30/11/2010

Baleio

Levantámo-nos cedo, num rebuço de infância, ainda as estradas não estavam postas. Íamos ver orquídeas de Verão junto à Lagoa da Vela, em Quiaios, mas o atraso dos acompanhantes do passeio permitiu que vagássemos antes pelo pinhal. Ali a areia é fina, pronta a saltar para a bainha das calças ao menor gesto do pé, e o ar cheira a lavado. Em passadas curtas, com o embalo silencioso das caminhadas na neve, percorremos algumas dunas, de olhos ensonados no chão. O manto de estrelinhas amarelas pareceu-nos àquela hora um pouco baixo, mas não desconfiámos, afinal nas madrugadas acontecem coisas estranhas porque ninguém está acordado para as ver.

Odontitella virgata ( Link ) Rothm. — Mata Nacional das Dunas de Quiaios


Mas, ao contrário dos bafejados com encontros do terceiro grau, que raramente têm à mão uma oportuna máquina fotográfica, o nosso fotógrafo registou a aparição. Para mais tarde se confirmar que afinal se tratava apenas de espigas ligeiramente curvadas de flores e cápsulas de sementes ainda com o estilete longo, dispostas de lado como figuras egípcias.

Aprendemos depois que esta hemiparasita anual é um endemismo ibérico, mais abundante na metade ocidental, nativa de quase todas as províncias portuguesas. É uma herbácea peludinha, de hábito desgrenhado (virgata), com caules que podem chegar aos 60 cm de altura e folhas opostas lineares. O nome dela vem mudando há dois séculos, desde a designação Euphrasia linifolia atribuída por Brotero em 1804 por pensar que seria a espécie assim nomeada por Lineu; mas essa é a que hoje se chama Odontites luteus (L.) Clairv. e, de facto, não ocorre em Portugal. Depois de ser Odontites virgata, emancipou-se em 1943 como espécie única do género Odontitella, com base em diferenças na corola e no pólen.

O cálice de cada flor, protegido por brácteas um pouco mais curtas (veja a imagem à direita), é tubular mas fendido até um terço — medida que ajudou à sua saída do género Odontites, onde tal sulco é mais cavado. A corola é bilabiada e tem cerca de 15 mm; amarelece laranja e mostra timidamente um lábio inferior dividido em três lóbulos pouco profundos — o detalhe que a distingue do género Euphrasia — e um superior como um capucho onde os estames se protegem.

O nome, que deriva de Odontites a que se juntou o sufixo diminutivo ella, alude às propriedades medicinais da Odontites vulgaris Moench, que serviu noutras eras para acalmar dores de dentes, ou para alindar os molares dos que riam casquinando, a sacudir o corpo como quem se livra do excesso de riso.

29/11/2010

Senhor das suas folhas

Halimium halimifolium (L.) Willk. — Mata Nacional das Dunas de Quiaios


A foto de uma flor não é uma flor; e, para os saudosistas do papel, aquilo que se vê no écran, e que se pode apagar carregando numa tecla, talvez não seja bem uma foto, mas uma ilusão. Dupla ilusão, portanto: a ilusão de uma foto onde está representada a ilusão de uma flor. Mas que fazer quando a realidade da flor já não está ao nosso alcance? Quando no pinhal onde floriu esta sargaça, e que não nos fica assim tão perto de casa, a vida está suspensa até à próxima temporada? Mostrar a flor, ou a ilusão da ilusão da flor, é marcar no calendário de 2011 um lembrete para o regresso.

O Halimium halimifolium, que no nosso país vive nos pinhais costeiros do centro e do sul, e de um modo geral se distribui pela metade oeste da bacia mediterrânica, é certamente o arbusto mais atraente de um género a que temos prestado atenção assídua (confira aqui, aqui e aqui). Com o seu porte empertigado (pode ultrapassar o metro e meio de altura) e a sua folhagem de um verde prateado, destaca-se pelas grandes flores amarelas, com ou sem pintas, que brotam profusamente entre Junho e Agosto. É nessa altura que os pinhais onde vive se transfiguram em jardins requintados, atravessados por uma mescla de perfumes onde sobressaem a caruma e a maresia.

A variabilidade das flores merece uma nota: o tamanho da mancha castanha na base das pétalas pode variar, mas é uniforme em cada arbusto. A mesma planta ou dá só flores sem pinta, ou as dá só com pinta, e sempre com a pinta do mesmo tamanho. Contudo, essas oscilações cromáticas não parecem ter qualquer significado taxonómico.

O nome Halimium halimifolium, que traduzido à letra dá um lapalissiano halímio com folhas de halímio, pode suscitar alguma estranheza. A aparente idiotice deve-se a Lineu, por em 1751, no seu Species Plantarum, ter chamado à planta Cistus halimifolius; o alemão Wilkomm, quando em 1878 a transferiu para o género Halimium, foi obrigado a manter o epíteto específico. E, de facto, o halimifolium (ou halimifolius) não foi motivado pela semelhança do arbusto consigo mesmo, mas sim com a salgadeira (Atriplex halimus). Essa outra planta, a que os gregos chamavam hálimos, tem folhagem igualmente acinzentada e é característica dos sapais mediterrânicos, surgindo em Portugal da ria de Aveiro para sul.

26/11/2010

Relíquias

Quercus suber L. — Campo, Valongo
When you find a thick bush of marjoram or a well-filled nest of Spanish flies you are in direct communication with the natural world which the Lord created with undifferentiated possibilities of good and evil until man could exercise his own free will on it.

But the 'nobles' aren´t like that; all they live by has been handled by others. They find us ecclesiastics useful to reassure them about eternal life, just as you herbalists are here to procure them soothing or stimulating drinks. And by that I don't mean they're bad people; quite the contrary. They're just different; perhaps they appear so strange to us because they have reached a stage towards which all those who are not saints are moving, that of indifference to earthly goods through surfeit. Perhaps it's because of that they take so little notice of things that are of great importance to us; those on mountains don't worry about mosquitoes on plains, nor do the people in Egypt about umbrellas. Yet the former fear landslides, the latter crocodiles, which are no worry to us. For them new fears have appeared of which we're ignorant; I've seen Don Fabrizio get quite testy, wise and serious though he is, because of a badly ironed collar to his shirt; and I know for certain that the Prince of Làscari didn't sleep for a whole night from rage because he was wrongly placed at one of the Viceroy's dinners. Now don't you think that a human being who is put out only by bad washing or protocol must be happy, and thus superior?


Giuseppe Tomasi di Lampedusa, The Leopard (trad. Archibald Colquhoun, The Folio Society, 2000)

25/11/2010

Musgo dos druidas

Huperzia dentata (Herter) J. Holub
[= Huperzia selago subsp. dentata (Herter) Valentine]
Consta que, apesar de a planta ser venenosa (ou talvez por isso mesmo), os druidas colhiam a Huperzia selago como ingrediente para as suas poções. Mas nos Açores, desabitados até ao século XV, nunca existiram druidas, e as Huperzia que lá ocorrem, ainda que semelhantes às europeias, pertencem a uma outra espécie. Não será porém desajustado baptizá-las como musgo-dos-druidas, pois o erro de chamar musgo a uma planta vascular aparentada com os fetos é corrente noutras línguas: os ingleses, por exemplo, chamam firmosses às plantas do género Huperzia, e clubmosses às dos géneros Lycopodium ou Lycopodiella. O fir em firmoss explica-se pela semelhança da Huperzia com um jovem abeto, mas não seria absurdo lermos em firm uma alusão ao porte erecto destas plantas — que, em contraste com a Lycopodiella, não desenvolvem caules rastejantes.

Ambos estes falsos musgos, que aliás integram a mesma família botânica, são presença comum nas ilhas açorianas, e por isso será útil assinalar-lhes outras diferenças. As hastes da Huperzia, que se bifurcam dicotomicamente, atingem os 30 cm de altura; a Lycopodiella também faz emergir hastes erectas do seu caule, mas são muito mais ramificadas, parecendo árvores de Natal em miniatura. Na Huperzia os esporângios estão distribuídos ao longo do caule — são aqueles feijoõzinhos amarelos nas axilas das folhas —, enquanto que na Lycopodiella eles se concentram nas extremidades dos galhos.

O epíteto dentata no musgo-dos-druidas açoriano refere-se aos pequenos dentes nas margens das folhas que são visíveis na foto da direita. De facto, há uma outra espécie nas ilhas, a Huperzia suberecta, que se diferencia sobretudo pela ausência dessa micro-dentadura. Durante muitos anos a ocorrência de duas espécies autónomas de Huperzia nos Açores (e na Madeira, onde elas também aparecem) foi motivo de discórdia, mas este artigo de 2008 no Botanical Journal of the Linnean Society pôs tudo em pratos limpos.

24/11/2010

Cordão-de-cardeal

Polygonum orientale L.


     Nomes vulgares: em inglês: kiss-me-over-the-garden-gate, em castelhano: disciplinas-de-monja
     Distribuição global: originária do este e sudeste da Ásia
     Distribuição em Portugal: naturalizada, sobretudo no norte do país
     Época de floração: Agosto a Outubro 
     Data e local das fotos: margens do rio Ferreira em Valongo, Setembro de 2010

23/11/2010

Ás-de-pérolas

Asperula aristata L. fil.


Já aqui vimos cimeiras de flores com corola em funil e quatro pétalas como estas, no topo de múltiplos caules pubescentes e escabrosos (ásperos como línguas de gato) de secção quadrada, mas em amarelo, como as vulgares estrelas. A julgar por outras espécies de Asperula, estas também exalam um aroma que lembra a erva acabada de segar, mas não o pudemos confirmar porque as que encontrámos — num talude pedregoso e calcário de montanha — tinham corolas de não mais de 2 mm de diâmetro e os narizes disponíveis não eram de borboleta. A bula informa que a fragrância se deve à presença de um composto químico — usado em perfumes, charutos, bebidas alcoólicas alemãs e como aditivo alimentar, até ser banido — que, apesar de cheirar bem, desencoraja eventuais degustadores da planta por ser um redutor natural do apetite. Lamentavelmente é substância tóxica, ou a floração entre Maio e Junho abençoaria as dietas pré-veraneantes.

As folhas são sésseis, lanceoladas, de margens levemente revolutas, simples mas em verticilos de 4; as basais têm umas barbichas filiformes, as aristas, que dão o nome à espécie. As belles étoiles ocorrem no sul da Europa e no norte de África.

Só falta dar a boa notícia da publicação, pela Assírio & Alvim, da 2.ª edição do guia de campo Flores da Arrábida, de José Gomes Pedro e Isabel Silva Santos. Segundo os autores, esta é a subespécie scabra, distinção que só será útil se se descobrirem indivíduos da outra subespécie, a A. aristata subsp. oreophila, que talvez ocorra a este dos Pirenéus mas tão rara é que a sua existência é duvidosa.

22/11/2010

Uma casa na árvore

Um erro comum nos percursos marcados em espaços naturais portugueses é o de supor que todos nós temos um interesse absorvente pela etnografia — ou, trocando por miúdos, que adoramos ver povo. E assim nos fazem deambular por aldeias (a)típicas e quase nos enfiam em casa de gente que não tem feitio para servir de atracção turística. Compreendo muito bem que alguns se sintam incomodados por ver chegar forasteiros tão abelhudos, e tomem medidas para os manter à distância. Em Paredes de Coura, por exemplo, um dos trilhos na paisagem protegida de Corno de Bico, o do Alto dos Morrões, passa por duas aldeias, Giesteira e Túmio, e proporciona uma vista desafogada para várias salas de estar, cozinhas e pátios de gente que, como nós, tem direito à privacidade. O resultado é que, na vizinhança dessas aldeias, principalmente em Giesteira, os indicadores do percurso foram metodicamente sabotados, chegando a ser colocadas cancelas a barrar o caminho. O percurso ainda se consegue adivinhar se for feito no sentido anti-horário (ao contrário do que é recomendado), mas no sentido oposto os caminhantes depressa perdem todas as referências. Quando, já perto de completarmos o circuito, deparámos com um portão e uma corda a travar-nos a passagem, fomos perguntar a um sujeito que trabalhava num campo se era mesmo aquele o caminho para Giesteira. A resposta foi estranhíssima: temos muito gosto em vos ver por aqui. Em vez de responder à pergunta, ele quis atenuar (ou, quem sabe, sublinhar) o repúdio pela nossa presença que transparecia de tão inesperados obstáculos. O homem pode ter sido sincero ou hipócrita, mas é certo que alguém ali (talvez ele mesmo) não gosta de nós.

Vila da Serreta — ilha Terceira
Os percursos que pude fazer na Terceira não sofrem desse pecado. Atravessam áreas de genuíno interesse paisagístico e natural e não insistem em desviar-nos para a Casa do Povo ou para a igreja. O trilho que vai da Serreta à Lagoinha, por exemplo, começa já fora do núcleo urbano da vila. Mas eu gostei da Serreta, onde me demorei a fazer horas para a camioneta de volta, apesar de a povoação pouco mais ser do que o casario baixo ao longo da estrada, com uma ou outra canada cortando em direcção ao mar. Aqui deixo pois duas fotos em que os únicos habitantes a botar figura são duas galinhas, captadas à distância para não se lhes reconhecerem as feições.

Hymenophyllum tunbrigense (L.) Sm.
Retomando o inventário das plantas que vivem na floresta húmida açoriana, falemos agora de epífitas. Tal como os espigos-de-cedro, andam às cavalitas das árvores, mas, ao contrário destes, não são plantas parasitas, pois fabricam honestamente o seu próprio sustento. Uma das epífitas mais comuns, tanto em juníperos como em loureiros ou até mesmo em criptomérias, é este feto de frondes semi-transparentes que gosta da companhia dos musgos. A semelhança do Hymenophyllum tunbrigense com o Trichomanes speciosum é notória, e de facto os dois fetos pertencem à mesma família botânica; mas as frondes do primeiro são mais pequenas (6 cm contra 15 a 20 cm) e têm as margens dentadas (clique nas fotos para ampliar). Além disso, o Hymenophyllum vive nas árvores e o Trichomanes prefere agarrar-se às rochas.

O Hymenophyllum tunbrigense é espontâneo na Macaronésia, na Europa ocidental e na América do Norte. Nos Açores aparece ainda uma espécie gémea, o H. wilsonii, com frondes mais curtas e menos divididas, que partilha os mesmos habitats aéreos mas tem uma distribuição mais escassa.

Sticta canariensis (Ach.) Bory ex Delise
As mesmas árvores que serviam de morada ao feto enfeitavam-se com outros adereços de índole vegetal. O mais vistoso era este líquen foliforme que julgamos ser a Sticta canariensis. É uma espécie de lugares húmidos e protegidos que habita troncos musgosos mas também aparece em rochas e pode mesmo descer até ao solo. Está presente em quatro das ilhas açorianas (São Miguel, Terceira, Pico e Flores) e, mais globalmente, na Macaronésia e na Europa. Se nos arquipélagos atlânticos a sua sobrevivência não suscita preocupações, já o mesmo não se passa no continente europeu, onde a espécie é considerada vulnerável ou mesmo em perigo de extinção.

A Sticta canariensis tem a peculiaridade de existir sob duas formas muito diferentes, que no entanto pertencem à mesma espécie por serem associações simbióticas do mesmo fungo. Quando o fungo se associa a uma alga verde, temos o morfotipo retratado na foto. Quando ele se associa a uma cianobactéria (também chamada alga azul), o resultado é este morfotipo com talos acastanhados e rugosos, mais comum no norte da Europa.

21/11/2010

Palestra: Flores & fetos de Valongo

Gentiana pneumonanthe L. / Simethis planifolia (L.) Gren.
Data e hora: 4 de Dezembro (sábado), às 16h00
Local: sede da Campo Aberto, rua de Santa Catarina, 730-2.º, Porto

Leitores regulares do blogue ou visitantes ocasionais, estão todos convidados para uma palestra onde daremos a conhecer, com muitas fotos, a flora espontânea das serras de Valongo. Entre árvores, arbustos, flores e fetos, serão cerca de 60 as espécies ilustradas. Muitas são escassas na área metropolitana do Porto, e algumas há que são raridades absolutas em Portugal continental ou mesmo na Europa. Este património único, desconhecido de muitos, está ameaçado pela degradação ambiental que tem sofrido esse território nas últimas décadas.

A sede da Campo Aberto estará aberta a partir das 15h00 para quem queira conversar ou, aproveitando o embalo da quadra festiva, comprar livros, artesanato ou produtos do comércio justo.

Depois da palestra haverá lanche, rifas, um leilão, tudo isso em benefício da Campo Aberto (associação reconhecida de utilidade pública), que não tem subsídios e necessita do apoio financeiro de sócios e amigos.

20/11/2010

Pelo Jardim Botânico de Lisboa



Os que acham que em Portugal, governado como é por ambientalistas pertinazes, há árvores e jardins a mais, faltando, isso sim, centros comerciais, hotéis, teatros e edifícios em geral, vão por certo alegrar-se com o que a Universidade de Lisboa e a Câmara da capital se preparam para fazer ao Jardim Botânico.

Os outros talvez devam assinar esta petição.

19/11/2010

Fraga de Brazalite



Terça-feira, 22 de Novembro ? Nevoeiro espesso. Luzes acesas o dia inteiro. Carta de um leitor a queixar-se que a catarata de trezentos e vinte e sete metros que existia no rio Unhais junto de Pampilhosa da Serra, e ainda é mencionada no meu guia de Portugal, desapareceu engolida pela Barragem de Santa Luzia.

Espera-me a aborrecida tarefa de lhe escrever a explicar que mesmo numa «edição totalmente revista» há sempre erros e lacunas. Por outro lado, que diabo, um país é um organismo vivo e nele as cataratas desaparecem, as igrejas desabam, as estradas mudam de sítio... Mas mesmo assim, lapsos desses estragam-me o dia.


J. Rentes de Carvalho, Tempo Contado (Quetzal, 2010)

18/11/2010

Espigos-de-cedro

Arceuthobium azoricum Wiens & F. G. Hawksworth


Tal como sucede com todas as coníferas, os cedros-do-monte (que não são cedros, mas sim juníperos) não dão flores. Causa assim certa estranheza que no verde de algumas copas sobressaiam manchas douradas. Serão folhas amarelecidas pelo Outono, mesmo sendo estas árvores de folhagem perene? Ou será que alguma doença as atacou? Em certo sentido, elas foram vítimas de um ataque, mas é melhor inspeccionarmos o fenómeno de perto. Rapidamente concluímos que o amarelo não pertence aos juníperos, mas sim a umas plantas quase alienígenas que a eles se agarraram. Além de não terem folhas que se vejam, as suas hastes parecem formadas por peças cilíndricas arbitrariamente encaixadas umas nas outras, com as peças terminais rematadas por flores sumárias. O défice de clorofila denunciado pela cor amarela e a posição comprometedora em que se encontram não permitem dúvidas sobre a índole parasita destas plantas.

Em rigor, o Arceuthobium azoricum (ou espigos-de-cedro, como lhe chamam nos Açores) não é inteiramente parasita, uma vez que possui alguma clorofila; por isso se diz hemiparasita. Mas, como a sua concentração de clorofila é cerca de um décimo daquela que se encontra na folhagem verde de uma planta normal, ela é muito pouco eficiente na fotossíntese. Se quiséssemos ser picuinhas, diríamos que hemiparasita, ao indicar um grau de dependência do hospedeiro da ordem dos 50% (o prefixo grego hemi significa metade), é uma qualificação enganadora; tal dependência, medida na importância para a sua dieta dos nutrientes subtraídos à vítima, andará acima dos 90%, e por isso é indiscutível que parasita representa uma aproximação mais satisfatória.

Os espigos-de-cedro recusam-se, naturalmente, a parasitar outras plantas que não os cedros-do-monte. Como tal hospedeiro só existe nos Açores, também o hóspede está impossibilitado de se aventurar fora das ilhas. De facto, o Arceuthobium azoricum só ocorre nas maiores populações de Juniperus brevifolia no grupo central do arquipélago; e, em geral, coloniza poucas árvores em cada população. Encontrá-lo é prova de que chegámos a um sítio especial.

Erik Sjögren, no seu livro Plants & flowers of the Azores (Os Montanheiros, 2001; edição trilingue), afirma que as árvores infectadas pelos espigos parecem nada sofrer com o ataque. Talvez essa inocuidade se deva à razão elementar de que o agressor nunca poderia sobreviver à morte da vítima. Num ecossistema tão circunscrito como é o de uma pequena ilha, uma relação parasitária mais nociva teria há muito terminado com a extinção de ambas as espécies. Mas num continente como a América do Norte um tal equilíbrio já não é essencial. Aí, entre as quase 40 espécies de Arceuthobium, há uma que em poucos anos é mortífera para os espruces (Picea mariana, P. glauca, etc.) onde se costuma alojar: trata-se do A. pusillum, conhecido como dwarf mistletoe (ou visco-anão). Curiosamente, é uma planta quase invisível, pois as suas hastes, que em geral não são ramificadas, não ultrapassam os 2 cm de comprimento. As árvores atacadas desenvolvem uma copa irregular, com a folhagem concentrada em tufos: nesta página, por exemplo, pode ver-se uma árvore morta e outra a que já pouca vida resta.

17/11/2010

Alho-dos-ursos

Allium ursinum L.

     Nomes vulgares: ramsons ou broad-leaved garlic (em inglês), ail des ours (em francês)
     Distribuição global: quase toda a Europa
     Distribuição em Portugal: só na Serra da Nogueira 
     Época de floração: Abril a Junho 
     Data e local das fotos: Inglaterra, Maio de 2009

16/11/2010

Viúva alegre

Knautia nevadensis (Szabó) Szabó
No Verão, entre outras andanças, procurámos no Gerês esta herbácea que é um quase-endemismo ibérico (o quase é culpa da França). Os capítulos florais, onde se nota um gradiente de tamanho nas flores, sendo as periféricas maiores (para quê?), parecem os do género Scabiosa — e o nome vernáculo luso é, enganadoramente, escabiosa de bosque —, mas as corolas tubulares na foto têm quatro pétalas desiguais. Depois de descer um acesso acidentado ao vale do rio Beredo, a cerca de mil metros de altitude, parando — demasiadas vezes, reclamou o fotógrafo — para admirar orquídeas, encontrámos uma dúzia de pés em flor num bosque de carvalhos-negrais. Um regalo, de frescor e formosura.

Das oitenta espécies do género Knautia, nativas da região mediterrânica e Europa, apenas nove ocorrem na Península Ibérica, e só duas se conhecem em Portugal: diz a Flora Ibérica que, além da K. nevadensis, também temos a K. subscaposa Boiss. & Reut., igualmente perene e apreciadora de prados, a que chamamos saudade-brava, talvez por raramente se conseguir avistar. Os que, pelo contrário, são abonados com populações vastas deste género, que exibe um inquieto polimorfismo e ampla hibridação interespecífica, vêem-se à nora para acertar com a identificação das suas numerosas espécies. Quem dera.

Vamos às medidas, que as fotos não permitem adivinhar. Cada inflorescência, redonda e plana, mede cerca de 7 cm de diâmetro e é sustentada por um anel de uma dezena de brácteas; a corola, de garganta penugenta, não ultrapassa os 2 cm e é agasalhada por um cálice de oito ou mais sépalas estreitas e lanosas; ao centro reúnem-se quatro estames e um estilete longo com um estigma bilobado. As flores são, em geral, hermafroditas, havendo contudo inflorescências só femininas. A planta é alta, com caules de até um metro (mas as que vimos eram mais pequenas), folhas basais em roseta, as superiores opostas e sésseis. O fruto é um aquénio com um pára-quedas no topo que é o ex-cálice.

A espécie foi descrita a partir de indivíduos de Sierra Nevada, na Andaluzia. O nome do género homenageia, desde 1907, um dos irmãos Christian (1654-1716) ou Christoff Knaut (1638-1694), ambos médicos e botânicos alemães, contemporâneos e da mesma cidade de G. F. Handel (1685-1759). A dúvida obriga a que se mencionem sempre os dois manos, o que, se não for justo, é providencial.

15/11/2010

Da Serreta à Lagoinha

Juniperus brevifolia (Seub.) Antoine
Na véspera do passeio ao Monte Assombrado já eu ensaiara uma incursão às nuvens. Bastou-me apanhar às 10h30, à frente do Jardim Duque da Terceira, a carreira n.º 1, Angra-Biscoitos, e apear-me na Serreta uns 45 minutos mais tarde. Usar as camionetas de passageiros é a segunda melhor forma de conhecer o litoral da ilha; a melhor é ir a pé; a pior é alugar um carro. É que a velocidade é inimiga da fruição, e as paragens a que os transportes públicos são obrigados dão tempo para nos impregnarmos da paisagem. A pé ainda teríamos mais tempo, tanto que não caberia num dia só e poderíamos nem chegar às nuvens.

Um dos percursos pedestres recém-marcados na Terceira vai da vila da Serreta até à Lagoinha, um pequeno lago perfeitamente circular ao fundo de uma das muitas caldeiras vulcânicas que existem na metade ocidental da ilha. Medido a partir da estrada, o percurso terá, com ida e volta, uns 8 km de extensão, partindo de uma altitude de 240 metros e atingindo no bordo da cratera um máximo de 800 metros. Com excepção da extenuante subida final para a Lagoinha, a maior parte do percurso é feito em declives suaves. As marcações, importantíssimas para quem não conhece o terreno e em locais onde a vegetação é muito cerrada, estavam todas bem visíveis.

É acima dos 500 metros que o carácter da vegetação muda por completo: a certa altura avançamos por um estradão onde de um lado vemos criptomérias e do outro juníperos. Tomamos um desvio, deixando para trás a plantação florestal e embrenhando-nos na floresta das ilhas tal como ela era antes da ocupação humana. Acreditamos que esta relíquia é para preservar e que o estradão marca uma fronteira que já não será devassada.

O Juniperus brevifolia, que os açorianos conhecem como cedro-do-mato, é uma conífera de até 12 metros de altura, de copa larga e tronco retorcido, endémica do arquipélago e apenas ausente da Graciosa. É a árvore mais numerosa e mais característica da floresta húmida dos Açores, dando abrigo a um riquíssimo mosaico de plantas raras ou endémicas. Cortado em grande escala pela sua madeira de alta qualidade, só nas ilhas do Pico, Faial, Terceira e Flores persistem populações abundantes de cedro-do-mato; contudo, a consciência gradual do valor destas raras manchas florestais parece ter conseguido travar a sua destruição. E, se outros benefícios ambientais não trouxe a monocultura da criptoméria, pelo menos fornece madeira e alivia a pressão sobre a floresta autóctone.

Lagoinha da Serreta


Das plantas que se podem observar pelo caminho, empoleiradas nos juníperos ou à sua sombra, se contará noutras ocasiões. Agora quero só falar da Lagoinha num dia em que as nuvens optaram por reter a carga aquífera em forma de névoa, gentileza que agradeço apesar de com isso não ter ficado muito mais enxuto. Disseram-me que lá de cima, nos dias bons, se avistam a Graciosa e São Jorge, mas há aqui um equívoco na adjectivação. Os dias bons são aqueles em que as árvores parecem flutuar no vácuo, em que o mundo parece ter no máximo uns cinquenta metros de diâmetro e vai sendo criado e apagado à medida que avançamos. Quando desci para a margem do lago, fechou-se atrás de mim a cortina de juníperos por onde acabara de romper: encontrava-me como que numa grande câmara circular pendurada a toda a volta com grandes reposteiros verdes. Por momentos achei que nunca redescobriria a saída, e não me importei nada com isso.

12/11/2010

Floresta de nuvens

Morro Assombrado — ilha Terceira
What are here called the Gods might almost alternatively be called the Day-Dreams. To compare them to dreams is not to deny that dreams can come true. To compare them to traveller's tales is not to deny that they may be true tales, or at least truthful tales. In truth they are the sort of tales the traveller tells to himself. All this mythological business belongs to the poetical part of men. It seems strangely forgotten nowadays that a myth is a work of imagination and therefore a work of art. It needs a poet to make it.

The point of the puzzle is this: that all this vagueness and variation arise from the fact that the whole thing began in fancy and in dreaming; and that there are no rules of architecture for a castle in the clouds. The crux and crisis is that man found it natural to worship; even natural to worship unnatural things. The posture of the idol might be stiff and strange; but the gesture of the worshipper was generous and beautiful. He not only felt freer when he bent; he actually felt taller when he bowed. We therefore feel throughout the whole of paganism a curious double feeling of trust and distrust. There seems a disproportion between the priest and the altar or between the altar and the god. The priest seems more solemn and almost more sacred than the god.

We know the meaning of all the myths. We know the last secret revealed to the perfect initiate. And it is not the voice of a priest or a prophet saying 'These things are.' It is the voice of a dreamer and an idealist crying, 'Why cannot these things be?'


G.K. Chesterton, Man and Mythologies (The Everlasting Man, 1925)

11/11/2010

Os fetos e as fendas

Trichomanes speciosum Willd. — ilha Terceira
No dia da chegada, para dissipar a sonolência pós-prandial, fui ao princípio da tarde revisitar o Monte Brasil, onde não punha os pés há quatro anos. O Monte Brasil, para quem não sabe, é uma protuberância vulcânica fartamente arborizada sobranceira à cidade de Angra do Heroísmo e ligada ao resto da ilha por um istmo. A vegetação, dominada por exóticas como a árvore-do-incenso (Pittosporum undulatum) e a criptoméria, não é entusiasmante, embora se registe a presença ocasional da faia-das-ilhas (Myrica faya) e, nas vertentes expostas ao mar, da urze açoriana (Erica azorica). Os grandes atractivos do Monte Brasil são porém de outra ordem. Há as velhas paredes da Fortaleza de São João Baptista, ainda hoje ocupada por um contingente militar, ressumando o verde que é a pátina dos séculos. E há, sobretudo, a vista para o casario de Angra empilhado nas ruas que descem para a baía. Gostaria de poder dizer que a realidade se confundiu com a memória, mas a paisagem estava ferida por um rasgão impossível de ignorar. No limite leste da baía, a falésia foi esventrada quase até ao fundo para lá se enfiar um edifício medonho, de fachada oblíqua e varandas a toda a largura. Dizem que ali funcionará o próximo grande hotel da ilha Terceira — mas, com as obras ainda por concluir, o edifício é desde já um borrão inimaginável no até agora intocado recorte urbano de Angra.

No Monte Brasil, a novidade é que foi inaugurado um desses percursos com marcas amarelas e vermelhas para os caminhantes não se perderem. Seguindo-o, reencontrei as beladonas (Amaryllis belladonna) e passei por locais que já conhecia e por outros que só agora desvendei, como a carreira de tiro rodeada por quatro cumes onde há muito não são disparadas balas. Já de volta a Angra, aconteceu-me deparar, à porta do Museu Vulcanológico, numa rua debruçada sobre a baía, com um aviso anunciando passeios pedestres; um deles, com destino ao Morro Assombrado, estava marcado para daí a dois dias. Como poderia recusar tal convite do acaso? Entrei no edifício — que, além de museu, é sede da associação Os Montanheiros — e fiquei a saber que o passeio era gratuito mas exigente. Aconselhavam-se galochas, vestes impermeáveis, boa resistência física e imunidade a vertigens. Em troca os participantes ficariam a conhecer lugares inacessíveis ao comum dos turistas: trilhos que mal se percebem em densas matas de loureiros e juníperos; desfiladeiros estreitíssimos forrados de alto a baixo por multidões de fetos; descidas impossíveis e escaladas não menos temerárias; e tudo banhado numa humidade intensa que se condensa em charcos, turfeiras e escorrências.

Mas quando soube do passeio, ali na sede dos Montanheiros, em conversa numa sala ocupada com modelos em relevo de várias ilhas açorianas, ainda essas impressões não tinham ganho corpo. O Morro Assombrado era só mais um dos inúmeros picos que no mapa tridimensional da Terceira apareciam assinalados por bandeirolas. Preocupado com as galochas e o impermeável — não dispunha nem duma coisa nem doutra —, não prestei grande atenção ao acervo exemplar do museu: pedras e fósseis, borboletas, imagens da fauna e da flora açorianas, descrições de grutas, etc. Acabei depois por comprar numa loja agrícola umas galochas (brancas) que afinal não usei. Não apenas por vergonha de atravessar o átrio do hotel com elas calçadas, mas porque as solas não tinham a aderência que o percurso acidentado recomendava. Antes meter o pé na poça do que despencar-me numa ravina.

O interior da metade oeste da ilha Terceira é ocupado por uma sucessão de picos, com o de Santa Bárbara, a 1023 metros, a assinalar o ponto mais alto. As povoações ficam todas na costa, a agricultura e a criação de gado só mordiscaram as faldas mais suaves das serras, e mesmo as plantações florestais de criptomérias foram travadas pelos acidentes do terreno. O resultado é que a floresta endémica das ilhas açorianas, dominada pelo cedro-do-mato (Juniperus brevifolia), foi aqui preservada numa extensão que, no resto do arquipélago, só encontra paralelo no Pico e no Faial. É uma floresta cheia de sortilégios, quase sempre encoberta pela névoa, em que as árvores rejeitam a nudez dos troncos e ostentam longos véus de musgos, fetos e líquenes; chamam-lhe a floresta das nuvens, e quem quiser conhecê-la (muitos açorianos não a conhecem) terá que se juntar aos Montanheiros.

Abundante em fendas descomunais como a que se vê na foto acima, o Trichomanes speciosum é um pequeno feto (até 20 cm) notável pelas suas frondes brilhantes e translúcidas, que só se dá em lugares abrigados e permanentemente húmidos. Vive nos arquipélagos atlânticos dos Açores, Madeira e Canárias, e também, em núcleos esparsos e muito reduzidos, no limite oeste do continente europeu (Irlanda, Reino Unido, Bretanha, Península Ibérica). Terá sido dos fetos europeus que mais sofreram com as depredações de coleccionadores inconscientes.

Trichomanes speciosum Willd. — Valongo
Em Portugal continental, o Trichomanes speciosum é dado como extinto em Sintra, e hoje só subsiste uma população refugiada num dos fojos das serras de Valongo. Os fojos são grandes buracos escavados na ossatura da serra, que terão servido, no tempo dos romanos, para aceder às minas de ouro. Quando as serras foram eucaliptizadas, houve plantas (como este outro feto) que só nos fojos puderam continuar a existir. E lá estava, ao fundo do buraco a que chegámos com infinita precaução, e algo acabrunhada pela secura estival, uma população apesar de tudo promissora de Trichomanes speciosum. Se as deixarmos em paz, as plantas agarram-se à vida com uma tenacidade assombrosa.

10/11/2010

Alho três

Allium pallens L. [= Allium paniculatum L.]
     Nome vulgar: alho-silvestre
     Distribuição global: sul da Europa, bacia do Mediterrâneo, Madeira e Canárias
     Distribuição em Portugal: presente no litoral e interior de norte a sul do país  
     Época de floração: Junho a Agosto 
     Data das fotos: Julho de 2008 / Junho de 2010

09/11/2010

Raios-rosa

Radiola linoides Roth


Já aqui vos revelámos que encontrámos, e escondemos, um pradinho húmido de solo ácido num recanto de Valongo que parece açoriano, tão modesto que nele só cabem plantas pequeninas e poucos pés de cada uma. A da foto, delicada e de estatura exígua (cada flor tem uns 2 mm de diâmetro), não tem nome comum em português. Quererá o leitor propor algum que lhe assente bem? Lineu chamou-lhe, em 1753, Linum radiola, mas A. W. Roth (1757-1834) entendeu, em 1788, que deveria autonomizá-la, e ela é hoje a única espécie do género Radiola; mais tarde, houve ainda quem propusesse as designações Millegrana radiola ou Radiola multiflora, mas prefere-se hoje a opção de Roth.

Esta herbácea anual, rara e em risco de desaparecer em vários habitats da Europa e Macaronésia, é da família Linaceae, a da planta do linho (Linum usitatissimum L., de cujo talo alto se retiram as fibras para fabricar o tecido), mas tem caules tão baixos (~ 5 cm) e ramificados que nem para um escarpim se aproveitam. As folhas, de uns 2 mm de comprimento, são sésseis, elípticas e opostas, com um só veio central. As flores desabotoam em inflorescências terminais ralas entre Maio e Agosto; têm pétalas brancas e sépalas, de igual tamanho, tridentadas no ápice e raiadas de cor-de-rosa.

Radiola deriva de radius — e assinalam-se hoje os cento e quinze anos da descoberta da radiação electromagnética, que Wilhelm Roentgen cautelosamente nomeou com a letra que serve de incógnita em matemática.