contenda não estava ainda decidida. Rui Teles Palhinha (1871-1957), estudioso da flora açoriana e autor de um
Catálogo das plantas vasculares dos Açores (publicado postumamente em 1966), dedicou-lhe um artigo (
Acerca de uma Lysimachia açorense) que apareceu em 1956 no Boletim da Sociedade Broteriana. Conta Palhinha que ele próprio teve uma opinião oscilante sobre o assunto, mas que, depois de observar ao vivo tanto as plantas continentais como as insulares, concluiu que as dois taxónes
não configuravam espécies separadas. Entendeu, ainda assim, que as plantas açorianas eram diferentes (caules não tão prostrados; folhas obtusas e de margens recurvadas; flores maiores e de pétalas mais estreitas), e por isso se justificava autonomizá-las numa subespécie. Estava salvo um endemismo açoriano, embora despromovido para uma divisão secundária.
O próprio Palhinha, consciente de que a taxonomia botânica não é uma ciência exacta, parecia adivinhar que a história não terminava aí. Escreveu ele a dado passo:
A observação de uma planta é objectiva, mas a sua posição sistemática é totalmente subjectiva. Baseia-se esta, sem dúvida, nos caracteres observados, mas a apreciação desses caracteres e, o que é mais, o seu valor, dependem apenas do critério do estudioso.
O critério do João do Amaral Franco, no vol. II da
Nova Flora de Portugal (1983), foi diferente do de Palhinha: segundo ele, o morrião-dourado açoriano não é claramente distinguível da sua versão continental. Estava o enterro consumado: o que existe nos Açores, na opinião de Franco, é a
Lysimachia nemorum sem mais, e não uma subespécie.
Numa reviravolta inesperada, não é a opinião de Franco, o patriarca da botânica portuguesa, que hoje em dia prevalece. Nem sequer a de Palhinha. A
Lysimachia azorica ressuscitou, já não subordinada à
L. nemorum, e surge em todas as listas recentes de endemismos açorianos. Que se terá passado? Alguém com olho mais apurado e prestígio ainda mais firme viu mais e melhor do que Palhinha e Franco? O que aconteceu foi que a taxonomia botânica evoluiu, e não depende tanto, como na época de Palhinha, do critério subjectivo de um estudioso. A evolução é tecnológica: são os estudos genéticos que servem agora para tirar a prova dos nove. Os botânicos alemães Günther Rudolf Heubl e Robert M. Vogt publicaram na revista
Mitteilungen der Botanischen Staatssammlung München, em 1988, um artigo (com um título difícil de ler em voz alta:
Zyto- und chemotaxonomische Studien an Lysimachia nemorum
L. und Lysimachia azorica
Hornem. ex Hooker) que parece ter encerrado de vez a discussão. Dizemos
parece porque não vimos o artigo: os textos publicados em revistas científicas só estão, em geral, disponíveis ao público que os paga assinando-as. Alguém nos pode ajudar?
Adenda. O artigo de Heubl & Vogt sobre a Lysimachia (o qual, de facto, revalida definitivamente a L. azorica como espécie autónoma, distinta da L. nemorum) pode ser lido aqui (PDF) - muito obrigado a Ricardo Lima pela ajuda.