30/06/2010

Pútegas

Cytinus hypocistis (L.) L.
«Parece mal não as convidarmos para a festa, mesmo correndo o risco de a coisa resvalar para a brejeirice.» Foi assim que argumentou o Presidente do Conselho de Administração, mal disfarçando uma viciosa atracção pela low life, típica dos endinheirados que levam uma existência ociosa. E mais rasteira não podia ser a vida destas pútegas que nunca se erguem acima do chão: tão agachadas são elas que basta uma folha seca para as ocultar da nossa vista. As flores vistosas, de um amarelo tropical, surgem aconchegadas pelo vermelho alaranjado das brácteas, e podem ser femininas ou masculinas, com as primeiras montando cerco às segundas. As femininas são especiais, pois contêm um suco adstringente que ainda hoje, conforme testemunho aqui registado, é apreciado pelos pastores transmontanos, e que já na época romana era usado como remédio contra a disenteria. Cada cacho de cinco a dez flores brota no topo de uma haste enterrada que tem uns 3 a 7 cm de profundidade e está ligada a um caule igualmente subterrâneo. Desse caule partem ainda os tentáculos que se agarram às raízes das plantas hospedeiras. É que a Cytinus hypocistis é uma planta parasita, alimentando-se exclusivamente de cistáceas dos géneros Cistus e Halimium — o que aliás é corroborado pelo epíteto hypocistis (= debaixo do Cistus). Com um desfasamento de dois meses, encontrámo-la já, em Sicó e no Gerês, parasitando arbustos de ambos os géneros.

Antes dos modernos estudos genéticos que tantas convulsões trouxeram à sistemática botânica, o género Cytinus, formado por plantas de porte tão reduzido, integrava a família Rafflesiaceae, que inclui a asiática Rafflesia arnoldii, famosa por produzir a maior (11 kg) e mais malcheirosa flor do planeta. Tratando-se de duas plantas parasitas, a conexão não deixava de ser mutuamente prestigiosa apesar da disparidade dos tamanhos, mas não resisitiu à constatação de que elas afinal estão evolutivamente muito afastadas uma da outra.

29/06/2010

Arreganhando o dente

Lathraea clandestina L.
Para uma árvore altaneira como um choupo, ou airosa como um salgueiro, ter aos pés uma flor púrpura com este sainete deve justificar a despesa — afinal a bajulação também é companhia. Além disso, esta parasita é sensível à humidade, ajustando a cor como os santos meteorológicos que se vendem em lojas devotas. E, em vez de contarmos as andorinhas nos fios lassos da companhia telefónica, podemos deduzir por estas flores que o Verão já não demora. Úteis, portanto.

A purple toothwort é uma planta perene e carnuda mas sem clorofila, que sobrevive das raízes de árvores na floresta ou à beira de água. A poupança nas folhas (rudimentares, que só se vêem se esgaravatarmos a terra) contrasta com a exuberância das flores: quatro sépalas formam um esbelto cálice de bicos (conseguimos vê-lo até nas flores ainda abotoadas) que envolve a corola tubular erguida até uns 6 cm: as quatro pétalas são de cor lilás, rosa ou branca, três delas mais curtas e unidas num lábio; no capuz, cabem ainda quatro estames e um estilete encurvado (cuja ponta se nota no topo da pétala maior de várias flores da foto à esquerda). É polinizada por abelhas ou moscas, mas a auto-polinização é opção comum. O fruto é uma cápsula recheada de sementes que por vezes explode para as disseminar com maior eficácia.

Revendo a lista de ingredientes, parece que temos tudo para ela ser abundante por cá: moscas, riachos, Primavera. Faltam-nos, contudo, árvores e florestas, que os arboricidas não se cansam de perseguir o deserto. As dentuças das fotos são de um bosque de avelaneiras e amieiros em Wakehurst Place (condado de Sussex, a sul de Londres), onde a planta, originária do continente europeu (Bélgica, França, Itália e Espanha), foi introduzida e se naturalizou.

Lathraea deriva do grego lathraios, escondido, aludindo à existência essencialmente subterrânea desta parasita; clandestina tem o mesmo significado, mas em latim.

28/06/2010

Semana da boa vida

Orobanche rapum-genistae Thuill.
Inauguramos hoje a nossa primeira semana temática, inteiramente dedicada ao parasitismo vegetal. Ainda que não enjeitando uma leitura antropocêntrica, não é nossa intenção fazer um comentário enviesado à actualidade portuguesa; limitar-nos-emos a mostrar que também no reino das plantas o oportunismo e a boa vida andam muitas vezes a par. Entendemos por oportunismo a capacidade de, sem nada lhes dar em troca, usar os outros para sustentar um estilo de vida desafogado e até luxuoso. Mas em tudo isto existem graus: há parasitas que extraem todo o seu sustento do hospedeiro, e outras (ditas hemiparasitas) que, dispondo de folhas verdes, conseguem realizar a fotossíntese, e por isso apenas se servem das outras plantas para lhes chuparem água e nutrientes minerais. Curiosamente, as plantas do primeiro grupo são muitas vezes mais empertigadas e vistosas do que as do segundo. Trabalhando, ainda que pouco, para viver, não espanta que às hemiparasitas falte o brilho aristocrático que só pode advir da mais completa ociosidade.

(Se o leitor carregar na etiqueta Orobanchaceae aí ao fundo, e der também uma espreitadela aqui, verá todas as plantas parasitas que já figuraram neste blogue. Três delas — Parentucellia latifolia, Bartsia trixago e Parentucellia viscosa — são hemiparasitas.)

Para a sessão de abertura convocámos a mais corpulenta representante do seu género; uma planta a quem, pelo seu porte intimidatório (caule grosso, com uns 80 cm de altura), assentaria que nem uma luva o milionário e honorífico cargo de Presidente do Conselho de Administração (CEO em português corrente). Com um modo de vida de fazer inveja aos barões do capitalismo, a Orobanche rapum-genistae rodeia-se de um exército de servos — leguminosas arbustivas dos géneros Genista, Ulex e Cytisus — que lhe satisfazem todos os caprichos e recebem salário zero.

Qualquer plutocracia deixa de o ser quando alarga os privilégios de que goza a um grupo numeroso. A Orobanche rapum-genistae tem uma distribuição esparsa no nosso território, e as populações que forma parecem em regra ser escassas. As da foto moram no concelho de São João da Pesqueira, no talude da estrada que desce para a barragem da Valeira — um dos raros locais do Douro onde se vislumbra como terá sido a biodiversidade da região antes do cultivo intensivo da vinha e do uso desvairado de herbicidas.

26/06/2010

Asas de pedra verde

Anacamptis morio subsp. picta (Loisel.) P. Jacquet & Scappaticci
[sinónimos: Orchis picta Loisel., Orchis morio subsp. picta (Loisel.) K. Richt.]
O epíteto picta (ornada) ajusta-se a tantas orquídeas que uma alteração na designação da das fotos até seria bem-vinda. Mas a substituição por morio (bobo, gracejador) só pode dever-se a desígnio insólito: entendem os taxonomistas que estas plantas, quando em flor, enganam os menos lestos a quem elas parecem pedras no caminho. Elaborado, sem dúvida. Até há pouco pertencia ao género Orchis, pela semelhança com a O. mascula, mas estudos genéticos recentes confirmam que as aparências iludem e que ela está de facto mais próxima da Anacamptis pyramidalis e da A. laxiflora.

Não é orquídea abundante por cá, embora em alguns prados com pouca vegetação, não perturbados pela agricultura, se possam encontrar muitos exemplares juntos, como nos aconteceu perto de São Salvador do Mundo. O seu número tem vindo a decrescer drasticamente nos últimos cinquenta anos em locais onde os antigos pastos permanentes desapareceram para darem lugar a terrenos arados e fertilizados quimicamente, processos que beneficiam outras herbáceas mais competitivas. Como é lenta a colonizar sítios novos, não é exagero vê-la em risco de extinção, e talvez não baste a protecção escrita em directivas ambientais.

Predominantemente europeia, embora haja registo dela no norte de África e no Médio Oriente, pode durar duas dezenas de anos, com florações anuais; há contudo quem assegure que ela é monocárpica. Algumas referências distinguem três variedades: alba, de flores brancas; bartlettii, de flores minúsculas; e churchillii, a mais alta.

É pequenina (não mais de 15 cm em geral), de folhas não manchadas, meia dúzia delas basais e que emergem no início do Inverno, desaparecendo em Junho mal termine a floração, e mais duas ou três a abraçar o caule. As flores exibem alguma variação na cor dominante (violeta, púrpura, rosa ou branco), mas a haste angulosa da inflorescência é sempre púrpura e elas não dispensam o capuz feito por uma sépala e duas pétalas com o interior riscado de verde (que justifica o nome inglês green-winged orchid). O labelo — área central clara manchada de violeta — curva-se para trás, formando uma saia de três lóbulos com bainha crenada. O conjunto é rematado por um esporão robusto e túmido na extremidade livre.

Sem néctar, são polinizadas por abelhas que acordam do período de hibernação, no início da Primavera, atraídas por flores de cores fulgurantes e esquecidas do logro do ano anterior. São as flores mais baixas da inflorescência aquelas a que primeiro acedem, interrompendo amuadas o processo quando se apercebem da fraude. Por isso, uns dias invernosos em Maio favorecem estas orquídeas: quebrada a rotina, as abelhas têm de reaprender as rotas de bem respigar quando o tempo reaquece. Cada fruto contém cerca de 4000 sementes mas, se o negócio das flores corre mal, esta planta reproduz-se vegetativamente por tubérculos adicionais.

25/06/2010

Viola de água

Viola palustris L.


A Serra de Gerês é cruzada por muitos rios e ribeiros, alimentados por inúmeras fontes. A tentação é ir sempre subindo para os cumes áridos, onde se concentram as raridades botânicas, mas enquanto lá não chegamos abriga-nos um arvoredo fresco (carvalhos, bétulas, salgueiros, sanguinhos-de-água) onde se ouve a água cantar. E não poucas vezes é um coro de violas que acompanha o líquido cantante — violas silenciosas que vivem na água e a enriquecem de cor.

Viola é o nome científico das plantas que, aprimoradas por gerações de viveiristas, se metamorfosearam nos amores-perfeitos dos nossos jardins. Mas o género é muito populoso e inclui mais de 400 espécies silvestres na América, Austrália, Ásia e Europa. As cerca de 90 espécies europeias variam no tipo de habitat preferido, no formato das folhas, e no tamanho e coloração das flores, as quais de resto seguem um modelo quase uniforme.

A viola-de-água, encontrada em terrenos paludosos, em charnecas húmidas e em margens de riachos, ocorre por toda a Europa, mas em Portugal, onde não é de modo nenhum uma planta vulgar, a sua presença restringe-se à metade norte do país. A predilecção pela água; as folhas redondas e dotadas de longos pecíolos; as flores com 10 a 15 mm de diâmetro, de um lilás pálido, marcadas por uma venação escura: eis uns quantos traços que denunciam a sua identidade. Menos óbvio à vista desarmada é tratar-se de uma planta perene que faz uso de caules rastejantes ou subterrâneos para formar tapetes de extensão considerável.

24/06/2010

Fogo preso

Geum urbanum L. — frutos
     Sinais de fogo, os homens se despedem,
exaustos e tranquilos, destas cinzas frias.
E o vento que essas cinzas nos dispersa
não é de nós, mas é quem reacende
outros sinais ardendo na distância,
um breve instante, gestos e palavras,
ansiosas brasas que se apagam logo.

Jorge de Sena, Sinais de Fogo (Asa, 1995)

23/06/2010

Couve de São João

Saxifraga spathularis Brot.
As a child, they could not keep me from wells
And old pumps with buckets and windlasses.
I loved the dark drop, the trapped sky, the smells
Of waterweed, fungus and dank moss.
(...)
Now, to pry into roots, to finger slime,

To stare, big-eyed Narcissus, into some spring
Is beneath all adult dignity. I rhyme
To see myself, to set the darkness echoing.

Seamus Heaney, Personal Helicon (Death of a Naturalist, 1966)

Num mundo que varie de modo contínuo — em sentido matemático ou outro mais impreciso que o leitor intua — não se espera que uma espécie evite torrões que entremeiem locais onde é espontânea, contradizendo de modo flagrante o que se poderia enunciar como o Teorema da Flor Intermédia. Mas essa é, como já contámos, a opção da urze-minhota-irlandesa, planta silvestre numa faixa que une o oeste de França ao norte de Espanha e noroeste de Portugal, e também na Irlanda mas não na Grã-Bretanha. O outro exemplo que desafia a lógica é a saxífraga da foto que, sendo natural do noroeste da Península Ibérica e da Irlanda — onde a conhecem como St Patrick's-cabbage —, não ocorre nos países intermédios. (A London pride é outra saxífraga, a S. × urbium D.A. Webb, híbrido entre a S. umbrosa L. e a S. spathularis.) Se confiássemos no testemunho botânico sobre o passado comum, diríamos que a Irlanda é gémea do continente mas a Grã-Bretanha tem ascendência diversa.

A saxífraga-de-folhas-em-colher, de margens translúcidas e recortadas em ziguezague, é uma herbácea perene, pequena mas vistosa na época de floração (de Maio a Agosto): as flores com simetria radiada são brancas e de pedúnculo frágil mas alto, com manchas amarelas e pintas cor-de-rosa nas pétalas. As folhas formam uma roseta basal mas algumas podem acompanhar até meia distância as flores na haste. Aprecia rochas (que lhe dão o nome genérico, do latim saxum, rocha, e frango, quebrar) húmidas de montanha, comuns nos prados do Gerês.

O género Saxifraga é o de mais vasta prole na família Saxifragaceae, contendo cerca de quatrocentas espécies, a maioria do hemisfério norte de clima temperado. Redescoberta pela genética recente, a família anda em mudanças taxonómicas, absorvendo outras famílias, como a Crassulaceae, para compensar a perda dos géneros Philadelphus, Deutzia, Hydrangea e Parnassia.

22/06/2010

A cura amarela

Reseda luteola L.
De todas as cores do espectro cromático, julgar-se-ia ser a cor verde a mais fácil de reproduzir, por ser aquela que mais abunda na natureza. Tingir um tecido com a cor predilecta de Robin dos Bosques ou reproduzir na tela do pintor os variados tons da folhagem primaveril deveriam ser tarefas simples. Bastaria triturar e cozer grandes molhos dessa omnipresente verdura, e aplicar a pasta resultante às superfícies que quiséssemos colorir. Acontece que nem na natureza as cores são estáveis: as folhas amarelecem antes de cair, e as flores são de uma graça efémera, depressa tocada pela decadência. Reacções químicas imponderáveis ditam a evolução das tonalidades. O verde e as demais cores não se deixam agarrar facilmente.

A Reseda luteola, conhecida em português como lírio-dos-tintureiros, é uma erva peralta (1,2 m de altura), espontânea em Portugal e na Europa, que foi usada até ao início do século XX como corante amarelo para tecidos. Para se conseguir o verde, esse amarelo era combinado com o azul-anil extraído de uma planta da família das crucíferas: o pastel (Isatis tintoria). Foi assim necessário ao homem forçar uma aliança entre plantas evolutivamente muito distantes para reproduzir aquilo que é trivial na natureza.

A utilidade da R. luteola não se ficava pela tinturaria, pois as suas sementes fornecem um óleo outrora usado em iluminação. Não espanta por isso que ela tivesse sido amplamente cultivada noutras eras, e que com isso se tenha disseminado muito para além da sua região de origem. Agora que a modernidade faz com que lhe dispensemos os préstimos, há mesmo — nos EUA, por exemplo — quem a acuse de ser daninha.

Planta de terrenos baldios e de margens de caminhos, em Portugal a R. luteola encontra-se esporadicamente de norte a sul do território. Tem um interessante ciclo de vida bienal: no primeiro ano as suas folhas estreitas, de margens por vezes onduladas, dispõem-se em roseta basal; no ano seguinte, as mesmas folhas distribuem-se ao longo da haste florífera que só então é lançada.

21/06/2010

Da erudição popular

Stachys germanica subsp. lusitanica (Hoffmanns. & Link) P. Cout.
Já aqui referimos de passagem o extraordinário nome que, segundo algumas fontes, o nosso povo terá congeminado para esta planta: betónica-da-Alemanha (subespécie-de-Portugal). Por muito inconcebível que nos pareça tal atribuição, o nome merece ser dissecado. Para começar, a que vem o termo betónica? O caso é que certas plantas do género Stachys, entre elas a muito comum S. officinalis, já foram incluídas num género autónomo, chamado Betonica, posteriormente absorvido pelo género Stachys. A palavra betónica terá origem celta, e referir-se-à à suposta eficácia da planta em repelir bruxedos e assombrações.

O resto da alegada designação vernácula, por ser tradução literal do nome científico, não suscita grandes explicações. Há que ressalvar, porém, que a Stachys germanica anda longe de ser um exclusivo teutónico, visto que ocorre em quase toda a Europa e também no norte de África. De igual modo, a subespécie lusitanica está presente não apenas em Portugal, mas também em Espanha e em Marrocos. Fica o povo avisado de que, quando quiser inventar nomes portugueses para as plantas, é melhor não tomar à letra as designações científicas, sobretudo quando elas são ditadas por impulsos nacionalistas.

Já outras plantas do género Stachys, como a S. palustris, a S. sylvatica e a S. arvensis, mereceram um nome de índole reconhecivelmente popular, que também não assentaria mal à S. germanica: rabo-de-raposa. Talvez ele se refira à forma da inflorescência ou, mais provavelmente, ao atraente carácter felpudo destas plantas, que tanta vontade dá de lhes passar a mão pelo pêlo. Foi essa qualidade que fez da exótica S. byzantina, a conhecida orelha-de-cordeiro ou orelha-de-lebre, uma planta tão apreciada em jardinagem.

A S. germanica é espontânea no centro e sul de Portugal, em terrenos pedregosos ou baldios e em orlas de bosques, e floresce de Abril a Agosto. Atinge uns 80 cm de altura e parece ser atraente para abelhas, borboletas e besouros, que entre si cooperam nos esforços de polinização.

20/06/2010


[Clique no cartaz para mais informações.]

19/06/2010

O fisco na província

Herniaria ciliolata subsp. robusta Chaudhri


Novembro 1871.


Em Abrantes — segundo informações de um amigo nosso, jurisconsulto ilustre — sucede este estranho caso:

Pela lei de 10 de Julho de 1843 só são obrigados ao imposto do pescado os pescadores que exercem a sua indústria em água salgada — e naquela parte dos rios somente até onde cheguem as marés vivas do ano.

Ora em Abrantes entende-se de um modo largamente torpe esta acção do fisco sobre a pesca. Vinte homens, extremamente miseráveis, que pescavam no rio — onde não podiam chegar marés vivas — e alguns mesmos que de todo não pescavam, foram obrigados a pagar o imposto do pescado! Uns não se defenderam desta extorsão por pobríssimos: outros não se defenderam em virtude da ideia popular na província — de que, com o fisco, paga-se sempre e nunca se questiona, porque naturalmente depois é-se obrigado a pagar mais.

Isto constitui puramente, numa linguagem talvez plebeia, mas exacta, um roubo. Obrigar um pescador do rio a pagar o imposto do pescador do mar, é (além de uma confusão deplorável do velho e respeitável Oceano com qualquer fio de água que murmura e foge) um sistema extremamente parecido com o que empregam as pessoas estimáveis que nos metem a mão na algibeira e levam para casa o nosso lenço. Nós não desejamos embaraçar os negócios fiscais. Somente nos parece que impor a qualquer cidadão, mesmo quando não pesque, o imposto do pescado, é um expediente sumamente complicado. E o fisco, que deve ser parcimonioso do seu tempo e dos seus recursos, tem um meio mais singelo e mais expedito, que consiste em se aproximar de qualquer, e gritar-lhe pondo-lhe uma carabina ao peito:
— Passe para cá o que leva na algibeira!

Estes processos do fisco, que se repetem arbitrariamente em toda a província e que são sem dúvida um dos recursos do Estado, parecem-nos imprudentes — porque estabelecem confusão. Há por essas estradas isoladas, em certas vielas de cidades mal policiadas, nos pinheirais, nos sítios ermos e amados da sombra, uma espécie de cidadãos, de resto singularmente diligentes, que se deram por missão suspender por um momento as pessoas que passam, e pela maneira mais delicada tirar-lhes o dinheiro, os relógios e outras insignificâncias. Por seu lado o fisco costuma deter os cidadãos, e sob qualquer pretexto (como por exemplo no caso de Abrantes, por serem pescadores de água salgada) exigir-lhes uma quantia e entregar-lhes um recibo. Estes dois processos, o do fisco e o dos senhores ladrões, oferecem uma tal similitude que pedimos ao Governo que distinga por qualquer sinal (um uniforme por exemplo), estas duas estimáveis profissões; para que não suceda que os cidadãos se equivoquem e que vão às vezes lançar a perturbação na ordem social, confundindo o facínora e o funcionário — apitando contra o fisco e pedindo humildemente recibo ao salteador!

Eça de Queiroz, O fisco na província (Uma Campanha Alegre, vol. I, cap. XLVIII)

18/06/2010

Erva de pintar taludes

Oenothera biennis L.

Oenothera glazioviana Micheli in Mart.
aqui explicámos como as auto-estradas podem ser profícuo campo de estudo para quem se interesse por botânica, mas a lição ficaria incompleta se não mostrássemos uma das plantas mais frequentes nas bermas e taludes das modernas grandes vias. O que acontece é que o esforço ultra-higienista de limpar tal vegetação tem apenas como resultado substituir umas plantas por outras. As plantas indígenas ecologicamente mais interessantes cedem lugar às plantas ruderais, mais capazes de sobreviver aos sobressaltos das limpezas periódicas. Muitas delas foram introduzidas como ornamentais e, tendo-se naturalizado no nosso território, chegam mesmo a comportar-se como invasoras, prejudicando seriamente a vegetação nativa.

Por esta altura é vulgar observarem-se grandes extensões de talude pintadas de amarelo. Não o amarelo vivo dos malmequeres rasteiros, mas o amarelo mais pálido de umas grandes flores que parecem lenços amarrotados pendurados em cabides. Quem fornece tal entretenimento visual são plantas norte-americanas do género Oenothera. Foram muito estimadas na jardinagem europeia antes de resolverem encarregar-se elas mesmas da sua propagação. Aliás, à mesma família Onagraceae pertencem os apreciadíssimos e também americanos brincos-de-princesa.

As flores de Oenothera têm o hábito de só abrir pelo fim da tarde, e daí esse ar desgrenhado, quase pesaroso, que costumam apresentar. O nome que se lhes dá em inglês é evening primrose, traduzido aproximadamente por prímula-da-tarde. As duas espécies que exibimos atingem porte muito respeitável — cerca de metro e meio de altura — e estão amplamente disseminadas em Portugal. A Oenothera glazioviana é talvez a mais comum das duas, e distingue-se pelas flores maiores (8 cm de diâmetro contra 5) e, sobretudo, pelos cálices vermelhos (os da Oenothera biennis são verdes).

Outro pormenor em que se diferenciam é a origem. A O. biennis é nativa da metade leste dos EUA, enquanto que a O. glazioviana não o é de parte nenhuma: terá surgido por hibridação nalgum jardim ou viveiro europeu, e supõe-se que tenha sido introduzida no comércio hortícola em meados do século XIX. Por ironia do destino, foi igualmente comercializada na América do Norte; e, qual descendente de emigrantes que por um impulso atávico se instala na pátria dos seus antepassados, acabou também lá por se naturalizar.

17/06/2010

Orquídea baunilhada

Orchis coriophora subsp. fragrans (Pollini) Sudre [= Orchis fragrans Pollini]
A baunilha é um aromatizante produzido a partir dos frutos de orquídeas tropicais perfumadas do género Vanilla. A Europa tê-la-á conhecido no século XVI, trazida pela mão espanhola que também transportou o chocolate da América Central. Como é frequente nesta família de plantas, a relação com as abelhas polinizadoras e o tipo de solo é tão estreita e exclusiva que raramente elas se adaptam a outros habitats. Por isso o cultivo em grande escala fora do México da baunilha (e do chocolate) teve de esperar por métodos eficientes de polinização manual em flores que duram um dia, ou menos. Contudo, na ausência do fungo adequado, as sementes não germinam; nestas condições, a propagação da planta faz-se vegetativamente.

As vagens são escuras quando maduras (estado que consome cerca de dez meses para se atingir) e rescendem um aroma doce e intenso. Depois de sujeitas a um processo laborioso de secagem e conservação, podem ser usadas em culinária, dando às iguarias uma cor acastanhada. É um ingrediente caro — de preço próximo do do açafrão —, e por isso quase todos os sorvetes, bolachas ou iogurtes ditos de baunilha recorrem a substitutos sintéticos.

Sem clima e solo apropriados para criar a orquídea-baunilha, apreciamos genuinamente a das fotos, espontânea em Portugal, apesar de ela ser pequenina (10-20 cm) e discreta: é pouco abundante, exige espaços soalheiros com pouca vegetação, mas agradece os mimos com um esporão cheio de néctar e perfume de baunilha. Características que levaram alguns botânicos a considerá-la como mais primitiva do que outras espécies de Orchis — afinal gentileza e afabilidade são virtudes de outros tempos. Mas não, a análise genética atribui-lhe mesmo algum avanço evolutivo dentro do género.

16/06/2010

Jacinto das uvas

Muscari neglectum Guss. ex Ten.
Eis uma planta que gosta de atrair visitantes para depois lhes barrar a entrada. É como daquelas casas de diversão nocturna onde há néons multicoloridos à porta mas se insiste numa triagem rigorosa dos frequentadores. Aqui são as flores no topo da espiga, brilhantes de um azul eléctrico, a servirem de engodo aos insectos — os quais, se não forem da medida certa, são duplamente ludibriados. Em primeiro lugar, porque essas flores tão atraentes são estéreis; em segundo, porque as verdadeiras flores — escuras, quase lutuosas — têm aberturas tão estreitas que só dão passagem aos bichos de menor calibre. Assim, em vez de serem o traje ou o apelido a franquear o acesso, é só o tamanho que é tido em conta, o que talvez seja mais democrático. Estivesse bem visível o anúncio proibida a entrada a maiores de 2 mm, e as abelhas já não gastariam o seu precioso tempo com flores tão peneirentas. Não nos querem, é? Pois que passem muito bem. Não falta por aí quem nos dê valor. E lá voam elas para longe, zumbindo de despeito.

O acesso condicionado e a presença de flores só de enfeite são imagem de marca do género Muscari, de que já antes mostrámos dois exemplos. Das trinta espécies que o constituem, espalhadas pela região mediterrânica e pelo sudoeste asiático, apenas duas (M. neglectum e M. comosum) são espontâneas em Portugal. O jacinto-das-uvas (a um olhar míope as flores do M. neglectum parecem um cacho de uvas) é mais comum no centro-oeste do país, entre Leiria e Lisboa, mas ocorre também na bacia do Douro, na costa vicentina e no Algarve. Cada planta tem até seis folhas lineares sulcadas, quase cilíndricas, dispostas em tufo, e uma única haste floral de 10 a 30 cm de altura. As flores surgem com mais abundância logo em Março, e esporadicamente até ao fim de Maio.

15/06/2010

Dia com árvore

Amelanchier ovalis Medik.


Acusados de negligenciar as árvores, dedicando dias e noites ao grande mundo das plantas pequeninas, trazemos hoje uma planta lenhosa para entremear os nossos devaneios. Vimos de corda ao pescoço porque só agora a descobrimos e ela — que é nativa de matos pouco densos à beira de água ou ladeiras rochosas de montanhas no centro e sul da Europa, região mediterrânica e norte de África — tem-se vindo a tornar rara na Península Ibérica, constando da lista madrilena de espécies da flora silvestre ameaçada, com o estatuto de vulnerável.

De longe, os curtos ramalhetes corimbiformes de flores lembram outra rosácea, a sorveira (Sorbus sp.). As flores, cujos botões levam um ano a desabrochar, têm um cálice de cinco sépalas de permeio com cinco pétalas estreitas, longas e espaçadas entre si; ao centro, nota-se uma dezena de estames. É arbusto de folha caduca, alterna, simples e oval, de margens finamente dentadas, cor-de-rosa e de face inferior pubescente quando jovem, púrpura no Outono. Os frutos são carnudos e de sabor doce (crê-se que o nome do género deriva de mel), negros e perfumados quando maduros (no fim do Verão), coroados pelo ex-cálice da flor; usam-se em compotas e bolos ou (na falta de gente que lhes dê uso) são simplesmente comidos pelos pássaros.

A planta tem reputação medicinal e a madeira é apreciada como combustível. Em inglês chamam-lhe snowy mespilus, em espanhol tratam-na por guillomo, em euskera por arangurbea; por cá não há registo de nome vernacular (no Portugal Botânico de A a Z atamancaram-lhe o postiço nome de amelanqueiro) e quando a encontrámos no Gerês não havia pastores por perto para nos elucidarem.

14/06/2010

Couve fora da panela

Crambe hispanica L.
Quando encontrarmos o primeiro restaurante que anuncie sopa de couve-bastarda na ementa, para alívio dos que já se fartaram da couve-lombarda, então acreditaremos que certos nomes de plantas, ditos populares, têm realmente origem popular. Até lá, continuaremos a achar que eles são produto da imaginação de botânicos bem intencionados, que gostariam de acreditar que o nosso povo trata as plantas com familiaridade, quando na verdade as ignora. E esse povo versado em morfologia vegetal que existe na imaginação dos cientistas é de tal modo capaz de apreciar as subtis relações entre espécies que até inventou o polissilábico nome de Betónica-da-Alemanha (subespécie-de-Portugal) para uma planta da família das labiadas.

Falávamos porém de couves. Apesar do intróito culinário, e do facto de o nome genérico Crambe ser termo grego para couve, ignoramos se a C. hispanica (a tal couve-bastarda) se pode ou não comer. Já uma sua congénere, a C. maritima (seakale em inglês), ausente da Península Ibérica mas comum nas zonas costeiras do norte da Europa, é ingrediente usual em saladas. Mas, ainda que integrem a mesma família botânica, essas plantas nada têm a ver com as honestíssimas couves, pertencentes ao género Brassica, que consumimos no dia-a-dia.

Única espécie do seu género presente em Portugal, a C. hispanica é uma planta anual com uma distribuição descontínua no nosso país: ocorre no Algarve, na Estremadura, nas Beiras e no Alto Douro. Consta que há marcada diferença entre as populações nortenhas e as meridionais: as primeiras são geralmente glabras, e as segundas, mais típicas das regiões litorais, estão cobertas de pêlo. Há mesmo quem defenda que a variante depilada constitui uma subespécie — Crambe hispanica subsp. glabrata —, mas essa autonomização não foi validada pela equipa da Flora Ibérica.

A couve-bastarda, que pode atingir 1,2 m de altura, apresenta uma ramificação esparsa, com ramos longos e delgados. As flores são brancas e pequeninas, com cerca de 7 mm de diâmetro, mas o que a planta tem de mais distintivo é o fruto esférico, de 4 ou 5 mm, assente num cilindro estreito rematado por um anel.

12/06/2010

O insecto vê-se ao espelho

Ophrys vernixia Brot.
Há duas formas desta orquídea que quase se confundem, a O. speculum Link (ou O. ciliata Bivona-Bernardi) e a da foto. Apreciam ambas solos calcários — mas a O. speculum abunda no sul da Europa e região mediterrânica, enquanto que a O. vernixia é ibérica e rara, restringindo-se ao centro de Portugal, Algarve e Andaluzia. Para fortalecer a nossa perplexidade, têm uma época de floração conjunta (Março a Maio). Mas não são gémeas, há diferenças bastantes para não errarmos a identificação. Para que as colija, compare a nossa foto com a da O. speculum que surripiámos ao Insectos a florir.

A mais significativa é a cor da penugem no labelo (azulado e envernizado, com um bordo laranja glabro, para imitar o dorso de abelha) e a das pétalas (as orelhinhas, junto aos dois pseudo-olhos) que na O. vernixia são mais claras do que na O. speculum. Além disso, na O. vernixia o labelo tem uma curvatura mais acentuada e divide-se em dois lóbulos laterais (como dois bracinhos) que são mais compridos, estreitos mas não achatados, torcidos a meio e abertos. O que não se consegue ver nas fotos, mesmo pondo-as lado a lado, é que a O. vernixia é um pouco mais alta e esguia.

As duas hibridam ocasionalmente, e há exemplares que não seguem exactamente o figurino da sua espécie; por isso a realidade nem sempre se conforma a este arrazoado. Mas em tais casos, leitor atento, não deixe de registar o evento porque é pouco frequente.

11/06/2010

Três cores em convulsão

Convolvulus tricolor L.
Esta planta já veio ataviada para fazer do jardim a sua casa de eleição. Uma tão caprichosa combinação de cores em planta não tropical costuma ser o resultado de hibridações e apuramentos sucessivos praticados por pacientes viveiristas. Mas a corriola-das-três-cores, planta mediterrânica que ocorre de Portugal até à Grécia e ainda no norte de África, já é assim vistosa de sua própria natureza. E, se ao azul-branco-amarelo das flores adicionarmos o verde das folhas e o avermelhado das hastes, são cinco as cores de que ela se veste: quase um arco-íris a rasar o chão.

Aqui vão os dados biográficos que as fotos não revelam: a Convolvulus tricolor é perene mas de vida curta; tem um hábito rastejante e não costuma ultrapassar os 60 cm de altura; cada flor (com cerca de 4 cm de diâmetro) dura um dia só, mas a floração é abundante e prolonga-se de Março a Junho; a sua distribuição em Portugal parece cingir-se a sebes, vinhas e pomares do centro e do sul.

Foi num olival a caminho da Fórnea, na Serra dos Candeeiros, que a encontrámos. Trata-se de uma exploração tradicional: as árvores vivem com a água que cai do céu e as plantas herbáceas não são inimigas a exterminar. Coisa muito diferente são os olivais de regadio para produção intensiva que se têm vindo a multiplicar no Alentejo, e que são talvez, como aqui se pode ler, a ameaça mais séria à rica biodiversidade da região.

10/06/2010

Rodou três vezes

Convolvulus fernandesii P. Silva & Teles

.....Endemismo lusitano, exclusivo da Serra da Arrábida.


Arribas do Cabo Espichel

09/06/2010

Não é para pastar

Asphodelus lusitanicus Cout.
Um dos enigmas da flora nacional é a profusão de abróteas (género Asphodelus) em terrenos mais ou menos montanhosos onde há muito gado a pastar. Tirando estas herbáceas altaneiras (podem exceder o metro e meio de altura), fica tudo aparado à escovinha pela mastigação incansável de cabras, ovelhas e vacas. Claro que o enigma não é de grande calibre, nem exige penetração de espírito para ser desvendado. A opinião unânime da confraria herbívora é que as abróteas não são prato que se apresente. Como quase toda a concorrência é comestível, ficam elas sozinhas em campo e podem espalhar-se à vontade. Fazem-no de uma ponta à outra do nosso território, desde a serras do norte às planícies do Alentejo. E, adaptando-se bem a solos depauperados, conseguem mesmo, como sucede em Valongo, dar uma pincelada de cor às orlas dos eucaliptais.

O Asphodelus lusitanicus, que é o mais comum do seu género no noroeste do país, apresenta-se frequentemente ramificado: a haste central termina com uma inflorescência em forma de espiga, mas pode haver duas ou três inflorescências laterais mais curtas (visíveis na foto da direita). Outro traço distintivo é que a membrana acastanhada (ou bráctea) na base de cada flor é quase tão longa como o pedúnculo (no A. aestivus ela é bastante mais curta, e no A. fistolosus é igualmente diminuta).

O Asphodelus lusitanicus é um endemismo ibérico, presente sobretudo na metade norte de Portugal e na Galiza.

08/06/2010

Brava tulipa

Tulipa sylvestris subsp. australis (Link) Pamp.
Num dos contos de A derrocada da Baliverna, de Dino Buzzati (tradução de Margarida Periquito para a Cavalo de Ferro em 2008), há três satélites — um que parece um lápis prateado, outro em forma de ovo cor de laranja e um pintado com riscas amarelas e pretas — enviados para o espaço entre 1955 e 1958 e que, em vez de funcionarem como previsto, levaram as suas tripulações para um lugar onde ficaram penduradas a girar em silêncio. No lançamento, milhares de pessoas esperançadas ergueram o nariz para a atmosfera; agora só alguns poucos espreitam, pela surdina, os três pontinhos no céu, quando a luz e a hora o permitem.

[Nas cidades iluminadas, mesmo quando não é época natalícia, isso não é possível. Mas na serra da Arrábida, área cársica que é um paraíso para muitas plantas, pode até ver-se à noite a Via Láctea.]

Rói em todos a indignação pelo que aconteceu; e deste modo protestam «pela descoberta que lhes mudou a vida». Depois de uma largada perfeita, de uma trajectória impecável e de uma viagem tranquila, os satélites selaram-se inertes, com uma última comunicação enigmática: «Que música estranha... Raios, mas nós aqui viemos parar ao...!»

[Onde? Fosse a um terreno inculto e pedregoso ou a uma mata de montanha, poderiam avistar esta tulipa silvestre resistindo às estiagens e florindo de Março a Junho. As flores são em geral solitárias, sem estilete e com estames penugentos na base. As pétalas amarelas nascem por vezes com listas verdes ou vermelhas por fora. Distingue-se da espécie T. sylvestris L. por ter só duas folhas — lineares e na base de uma haste glabra —, ostentar flores menores e, em geral, não ir além dos 30 cm de altura.]

Não demorou a descobrir-se o significado das mensagens espantadas. «De maneira que hoje ninguém duvida — excepto alguns poucos casmurros irredutíveis que gostariam que o orgulho humano não cedesse — ninguém duvida já de que os três projécteis tenham sido atingidos pelo som a que a nossa pobre alma não resiste.» Os tripulantes foram parar ao céu.

Seguiram-se dias de desorientação, ira e polémica. «Que vulgaridade — disseram os cientistas, insurgindo-se contra a absurda hipótese —, já não estamos na Idade Média! Que vergonha!, disseram os teólogos, ofendidos com a ideia temerária de o reino dos Céus se encontrar assim próximo, aqui suspenso por cima de nós, de tal modo que, levantando a cabeça, quase chocamos com ele.» O planeta parece ter minguado com a casa dos anjos nos subúrbios. E, cheios de razão, ficámos ofendidos: o paraíso é afinal a nossa última fronteira, que nos barra o caminho e nos aprisiona.

[Na Europa mediterrânica, Portugal, Suíça e Bulgária partihamos a cela com esta flor. Que pesado castigo.]

07/06/2010

A cidade com serras

Geum urbanum L.
A acreditar pelo nome que o pai da taxonomia moderna atribuiu à erva-benta (Geum urbanum), as cidades do tempo de Lineu (1707–1778) deveriam ser radicalmente diferentes daquelas em que vivemos hoje. Mesmo as famosas capitais seriam um misto de cidade e de campo, com tantas árvores que as ruas se confundiriam com trilhos na floresta. Eça de Queirós (1845-1900), se tivesse nascido século e meio antes, não se sentiria compelido a romancear o inexistente contraste entre a cidade e as serras; e tanto lhe faria viver os seus últimos anos em Paris como em Tormes.

A menos, claro, que Lineu se tenha enganado (acontece a todos, excepto a um conhecido ex-primeiro ministro português), e o nome em que apoiámos tão fantasiosa dedução seja simplesmente absurdo. Geum urbanum: o epíteto não tem outra interpretação possível, urbanum significa relativo às cidades. Sucede que a erva-benta (herb bennet ou wood avens em inglês, benoîte commune em francês) viceja em lugares frescos como sebes ou bosques densos, e não propriamente em artérias urbanas ou em jardins residenciais. Talvez avance a medo até às portas da cidade, abrigada em algum arvoredo que sobrou de tempos de antanho. Mas em Portugal, onde a planta é bem menos comum do que no resto da Europa, isso parece-nos improvável. E, tendo-la nós apenas encontrado na Mata da Margaraça, esse enclave nortenho no centro do país, não será arriscado concluir que ela prefere o regime atlântico ao mediterrânico.

Aqui vai o retrato dela em duas penadas. É uma planta perene, penugenta, com uns 60 cm de altura, folhas basais pinadas semelhantes à de outras congéneres suas, e folhas superiores simples com três lobos. As flores, que surgem de Maio a Julho na extremidade de hastes esguias, têm de 1 a 2 cm de diâmetro, e exibem cinco pétalas bem separadas. Os frutos, semelhantes a ouriços, servem-se dos espinhos curvados em gancho para apanharem boleia de coelhos, javalis e outros peludos habitantes da floresta, que assim contribuem involutariamente para disseminar a planta.