Museu com árvores
Nunca é de mais espremer as boas notícias para equilibrar a amargura das más, mas a verdade é que esta de hoje parece uma reedição, sem tirar nem pôr, de uma outra que aqui divulgámos em Junho de 2006: a histórica Quinta de Villar d'Allen foi classificada como imóvel de interesse público. Na verdade só no passado dia 11 de Janeiro, e não em 2006, é que a classificação do conjunto formado pela casa e pela quinta foi publicada em Diário da República; no período entretanto decorrido a Quinta de Villar d'Allen estava, não propriamente classificada, mas sim em «vias de classificação».
Para assinalar a feliz ocorrência, o caderno Cidades do jornal Público de hoje, domingo, publica uma reportagem, da autoria de Abel Coentrão, onde a importância patrimonial e histórica da quinta é sintetizada de forma exemplar. O mesmo jornalista visitou outras três quintas históricas do Porto — Prelada, Serralves e Jardim Botânico — e sobre elas publicou, no mesmo caderno, três textos breves mas muito informativos (acessíveis só na versão em papel ou em PDF).
Transcrevemos de seguida na íntegra a reportagem do Público sobre Villar d'Allen.
Esta quinta é um museu da cidade... que o Porto não tem
por Abel Coentrão
A arquitecta paisagista Teresa Andresen vê-a como o museu da cidade que o Porto não tem. E entrando nesse lugar, que até já está para lá dessas fronteiras que são a VCI e a Circunvalação, multiplicam-se justificações para que a directora do Jardim Botânico do Porto assim fale sobre a casa e a Quinta de Villar D'Allen, cujo longo processo de classificação como imóvel de interesse público terminou este mês. É que nesta propriedade particular — nas mãos dos herdeiros do fundador, o comerciante inglês João Allen —, sobreviveram aos apetites do tempo marcas de um período relevante da história do Porto, o século XIX.
Villar d'Allen é o Porto dos ingleses, de cuja comunidade João Allen era figura de destaque, tendo participado na fundação da Associação Comercial e do Banco Comercial do Porto. É o Porto liberal como a Constituição assinada por D. João VI em 1822, com a pena guardada nesta mesma casa. É também o Porto romântico, visível no desenho dos jardins da quinta, aumentados e desenvolvidos pelo filho Alfredo. E culto, como o espírito coleccionista que, entre obras de arte, plantas, rochas, moedas e outros objectos estranhos aos olhos da geração da internet, constituiu um espólio que encheu o Museu João Allen (1836-1848), pioneiro no país na abertura ao público de uma colecção privada, na Rua da Restauração.
O vereador dos Jardins
O Museu João Allen viria a estar na origem, com o Museu Portuense, do Museu Municipal do Porto, «engolido» já em 1940, pelo Museu Nacional Soares dos Reis. Disperso o Espólio pelo Palácio dos Carrancas e outras instituições da cidade, a casa e a quinta sobram como marca, organizada, dos dias de João Allen e herdeiros, entre os quais há a destacar, para a história do século XIX portuense, o filho Alfredo, primeiro Visconde de Villar D'Allen, que colocou ao serviço da cidade e do país a mesma formação agronómica que o levara a completar e expandir a quinta comprada pelo pai em 1839.
Na Câmara do Porto, Alfredo Allen foi entre 1866-1869 vereador dos Jardins, pelouro que, sinal dos tempos, se extinguiu entretanto da taxinomia autárquica. Ficou associado à construção dos Jardins do Palácio de Cristal e da Cordoaria. Com Alfredo Allen, o burgo ganhou muitas árvores venerandas, como a araucária da Austrália. Com os seus 130 anos, 40 metros de altura e 3,6 metros de perímetro, esta araucária, assinala Paulo Ventura Araújo, o co-autor de À sombra de Árvores com História que na quinta-feira acompanhou o Cidades numa visita a Villar D'Allen, figura na lista de árvores de classificadas do Porto.
Na quinta, seja na mata onde uma rara Agathis — outra australiana — se destaca, ou no jardim romântico, com os seus caminhos sinuosos e o rumor sempre presente da água, as marcas de Alfredo Allen são bem patentes. Foi ele que ali mandou plantar uma impressionante colecção de palmeiras e outras árvores, entre elas outra araucária como a da Cordoaria, que Paulo Araújo ajuda a identificar pelo nome próprio. Depois chega Isaura, esposa de um dos herdeiros da propriedade, José Alberto Allen, e responsável, com ele, pelo viveiro comercial que aqui funciona. E por mais de uma hora todas as atenções se viram para outro dos traços dominantes da história e dos lugares portuenses dos Allen: as camélias.
Presentes na paisagem dos Allen como na do Porto — numa botânica demonstração da importância da família e de viveiristas como Marques Loureiro ou Moreira da Silva para a cidade —, múltiplas derivações genéticas da Camellia japonica, e outras do género Camellia, pontuam o espaço. E as mais temporãs anunciam já a colorida exibição de flores que as caracteriza no final do Inverno. Várias têm o nome, no registo da Sociedade Internacional de Camélias, associado a esta família, que importou espécimes de todo o mundo e, com elas, criou novas variedades. O que talvez ajude a explicar por que motivo a quinta é mais famosa para lá das fronteiras do país do que para lá da fronteira viária que rodeia Villar d'Allen.
Com José Alberto Allen refugiado no trabalho, é Isaura quem assume a despesa de demonstrar a importância histórica da família do marido e as dificuldades enfrentadas face aos apetites que, num país pouco dado à cultura dos jardins — ou «arboricida», como diz Paulo Araújo — uma propriedade tão bem situada sempre atraiu. E para quem vem «aguentando muito», inclusive uma situação de «fogo posto», Isaura fala da conclusão do longo processo de classificação deste lugar como imóvel de interesse público como um peso que lhes «sai do coração», permitindo que os Allen se concentrem no futuro a dar a este espaço tão cheio de passado.
Abrir mais a quinta
A vontade é tornar Villar d'Allen mais frequentado pela cidade. A família pretende entregar a uma gestão profissional o viveiro — necessário para a manutenção económica da propriedade — e criar pequenas hortas para actividades de educação ambiental. Antes disto, em Maio será o Espaço Maus Hábitos a apropriar-se da vegetação, com performances que actualizam o histórico convívio dos Allen com a cultura, bem patente no recheio impressionante do solar.
Depois, há as camélias. Sempre elas. Neste momento decorre um trabalho meticuloso de identificação de todas as variedades aqui existentes, a pensar nas exposições municipais que nos últimos anos regressaram ao calendário da cidade. E a antever já as camionetas de estrangeiros que por aqui se juntarão quando o Porto organizar, em 2014, o congresso mundial dedicado a esta planta ornamental de origem asiática que Alfredo Allen exportou para o Buçaco e para o Bom Jesus, e que os descendentes «exportam» hoje para os parques de Sintra e outros lugares por esse mundo fora.
Esta actividade perpetua uma paixão que, sobrevivente em alguns jardins da cidade, fez dos anos de 1800 o século das camélias no Porto. Mas Teresa Andresen avisa que Villar D'Allen é muito mais do que as camélias. «É uma montra do século XIX, de uma forma de estar, de governar a cidade.» A mesma cidade que, assinala, «não se apercebe hoje da importância do que está ali», para lá dos muros da Rua do Freixo.