Aprendi o que é a
sucessão ecológica muito antes de saber o nome do fenómeno. Na varanda da nossa casa, fechada com uma
marquise de alumínio na boa tradição suburbana, a minha mãe mantinha uma colecção de plantas envasadas que eu me incumbia de regar com uma assiduidade letal. A falar verdade, a dita colecção, mesmo no seu apogeu, nunca foi muito variada: lembro-me dos cactos, das begónias e da avenca. E lembro-me, também, como definhavam os cactos e as begónias — sei hoje que por culpa minha — e como os luxuriantes pés de avenca acabavam por invadir todos os vasos. No habitat húmido hiper-saturado que eu criava só uma planta especialmente adaptada poderia sobreviver. Às outras plantas cumpria apenas preparar o terreno (sem elas não se teriam comprado os vasos) para o triunfo final da avenca.
Não sei se essa avenca ornamental era a mesma que por aí cresce espontânea. Talvez não fosse, pois as floristas tinham o seu brio e, tal como hoje ainda acontece, preferiam vender produtos importados. Mas as avencas são todas bonitas, seja num muro ou num vaso, e a avenca europeia até pediu o nome emprestado à deusa do amor:
capillus-veneris significa exactamente
cabelos-de-Vénus. Os cabelos são as hastes finas e negras, longamente pendentes, de onde saem os folíolos (ou pínulas) de um verde brilhante. Tudo isto em miniatura para treinar e gratificar a observação paciente.
Os aficionadas dos fetos têm o costume desagradável de lhes levantar as frondes para os espreitar do avesso, como se fossem médicos a sondar as intimidades de um paciente. Acontece que os esporângios costumam estar na face inferior das folhas, e o modo como se dispõem é importante para a identificação correcta da espécie. Uma característica do
Adiantum capillus-veneris, que ajuda a diferenciá-lo das avencas exóticas, é que os esporângios estão protegidos por uma dobra na margem das pínulas, visível na terceira foto lá em cima. Ressalve-se, contudo, que só algumas pínulas, e só em certos períodos do ano, é que exibem tais dobras e produzem tais esporângios.
Assim como outros fetos, a avenca é ideal para um botânico sedentário que, no Inverno, não queira chafurdar por caminhos enlameados. Qualquer muro de pedra antiga num recanto esquecido da cidade é um possível habitat.
Adiantum capillus-veneris L. /
Ginkgo biloba L.
Apesar do amarelo outonal e da desproporção dos tamanhos, as fotos explicam cabalmente por que razão os anglo-saxónicos tratam o ginkgo e a avenca pelo mesmo nome: o feto é o
maidenhair fern, a árvore a
maidenhair tree. (Por que se terá Vénus convertido em donzela (
maiden) na passagem do latim para o vernáculo? Parece obra de vitorianos receosos de explicar coisas inconvenientes às criancinhas.) As folhas, de facto, parecem ter sido desenhadas pelo mesmo artista gráfico; ou então Deus, por cansaço criativo, repetiu formas na esperança de que ninguém notasse o auto-plágio.
A semelhança foliar entre a avenca e o ginkgo aparece num episódio que mereceria figurar no
Livro Verde do Imperialismo e do Preconceito, se a obra existisse. O nome científico
Ginkgo, que adopta a designação japonesa da árvore, foi oficializado por Lineu em 1771. Mais tarde, em 1797, o botânico inglês James Edward Smith, fundador da
Linnean Society londrina, considerou que o nome oriental era bárbaro e inapropriado — apesar de a árvore ser ela própria oriental —, e propôs que em vez dele se usasse
Salisburia adiantifolia. O epíteto significava, está bom de ver,
com folhas de adiantum, mas o
Salisburia era uma homenagem de J. E. Smith ao seu amigo Richard Salisbury. Contra todas as regras da precedência taxonómica, o nome espúrio teve uma voga de pelo menos um século, e não apenas em Inglaterra. Em Portugal, mesmo depois do ultimato britânico de 1890, o
Jornal de Horticultura Prática continuava, obsequiosamente, a falar da
Salisburia adiantifolia.
(Imperialistas são os que podem ditar regras; os outros, quando muito, são aprendizes.)