Trichomanes speciosum Willd. — ilha Terceira
No dia da chegada, para dissipar a sonolência pós-prandial, fui ao princípio da tarde revisitar o Monte Brasil, onde não punha os pés há quatro anos. O Monte Brasil, para quem não sabe, é uma protuberância vulcânica fartamente arborizada sobranceira à cidade de Angra do Heroísmo e ligada ao resto da ilha por um istmo. A vegetação, dominada por exóticas como a árvore-do-incenso (
Pittosporum undulatum) e a criptoméria, não é entusiasmante, embora se registe a presença ocasional da faia-das-ilhas (
Myrica faya) e, nas vertentes expostas ao mar, da urze açoriana (
Erica azorica). Os grandes atractivos do Monte Brasil são porém de outra ordem. Há as velhas paredes da Fortaleza de São João Baptista, ainda hoje ocupada por um contingente militar, ressumando o verde que é a pátina dos séculos. E há, sobretudo, a vista para o casario de Angra empilhado nas ruas que descem para a baía. Gostaria de poder dizer que a realidade se confundiu com a memória, mas a paisagem estava ferida por um rasgão impossível de ignorar. No limite leste da baía, a falésia foi esventrada quase até ao fundo para lá se enfiar um edifício medonho, de fachada oblíqua e varandas a toda a largura. Dizem que ali funcionará o próximo grande hotel da ilha Terceira — mas, com as obras ainda por concluir, o edifício é desde já um borrão inimaginável no até agora intocado recorte urbano de Angra.
No Monte Brasil, a novidade é que foi inaugurado um desses percursos com marcas amarelas e vermelhas para os caminhantes não se perderem. Seguindo-o, reencontrei as beladonas (
Amaryllis belladonna) e passei por locais que já conhecia e por outros que só agora desvendei, como a carreira de tiro rodeada por quatro cumes onde há muito não são disparadas balas. Já de volta a Angra, aconteceu-me deparar, à porta do Museu Vulcanológico, numa rua debruçada sobre a baía, com um aviso anunciando passeios pedestres; um deles, com destino ao Morro Assombrado, estava marcado para daí a dois dias. Como poderia recusar tal convite do acaso? Entrei no edifício — que, além de museu, é sede da associação
Os Montanheiros — e fiquei a saber que o passeio era gratuito mas exigente. Aconselhavam-se galochas, vestes impermeáveis, boa resistência física e imunidade a vertigens. Em troca os participantes ficariam a conhecer lugares inacessíveis ao comum dos turistas: trilhos que mal se percebem em densas matas de loureiros e juníperos; desfiladeiros estreitíssimos forrados de alto a baixo por multidões de fetos; descidas impossíveis e escaladas não menos temerárias; e tudo banhado numa humidade intensa que se condensa em charcos, turfeiras e escorrências.
Mas quando soube do passeio, ali na sede dos Montanheiros, em conversa numa sala ocupada com modelos em relevo de várias ilhas açorianas, ainda essas impressões não tinham ganho corpo. O Morro Assombrado era só mais um dos inúmeros picos que no mapa tridimensional da Terceira apareciam assinalados por bandeirolas. Preocupado com as galochas e o impermeável — não dispunha nem duma coisa nem doutra —, não prestei grande atenção ao acervo exemplar do museu: pedras e fósseis, borboletas, imagens da fauna e da flora açorianas, descrições de grutas, etc. Acabei depois por comprar numa loja agrícola umas galochas (brancas) que afinal não usei. Não apenas por vergonha de atravessar o átrio do hotel com elas calçadas, mas porque as solas não tinham a aderência que o percurso acidentado recomendava. Antes meter o pé na poça do que despencar-me numa ravina.
O interior da metade oeste da ilha Terceira é ocupado por uma sucessão de picos, com o de Santa Bárbara, a 1023 metros, a assinalar o ponto mais alto. As povoações ficam todas na costa, a agricultura e a criação de gado só mordiscaram as faldas mais suaves das serras, e mesmo as plantações florestais de criptomérias foram travadas pelos acidentes do terreno. O resultado é que a floresta endémica das ilhas açorianas, dominada pelo cedro-do-mato (
Juniperus brevifolia), foi aqui preservada numa extensão que, no resto do arquipélago, só encontra paralelo no Pico e no Faial. É uma floresta cheia de sortilégios, quase sempre encoberta pela névoa, em que as árvores rejeitam a nudez dos troncos e ostentam longos véus de musgos, fetos e líquenes; chamam-lhe a
floresta das nuvens, e quem quiser conhecê-la (muitos açorianos não a conhecem) terá que se juntar aos Montanheiros.
Abundante em fendas descomunais como a que se vê na foto acima, o
Trichomanes speciosum é um pequeno feto (até 20 cm) notável pelas suas frondes brilhantes e translúcidas, que só se dá em lugares abrigados e permanentemente húmidos. Vive nos arquipélagos atlânticos dos Açores, Madeira e Canárias, e também, em núcleos esparsos e muito reduzidos, no limite oeste do continente europeu (Irlanda, Reino Unido, Bretanha, Península Ibérica). Terá sido dos fetos europeus que mais sofreram com as depredações de coleccionadores inconscientes.
Trichomanes speciosum Willd. — Valongo
Em Portugal continental, o
Trichomanes speciosum é dado como extinto em Sintra, e hoje só subsiste uma população refugiada num dos fojos das serras de Valongo. Os fojos são grandes buracos escavados na ossatura da serra, que terão servido, no tempo dos romanos, para aceder às minas de ouro. Quando as serras foram eucaliptizadas, houve plantas (como
este outro feto) que só nos fojos puderam continuar a existir. E lá estava, ao fundo do buraco a que chegámos com infinita precaução, e algo acabrunhada pela secura estival, uma população apesar de tudo promissora de
Trichomanes speciosum. Se as deixarmos em paz, as plantas agarram-se à vida com uma tenacidade assombrosa.