Russell Square, Bloomsbury, Londres
They perished on the scaffold: Williams, as I have said, by his own hand;
and, in obedience to the law as it then stood, he was buried in the centre
of a quadrivium, or conflux of four roads (in this case four streets), with
a stake driven through his heart. And over him drives for ever the uproar
of unresting London!
Thomas de Quincey
On Murder Considered as one of the Fine Arts (1827)
A velocidade e o ruído não começaram com o automóvel, e são mesmo anteriores à invenção da máquina a vapor. Thomas de Quincey (1785–1859) fala-nos de uma Londres incessante e tumultuosa num tempo em que só havia veículos de tracção animal. O mesmo autor, em
The English Mail-Coach (1849), descreve como autênticos bólides as carruagens a cavalo que, no primeiro quartel do século XIX, combinavam serviço postal com transporte de passageiros. Quando o cocheiro adormecia, como adormecem hoje ao volante os motoristas de longo curso, as consequências só não eram tão trágicas porque os cavalos à rédea solta sabiam manter-se na estrada. De Quincey, relatando uma quase colisão que ele próprio, como único passageiro desperto num veículo desgovernado, conseguiu evitar com um grito de alarme, dá-nos uma imagem mortífera da velocidade raras vezes igualada nesta nossa época de aeroportos e auto-estradas. Talvez porque o intervalo entre a consciência do perigo e a sua consumação esteja hoje reduzido a zero.
O trânsito em Londres nunca pára. Já não será a chiadeira dissonante das carroças e dos coches, nem o matraquear das patas dos cavalos, mas um ruído mais manso, ronronante, que sobe e desce como o marulhar das ondas. Ruth Rendell, em
Thirteen Steps Down (2004), compara o rumor da
Westway, um grande braço de auto-estrada que sobrevoa Notting Hill, à agitação do mar, mais calmo de marés à noite mas nunca silencioso.
Quando no hotel me foi dado escolher entre um quarto virado para a praça e outro para as traseiras, não tive dúvidas em optar pelo primeiro. Afinal, além de ficar a saber como é Russell Square vista pelos pássaros, ainda iria ter, a embalar-me o sono, o tal
uproar of unresting London celebrado por De Quincey, em versão revista e actualizada para o século XXI. A caixilharia frágil, incapaz de atenuar o ruído, assegurou-me pela noite dentro a plena fruição desse concerto motorizado, com os veículos ligeiros a soarem as notas agudas sobre o baixo trepidante dos autocarros. O registo fotográfico, porém, foi prejudicado pelo estreito ângulo de abertura da janela, e só consegui captar um dos cantos da praça. Daí o bónus de uma foto tirada ao nível do chão.
Bloombsbury e South Kensington são dois dos pedaços de Londres mais aconchegantes, com praças arborizadas como refúgios de sossego que o trânsito automóvel, tantas vezes intenso, não chega verdadeiramente a perturbar. Bloomsbury, menos requintada, é também a mais democrática: as praças e os jardins estão abertos a toda a gente, e não apenas, como sucede em South Kensington e em Chelsea, aos moradores do quarteirão. Russell Square, a dois passos do Museu Britânico e da Universidade de Londres (
University College), é tão só a maior de uma meia dúzia de praças ajardinadas que se espalham num raio de quinhentos metros: Bedford Square, Tavistock Square, Gordon Square, Queen Square, Bloomsbury Square. Todas elas estão dominadas por enormes plátanos e colonizadas por esquilos atrevidos, dependentes da (muita) fauna humana para a sua alimentação.
Numa tarde de sábado em Agosto, fui ao cinema Renoir (no
Brunswick Centre) ver
Home, filme belga que, por inadvertência, deixara fugir aquando da sua exibição no Porto. Com uma auto-estrada a dez metros de casa, há uma família, com Isabelle Huppert no papel de mãe, que quase se suicida ao tentar a todo o custo isolar-se do trânsito atroador. Se o enredo encoraja leituras metafóricas óbvias, o filme não deixa de ser uma lição prática de como o ruído e o tumulto modernos ultrapassam, em capacidade de enlouquecimento, tudo quanto foi testemunhado por Thomas de Quincey.