31/01/2010

Museu com árvores

Villar d'Allen
Nunca é de mais espremer as boas notícias para equilibrar a amargura das más, mas a verdade é que esta de hoje parece uma reedição, sem tirar nem pôr, de uma outra que aqui divulgámos em Junho de 2006: a histórica Quinta de Villar d'Allen foi classificada como imóvel de interesse público. Na verdade só no passado dia 11 de Janeiro, e não em 2006, é que a classificação do conjunto formado pela casa e pela quinta foi publicada em Diário da República; no período entretanto decorrido a Quinta de Villar d'Allen estava, não propriamente classificada, mas sim em «vias de classificação».

Para assinalar a feliz ocorrência, o caderno Cidades do jornal Público de hoje, domingo, publica uma reportagem, da autoria de Abel Coentrão, onde a importância patrimonial e histórica da quinta é sintetizada de forma exemplar. O mesmo jornalista visitou outras três quintas históricas do Porto — Prelada, Serralves e Jardim Botânico — e sobre elas publicou, no mesmo caderno, três textos breves mas muito informativos (acessíveis só na versão em papel ou em PDF).

Transcrevemos de seguida na íntegra a reportagem do Público sobre Villar d'Allen.

Esta quinta é um museu da cidade... que o Porto não tem
por Abel Coentrão

A arquitecta paisagista Teresa Andresen vê-a como o museu da cidade que o Porto não tem. E entrando nesse lugar, que até já está para lá dessas fronteiras que são a VCI e a Circunvalação, multiplicam-se justificações para que a directora do Jardim Botânico do Porto assim fale sobre a casa e a Quinta de Villar D'Allen, cujo longo processo de classificação como imóvel de interesse público terminou este mês. É que nesta propriedade particular — nas mãos dos herdeiros do fundador, o comerciante inglês João Allen —, sobreviveram aos apetites do tempo marcas de um período relevante da história do Porto, o século XIX.

Villar d'Allen é o Porto dos ingleses, de cuja comunidade João Allen era figura de destaque, tendo participado na fundação da Associação Comercial e do Banco Comercial do Porto. É o Porto liberal como a Constituição assinada por D. João VI em 1822, com a pena guardada nesta mesma casa. É também o Porto romântico, visível no desenho dos jardins da quinta, aumentados e desenvolvidos pelo filho Alfredo. E culto, como o espírito coleccionista que, entre obras de arte, plantas, rochas, moedas e outros objectos estranhos aos olhos da geração da internet, constituiu um espólio que encheu o Museu João Allen (1836-1848), pioneiro no país na abertura ao público de uma colecção privada, na Rua da Restauração.

O vereador dos Jardins

O Museu João Allen viria a estar na origem, com o Museu Portuense, do Museu Municipal do Porto, «engolido» já em 1940, pelo Museu Nacional Soares dos Reis. Disperso o Espólio pelo Palácio dos Carrancas e outras instituições da cidade, a casa e a quinta sobram como marca, organizada, dos dias de João Allen e herdeiros, entre os quais há a destacar, para a história do século XIX portuense, o filho Alfredo, primeiro Visconde de Villar D'Allen, que colocou ao serviço da cidade e do país a mesma formação agronómica que o levara a completar e expandir a quinta comprada pelo pai em 1839.

Na Câmara do Porto, Alfredo Allen foi entre 1866-1869 vereador dos Jardins, pelouro que, sinal dos tempos, se extinguiu entretanto da taxinomia autárquica. Ficou associado à construção dos Jardins do Palácio de Cristal e da Cordoaria. Com Alfredo Allen, o burgo ganhou muitas árvores venerandas, como a araucária da Austrália. Com os seus 130 anos, 40 metros de altura e 3,6 metros de perímetro, esta araucária, assinala Paulo Ventura Araújo, o co-autor de À sombra de Árvores com História que na quinta-feira acompanhou o Cidades numa visita a Villar D'Allen, figura na lista de árvores de classificadas do Porto.

Na quinta, seja na mata onde uma rara Agathis — outra australiana — se destaca, ou no jardim romântico, com os seus caminhos sinuosos e o rumor sempre presente da água, as marcas de Alfredo Allen são bem patentes. Foi ele que ali mandou plantar uma impressionante colecção de palmeiras e outras árvores, entre elas outra araucária como a da Cordoaria, que Paulo Araújo ajuda a identificar pelo nome próprio. Depois chega Isaura, esposa de um dos herdeiros da propriedade, José Alberto Allen, e responsável, com ele, pelo viveiro comercial que aqui funciona. E por mais de uma hora todas as atenções se viram para outro dos traços dominantes da história e dos lugares portuenses dos Allen: as camélias.

Presentes na paisagem dos Allen como na do Porto — numa botânica demonstração da importância da família e de viveiristas como Marques Loureiro ou Moreira da Silva para a cidade —, múltiplas derivações genéticas da Camellia japonica, e outras do género Camellia, pontuam o espaço. E as mais temporãs anunciam já a colorida exibição de flores que as caracteriza no final do Inverno. Várias têm o nome, no registo da Sociedade Internacional de Camélias, associado a esta família, que importou espécimes de todo o mundo e, com elas, criou novas variedades. O que talvez ajude a explicar por que motivo a quinta é mais famosa para lá das fronteiras do país do que para lá da fronteira viária que rodeia Villar d'Allen.

Com José Alberto Allen refugiado no trabalho, é Isaura quem assume a despesa de demonstrar a importância histórica da família do marido e as dificuldades enfrentadas face aos apetites que, num país pouco dado à cultura dos jardins — ou «arboricida», como diz Paulo Araújo — uma propriedade tão bem situada sempre atraiu. E para quem vem «aguentando muito», inclusive uma situação de «fogo posto», Isaura fala da conclusão do longo processo de classificação deste lugar como imóvel de interesse público como um peso que lhes «sai do coração», permitindo que os Allen se concentrem no futuro a dar a este espaço tão cheio de passado.

Abrir mais a quinta

A vontade é tornar Villar d'Allen mais frequentado pela cidade. A família pretende entregar a uma gestão profissional o viveiro — necessário para a manutenção económica da propriedade — e criar pequenas hortas para actividades de educação ambiental. Antes disto, em Maio será o Espaço Maus Hábitos a apropriar-se da vegetação, com performances que actualizam o histórico convívio dos Allen com a cultura, bem patente no recheio impressionante do solar.

Depois, há as camélias. Sempre elas. Neste momento decorre um trabalho meticuloso de identificação de todas as variedades aqui existentes, a pensar nas exposições municipais que nos últimos anos regressaram ao calendário da cidade. E a antever já as camionetas de estrangeiros que por aqui se juntarão quando o Porto organizar, em 2014, o congresso mundial dedicado a esta planta ornamental de origem asiática que Alfredo Allen exportou para o Buçaco e para o Bom Jesus, e que os descendentes «exportam» hoje para os parques de Sintra e outros lugares por esse mundo fora.

Esta actividade perpetua uma paixão que, sobrevivente em alguns jardins da cidade, fez dos anos de 1800 o século das camélias no Porto. Mas Teresa Andresen avisa que Villar D'Allen é muito mais do que as camélias. «É uma montra do século XIX, de uma forma de estar, de governar a cidade.» A mesma cidade que, assinala, «não se apercebe hoje da importância do que está ali», para lá dos muros da Rua do Freixo.


30/01/2010

Sementes de vento

Serra do Anjo da Guarda, Ansião


.....We are such stuff
.....As dreams are made on, and our little life
.....Is rounded with a sleep.

.....Shakespeare (The Tempest)

29/01/2010

Pedreiras devoradoras

Quercus rotundifolia Lam.


A chuva acompanha-nos desde que de manhã nos metemos à estrada, e não dá sinais de acalmar mesmo depois do almoço na Mendiga, muitos quilómetros a sul. É para andar a pé que viemos à Serra dos Candeeiros, mas não é muito aprazível fazê-lo de guarda-chuva em punho. Resta-nos pôr em prática o plano de emergência preparado para estas ocasiões: se o céu se revela ingrato, substituímo-lo pelo tecto de uma gruta. E são muitas, ao que consta, as grutas visitáveis nestas paragens. Uma rápida consulta ao mapa esclarece-nos que a gruta mais à mão é o Algar do Pena, onde há até um centro interpretativo que, além de garantir uma descida sem aventuras (não temos vocação para espeleólogos), deverá enquadrar a visita com explicações enriquecedoras.

Dirigimo-nos pois ao Vale da Trave, mas algumas das tabuletas indicativas desapareceram, e só com ajuda é que acertamos no caminho para a gruta. São cinco ou seis quilómetros por um estradão de terra batida que se bifurca várias vezes e atravessa pedreiras de dimensões gigantescas. Diz o livro-guia dos percursos pedestres do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros (PNSAC) que o bordo sul do planalto de Santo António é «caracterizado por intensa actividade extractiva». O que o livro deveria dizer é que esta porção do PNSAC no concelho de Santarém está a ser devorada por pedreiras, e corre o risco de desaparecer por completo num prazo de poucos anos. O novo Plano de Ordenamento do PNSAC, que esteve em discussão pública até Novembro de 2009, prevê aliás a expansão de tais explorações. Ainda assim, os autarcas da região, com o mediático presidente da Câmara de Santarém à cabeça, acham que esse plano foi engendrado pelos «beatos do fundamentalismo ambiental».

Entendamo-nos: o actual cenário é já dificilmente aceitável numa área com um estatuto de protecção mínimo. Se as coisas vão ainda mudar para pior (como permite o Ministério do Ambiente) ou para muito pior (como exigem os autarcas), então é melhor acabar com a farsa de que isto é um parque natural. Se só as pedreiras são importantes, se o esforço de preservação da natureza não traz qualquer proveito à região nem aos seus habitantes, então extinga-se o Parque Nacional das Serras de Aire e Candeeiros, e deixem de se atrair visitantes com o engodo de que esta é uma área protegida.

Mas regressemos ao caminho de que esta conversa nos desviou. Caminho esse que, aliás, não tarda terá ele próprio de ser desviado (quantas vezes já não o foi no passado?) por força do avanço das escavações. Os carrascos (Quercus coccifera) que aqui formavam densa cobertura vão sendo arrancados a golpes de escavadora, sobrando uma cabeleira rala à beira do precipício. Mais adiante, depois da gruta, na base de uma encosta que começou já, também ela, a ser retalhada pelas máquinas, desenvolve-se o mais bonito azinhal que alguma vez nos foi dado ver (primeira foto em cima): azinheiras pequeninas, de três ou quatro metros de altura, mas perfeitamente formadas, abrigando a seus pés inúmeras plantas herbáceas que dará gosto reencontrar esta Primavera. Azinheiras (Quercus rotundifolia) e carrascos são, recorde-se, os pais do Quercus x airensis, que aqui se encontra em abundância na zona de transição entre as duas espécies.

E a gruta? É que entretanto parou de chover e distraímo-nos com outras coisas, mas foi ela que aqui nos trouxe. O Centro de Interpretação Subterrâneo da Gruta Algar do Pena (CISGAP) é, segundo reza o livro-guia, o primeiro do seu género em todo o país e um dos «ex-libris deste Parque Natural». Nada se perde em espreitar, mas o CISGAP está fechado e a gruta, por isso, fica-nos vedada. Será que fecha aos sábados? Não há horário nem qualquer informação à porta. Por conversa com gente da terra, ficamos a saber que o CISGAP e a gruta estão em regra fechados e só são acessíveis por marcação prévia. Na Ecoteca de Porto de Mós, além de confirmarem essa informação, dizem-nos que apenas podemos visitar a gruta integrando um grupo mínimo de doze pessoas.

Não foi certamente para uma (não) utilização destas que se construiu um centro interpretativo com tão quilométrica designação. Este mini-roteiro do PNSAC deixa entender que a gruta teria um horário regular de funcionamento na altura em que o texto foi escrito (2001), e o mesmo aliás se depreende do livro-guia que temos usado, publicado cinco anos mais tarde.

O abandono e o descaso por parte da tutela, tão ostensivos neste episódio, são decerto responsáveis por boa parte da desilusão sentida pelas populações deste e de outros parques naturais do nosso país. Então «esses do ambiente» têm tamanha maravilha à sua guarda e fazem tudo para repelir visitantes? Realmente não se percebe.

P.S. Sobre o conflito (ou convivência) entre as pedreiras e a conservação da natureza no PNSAC, leia-se o longo comentário que Henrique Pereira dos Santos aqui escreveu a propósito do texto acima.

28/01/2010

Cinquefoil

Ribeira da Fórnea
Este riacho dir-se-ia nómada, se esta não fosse expressão inadequada para uma ribeira já de certa idade. O facto é que nem sempre se vê ali, onde o fotografámos, preferindo, com acanhamento de menino, esconder-se quando o caudal se reduz e ele não tem fôlego para um galope honrado. Ouvimo-lo gatinhar no subsolo e, apesar do desconforto, ansiamos pela chuva.

Potentilla reptans L.

Potentilla erecta (L.) Raeusch.
Assim pequeninas, as plantas das fotos não parecem ter o poder a que o seu nome alude, mas os fitoterapeutas não lhes poupam vénias. A P. reptans tem flores de cinco pétalas entalhadas, com um epicálice de brácteas que alternam com as sépalas, e folhas de cinco folíolos serrados. Esta é a morfologia típica no género Potentilla, que alberga cerca de 500 espécies em regiões de clima temperado e é próximo de Fragaria, onde se inclui o morangueiro. A P. erecta, contudo, é uma excepção: tem folhas trifoliadas, que no entanto parecem ter cinco folíolos pela presença de dois apêndices minúsculos na base; e as suas flores são de quatro pétalas, coisa rara na família Rosacea. Mas, numa notável excepção à excepção, em alguns exemplares, como o da foto, nascem flores de cinco pétalas. Atitude que alguns poderão aplaudir como um sensato retorno à norma.

27/01/2010

Barbicha de bode

Tragopogon pratensis L.
Cheguei ao cemitério bem cedo pela manhã, caso contrário não lhe teria visto as flores abertas. O nome por que é conhecida, Jack-go-to-bed-at-noon, é quase um eufemismo, pois ela não se faz rogada em ir para a cama ainda antes do meio-dia, e pode nem chegar a acordar se o dia estiver com má cara. Mas a sua presença, tal como a das suas companheiras silvestres, é um daqueles bónus que se ganham só por deixar a natureza cumprir o seu papel. E os parques, ou neste caso um cemitério, são dos raros lugares da metrópole onde a natureza não foi por completo domesticada ou mesmo aniquilada. As flores espontâneas na cidade não são uma praga, nem devem ser tratadas como «ervas daninhas»: são uma dádiva e uma lembrança de outras paisagens e de outros horizontes.

Esta nossa planta preguiçosa é uma asterácea peculiar. Atingindo os 80 cm de altura, começa por chamar a atenção pela sua envergadura e pelo formato das folhas, longas e finas como as da relva. Quando estão fechadas — que é a maior parte do tempo —, as inflorescências, apertadas numa armadura composta por oito sépalas pontiaguadas, são inconfundíveis, como o leitor pode confirmar na foto em cima. Uma vez abertas, constatamos que elas são formadas apenas pelos florículos externos (aqueles que dão as pétalas), estando ausentes os florículos tubulares centrais. (Talvez não seja mau o leitor recapitular a lição que aqui demos sobre as «flores» das asteráceas.) Uma outra asterácea com o mesmo défice, essa sim espontânea em Portugal, é a chicória.

Barbicha-de-bode (ou goat's beard), outro nome comum da planta, é tradução à letra do seu nome científico: em grego tragos significa bode, e pogon, barba. Refere-se ele aos filamentos sedosos que estão na base dos florículos (chamados pappus em latim — veja nesta imagem) mas que só são visíveis quando as pétalas caem e se formam os frutos. Para concluir, eis outras verdades que não saltam à vista: a planta é comestível (raízes e folhas aproveitam-se para saladas); tem uma raiz vertical profunda; o seu caule derrama, quando cortado, um látex leitoso; e, ausente embora de Portugal, ela encontra-se por quase toda a Europa.

25/01/2010

Carvalho airoso

Quercus x airensis Franco & Vasconcellos [= Quercus x auzandrii nothosubsp. airensis]


A azinheira de bolotas doces — Quercus ilex L. subsp. ballota (Desf.) Samp. para os que a consideram uma subspécie, ou Quercus rotundifolia Lam. para os taxionomistas que lhe conferem estatuto de espécie — é uma árvore perenifólia que pode atingir os 12 m de altura mas raramente ultrapassa o porte arbustivo. Tem ritidoma cinzento fendido e folhas elípticas de margens inteiras (as jovens dentadas e levemente espinhosas), contorno curvado, cor verde embaciada na face superior, penugem densa e branco-amarelada no verso. As bolotas têm carapuça curta de interior acetinado. É um endemismo da Península Ibérica e noroeste de África, abundante em montados e bosques. Floresce de Março a Junho e forma híbridos naturais com outros carvalhos. A combinação do Q. rotundifolia com o carrasqueiro, Q. coccifera L, é o carvalhinho da Serra de Aire (e da de Candeeiros) que Franco e Vasconcellos designaram, em 1954, por Q. x airensis. É um arbusto que não arrisca mais de 4 m de altura, com raminhos jovens cobertos de pêlos estrelados, folhas coriáceas, ovadas, dentado-espinhosas, cinzento-esverdeadas, com penugem em ambas as faces. A bolota é longa, a cúpula tem escamas imbrincadas mas pouco levantadas (não sai ao Q. coccifera) e interior acetinado (como no Q. rotundifolia).

Estão a interromper-nos com um resmungo em tom de barítono: se o Q. rotundifolia se classificar como subspécie Q. ilex L. subsp. ballota, então o misto dele com o carrasqueiro não pode ser designado por nome binário, tem de ser Quercus x auzandrii nothosubsp. airensis Gren & Godr.

Sssim, ssssenhor, mas de onde vem este auzandrii? Da azinheira, asseguram-nos. É que ela tem duas formas que, não admira, isto tem mesmo de ser difícil, quase se confundem: a Q. ilex subsp. ballota e a subspécie Q. ilex subsp. ilex (ou simplesmente Q. ilex L.). Esta é a azinheira comum no norte da Península e região mediterrânica, de folhas lanceoladas e pontiagudas, as jovens serradas mas não espinhosas, que pode chegar aos 27 m, aprecia bosques de clima temperado e húmido e solo calcário, e floresce de Abril a Junho. Contudo, a azinheira no monte é diferente da do herbário; lá encontramos não só muitos exemplares intermédios a estas duas versões, que se enlaçam sem transições bruscas, como indivíduos em que as duas morfologias estão presentes. Para complicar a história, também esta versão de azinheira se cruzou com o carrasqueiro, esse galaroz, e nasceu o Quercus x auzandrii Gren & Godr., que tem folhas e bolotas de morfologia e pilosidade que são, como seria de esperar, uma média das características dos progenitores.

E nothosubsp.? Vem do grego nothos, falso, e da abreviatura de subspécie. Percebemos-lhe a intenção: um híbrido não tem direito a ter como subespécie um outro resultante do cruzamento de diferentes progenitores. Este meio-irmão só seria uma verdadeira subespécie se resultasse de uma modificação evolutiva do próprio híbrido. Alguém discorda desta interpretação?

A companhia dos mortos


Cemitério de Brompton — Londres


.....Mas se paro um momento, se consigo
.....Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
.....De novo, esses que amei vivem comigo
.........Antero de Quental, Com os Mortos


Em Earl's Court e Chelsea, dois bairros londrinos perto do Tamisa, abundam as praças ajardinadas, mas quase todas elas, por serem privadas, estão interditas ao público em geral. Há contudo, no limite dos dois bairros, um espaço de 16 hectares fartamente arborizado em que toda a gente pode entrar. Vêem-se lá pais e mães com crianças em carrinhos ou pela mão, gente que vem passear os cães, outros em trajes desportivos que correm disciplinadamente a sua quota diária de milhas, uns tantos menos enérgicos que se deixam ficar sentados a ler (não há falta de bancos nem de sombras). No intervalo do almoço muitos aqui vêm engolir a refeição ligeira comprada no take-away da esquina; esquilos, pombas e gralhas ficam à espreita para devorar os restos de comida. Excepcionalmente, lá aparece algum turista de máquina a tiracolo fotografando árvores e monumentos funerários.

Pois esse parque tão popular é afinal um dos históricos cemitérios de Londres, inagurado no mesmo ano (1840) em que foi aberto o cemitério de Highgate. Com um plano rigorosamente rectangular e entradas pelas duas extremidades, em Old Bromptom Road e em Fulham Road, o cemitério de Brompton, é esse o seu nome, não tem o encanto de Kensal Green, mas é de mais fácil acesso e, tal como o seu colega, tem muitas árvores (nas fotos vemos, por esta ordem, um castanheiro-da-Índia, um choupo e um plátano, mas também há tílias, áceres, carvalhos e azinheiras) e muitas flores silvestres. E, beneficiando dessa gestão inteligente que não elimina o que é espontâneo na natureza, são inúmeros os pássaros que fazem deste espaço a sua casa.

Seria sinal de sobranceiro desprezo pela actualidade desportiva não assinalar que o estádio aí em cima, mesmo encostado ao cemitério, é Stamford Bridge, morada do Chelsea Football Club. A verdade é que tal proximidade não ajuda à beleza da envolvente, mas regista a história que os dois, estádio e cemitério, separados apenas por uma linha férrea, são vizinhos um do outro há mais de cento e trinta anos. Ao longo desse período, o primeiro foi-se modernizando, enquanto o segundo regredia para um estado semi-natural. Para quem vem do norte da cidade, a necrópole serve de atalho para chegar à única entrada de Stamford Bridge, em Fulham Road. Ou pelo menos é isso que sugere o filme Eastern Promises (2007) de David Cronenberg, em que um adepto de gorro, cachecol e bandeira é lá esfaqueado quando segue num magote ululante em dia de jogo.

Uma palavra sobre o «malmequer» ou «margarida» que se vê numa das fotos. Trata-se do Leucanthemum vulgare (Vaill.) Lam., planta ruderal muito frequente em toda a Europa e também em Portugal. Antes de o leitor se regozijar por finalmente saber o nome de uma planta tão ubíqua nos nossos campos, é melhor acautelar-se. São muitas as asteráceas, pertencentes por exemplo aos géneros Bellis, Anthemis, Anacyclus, Chamaemelum e Matricaria, que dão inflorescências brancas com centro amarelo, e algumas delas estão ainda mais disseminadas do que o Leucanthemum vulgare. Então como se distinguem os «malmequeres» uns dos outros? Não existe uma regra geral simples, mas, no caso do Leucanthemum vulgare, além do formato e disposição das folhas (alternadas, com margens dentadas — clique na foto para ver melhor), há a peculiaridade de cada haste ser encimada por uma única inflorescência.

23/01/2010

Rio Homem


      A nossa terra encolherá
e antípoda contra antípoda
se encostará.
Então, de pés unidos,
o planeta já sumido,
enfim conheceremos
o terreno que pisamos.

Piet Hein, Gruks (Moraes Editores, 1973, trad. David Glyn Evans)

22/01/2010

Vila do Gerês

Rio Gerês
Fui algumas vezes ao Gerês quando era criança. Mas, para a minha família, «Gerês» significava esta pequena vila: um par de ruas, um largo ajardinado com tanque ao centro e colunata em volta, os edifícios termais, o parque atravessado por uma amostra de rio onde se podiam alugar botes e gaivotas. Nunca avançámos para norte para admirar a mata de Albergaria, cuja existência aliás desconhecíamos, nem a curiosidade nos levou a espreitar Espanha aqui tão perto. Para fronteira bastava-nos Valença, e o mundo natural não tinha para nós qualquer interesse. Julgo que os meus pais são uma amostra típica de toda uma geração que migrou das pequenas vilas do interior para a metrópole: o corte com a natureza, representativa do atraso de vida de que fugiram, foi radical e completo. Aos poucos, as novas gerações regressam aos lugares antigos, mas como turistas, e sabendo-se impotentes para salvar aquilo de que só agora compreendem o valor.

E a vila, tantos anos depois, está objectivamente mais pequena, embora tenham surgido alguns arremedos de galerias comerciais. Não é só efeito da mudança de escala do olhar infantil para o adulto. É que entre 1 de Novembro e 30 de Abril quase tudo está fechado: as termas e o parque, por assim mandar o calendário; e a informação turística, talvez por acidente. Ficamos o tempo de almoçar e, batida uma meia dúzia de fotos, ala que se faz tarde, pois a vila nada tem que nos prenda e há tantas árvores e rios à nossa espera. Não que aqui não haja árvores, mas as do parque estão inacessíveis e os plátanos em volta do largo sofreram uma poda de apertar o coração. Por deferência para com a localidade, que até me é simpática e onde não almoçámos mal, publico uma foto mentirosa, em que quase não se distinguem as árvores mutiladas.

21/01/2010

Trapezistas

Arum italicum Mill.


A floração do jarro-bravo, planta vivaz comum em solos húmidos e ensombrados do sul da Europa e norte de África, começa em Abril e dura cerca de três meses. Tal intervalo de tempo parece curto quando se analisa o elaborado esquema de polinização que esta aracea adoptou e cujo sucesso reprodutivo, como num duo de trapezistas, exige rigorosa sincronia.

Na inflorescência consegue-se ver uma espiga (ou espadiz) envolvida por uma bráctea lisa (a espata amarela na foto). Depois de a espata desabrochar, sem contudo comprometer a câmara onde esconde as flores férteis, o apêndice no topo do espadiz inicia a sua função de minarete: na noite em que as (cerca de 60) flores femininas estão receptivas, chama os insectos, ressumando um aroma que os atrai, intenso porque o apêndice aquece bastante acima da temperatura ambiente: se lhe pudesse tocar através da foto, sentiria uma diferença superior a 6ºC.

Há flores dos dois sexos, mas coexistem na mesma planta — que por isso em inglês se designa Italian lords-and-ladies. Nascem em volutas na base da espiga, as femininas no fundo, as masculinas mais acima, separadas das primeiras por flores estéreis. Estas últimas, entrelaçadas em posição horizonal, formam uma rede que, permitindo aos polinizadores aceder às flores femininas, impede porém a sua saída. Iludidos, sem qualquer recompensa, os insectos (sobretudo fêmeas de mosca, pois o odor simula o dos pântanos ou da matéria orgânica deteriorada onde elas gostam de depositar os ovos) ficam ali presos durante um dia.

O calor retorna na manhã seguinte para se iniciar a fase masculina da reprodução: o pólen amadurece, as anteras atrofiam-se e libertam-no, e a agitação dos insectos dispersa-o. Um novo pico de calor ocorre nessa tarde para que a porta de flores estéreis murche e a espata fique rugosa para ajudar à escalada dos insectos — os quais, soltando-se, caem de imediato em logro idêntico numa outra flor, que deverá estar na fase feminina para que a possam fertilizar e reiniciar o processo. Desse modo se garante que a polinização é cruzada, um aspecto muito caro a esta candeia, que aborta avisadamente a maioria dos frutos produzidos por auto-polinização.

Finalmente, no Outono, o anel de flores femininas transforma-se numa cabecinha de bagas vermelhas brilhantes (e venenosas), a única componente da planta que resta à superfície nessa altura.

20/01/2010

Valha-nos São Tomilho

Thymus vulgaris L.
Na anterior divagação sobre tomilhos e afins, falámos de alhos e mostrámos bugalhos: o Thymus caespititius, que ilustra essa prosa, não existe nos terrenos calcários do centro e sul do país. A espécie mais comum nesse habitat é o Thymus zygis L., conhecido como erva-de-Santa-Maria ou tomilhinho, e componente importante na dieta do gado de cujo leite se faz o afamado queijo Rabaçal. Fica a promessa de que ele (o tomilhinho, não o queijo) há-de aqui aparecer um dia, mas ainda não hoje. Vem a propósito comentar que, assim como cada dia tem o seu santo no calendário devoto, também a nossa flora espontânea parece ter sido repartida, com maior ou menor grau de arbitrariedade, por esses ilustres inquilinos do paraíso celeste. Existem a erva-de-São-Roberto, a erva-de-São-Roque, a erva-de-Santo-Estevão, a erva-de-Santa-Ana, a erva-de-São-Guilherme, a erva-de-São-Cristovão, a erva-de-Santa-Bárbara, a erva-de-São-João, e sabe-se lá quantas mais plantas a que poderíamos chamar hagiófitas. Tal profusão de nomes populares-devocionistas denuncia uma relação remota, hoje em grande parte perdida, entre pessoas e plantas, e reforça a ideia de que somos (ou fomos) um país beato, mas também nos leva a confundir plantas que não têm entre si qualquer semelhança ou parentesco.

O Thymus vulgaris, ou tomilho-vulgar, é o mais cultivado do seu género e o mais versátil para usos culinários: faz toda a diferença ao paladar juntá-lo como tempero a molhos, saladas, estufados e assados — sobretudo de borrego. É espontâneo em terrenos áridos e pedregosos da região mediterrânica, e ocorre na Península Ibérica mas não em Portugal. Subarbusto compacto, rasteiro (até 30 cm), muito ramificado, tem raminhos sedosos e esbranquiçados, folhas estreitas com margens recurvadas para dentro, e flores brancas ou rosadas, pequeninas (até 5 mm) e penugentas.

19/01/2010

Estrelamim

Aristolochia paucinervis Pomel
Este nariz da terra, que muitos encaram cautelosamente como orelhinhas-do-diabo, é planta vivaz rizomatosa da região Mediterrânica e Macaronésia, abundante por cá em matagais soalheiros e terrenos incultos, onde aprecia a companhia de carvalhos. Os caules chegam aos 40 cm de comprimento, parecendo crescer em ziguezague. As folhas são cordiformes e alternas, com pecíolo longo; servem de gola isabelina às flores que nascem solitárias, entre Março e Julho, nas axilas das folhas. Não têm pétalas, estão contidas num cálice tubular, inchado na base, que molda uma "espata" de cor amarelo-pardo com um capuz púrpura de interior penugento. O fruto é uma cápsula ovóide que demora cerca de três meses a amadurecer e contém numerosas sementes triangulares achatadas.

O termo latino paucinervis indica que esta planta tem poucos nervos. Não se trata aqui de uma apreciação do carácter — que, numa herbácea cujas raízes contêm um alcalóide venenoso, usado como antídoto para picadas de cobras ou de escorpiões, é certamente calmo e lúcido —, mas uma referência aos poucos canais de seiva salientes a irrigar as várias partes da planta. Aristolochia deriva do grego aristos, o melhor, e lokhía, parto. Estranho nome este, dado a uma planta que adoptou um esquema de polinização sofisticado mas revela com frequência um descaso maternal que beira o desastre. Senão vejamos.

As flores da jarrinha são hermafroditas e atraem, pelo aroma ou pelo ar aquecido do tubo, insectos polinizadores que aprisionam — com outros distraídos que atrapalham o processo — e que só libertam quando as anteras se abrem sujando-os de pólen. Elas sabem de cor a receita —

50 grãos de pólen por cada óvulo para se gerar um fruto
11 sementes por cada fruto


- e portanto estão conscientes de que são precisos cerca de 4,5 grãos de pólen para produzir uma semente. Mas, em épocas em que os tubérculos armazenaram poucos nutrientes para o ano seguinte (a planta perde a componente aérea no Verão), são altas as taxas de flores não polinizadas, por notória falta de pólen, ou de frutos abortados. Os cientistas atribuem esta baixa natalidade à opção de minimizar riscos: em anos de parcos recursos, as plantas produzem menos pólen que óvulos e, por isso, poucos frutos. A fartura de flores mantém a clientela de insectos visitantes satisfeita, mas a planta reserva-se o direito de, criticamente, eliminar rebentos de viabilidade menos provável ou restringir a reprodução, antevendo com justa preocupação o sucesso da filharada num mundo que nem os pais consegue sustentar devidamente. Esta estratégia, egoísta é certo, é útil em ecossistemas com condições ambientais variáveis, como é a região mediterrânica, e favorável a espécies que dependem de polinizadores muito especializados — ou que compram néctar noutras lojas —, cuja abundância flutua de ano para ano, como são as do género Aristolochia. Deste modo, a planta evolui para um regime mais autónomo de auto-polinização, compensando alguma ineficiência recorrente no esquema ardiloso de fecundação.

Num momento em que o país se aflige com a baixa natalidade, atenua a angústia saber que noutros mundos há iguais reacções à crise: de vez em quando, é possível sentir-se venturoso sem se precisar de um futuro.

18/01/2010

Golfão ou golfinho?

Nymphoides peltata (S. G. Gmel.) Kuntze / Lemna gibba L.
O Portugal Botânico de A a Z chama golfão ao vulgar nenúfar (Nymphaea alba), no que é corroborado pela Flora Digital de Portugal. São aliás várias as plantas aquáticas dos géneros Nymphaea e Nuphar que as mesmas fontes apelidam de golfões, diferenciando-as umas das outras por um adjectivo adicional: há assim o golfão-branco, o golfão-amarelo e o golfão-vermelho. E também o golfão-pequeno, nome que calhou à Nymphoides peltata e que pode muito bem, em benefício da brevidade e da eufonia, ser encurtado para golfinho — até porque, cremos nós, até agora não existia nada com esse nome.

O sufixo latino oides em nomes botânicos como platanoides ou Nymphoides deve ler-se como «semelhante a»: o bordo-da-Noruega (Acer platanoides) é semelhante ao plátano, e o golfinho (Nymphoides peltata) é semelhante ao golfão (Nympahea sp.). Essa semelhança, contudo, é simplesmente a opinião de quem baptizou a planta, e pode parecer forçada a outros olhos. Apesar de haver livros que afirmam o contrário, as flores da Nymphoides e da Nymphaea têm de facto pouquíssimas parecenças, e tanto assim é que as duas pertencem a famílias botânicas evolutivamente muito afastadas. Afinidade há é nas folhas arredondadas que, em ambas as plantas, formam extensos tapetes flutuantes.

O género Nymphoides tem uma distribuição cosmopolita, e é formado por vinte espécies que vivem em águas paradas e pouco profundas. São plantas rizomatosas, com caules submersos que podem ultrapassar os dois metros de comprimento, e flores pequenas (2 cm), brancas ou amarelas, de pétalas franjadas, em hastes que se erguem acima da superfície da água.

Asseveram os manuais que a Nymphoides peltata, planta perene euro-asiática tida nos E.U.A. como invasora indesejável, é também nativa do norte e centro do nosso território. Nunca nos aconteceu encontrá-la nos nossos espaços naturais, mas, como planta cultivada e vendida em hortos, não deverá ser assim tão rara em jardins. A acompanhá-la, na foto em cima, tirada em Inglaterra no Verão passado, vemos lentilhas-de-água (Lemna gibba), uma planta curiosa que faz com que todo o lago pareça uma sopa bem nutritiva. Coisa que ela até é, embora mais para peixes do que para pessoas.

16/01/2010

Peónia do mar Egeu

Paeonia clusii F. C. Stern
Carolus Clusius (1526-1609) foi um naturalista e horticultor flamengo, autor de várias traduções de obras naturalistas contemporâneas, de um texto sobre flora espanhola e de dois compêndios sobre plantas exóticas e dezenas de espécies novas: Rariorum plantarum historia, em 1601, e Exoticorum libri decem de 1605. O seu contributo para o estudo de plantas alpinas valeu-lhe ser homenageado no nome científico de muitas delas e na criação do género Clusia e da família Clusiaceae.

Nomeado, a meio do século XVI, por Maximilian II — o imperador do Sacro Império Romano-Germânico que recebeu de presente, em 1551, do rei D. João III, o elefante Solimão, personagem do livro A viagem do elefante, de Saramago — como director de um jardim de plantas medicinais em Viena, mudou-se pouco tempo depois para Leiden (no sul da Holanda), onde foi professor e protagonista de um dos capítulos mais famosos da horticultura europeia.

Figura importante na criação de um dos primeiros jardins botânicos da Europa (o Hortus Academicus, em Leiden), deve o seu prestígio na história da botânica à observação atenta e paciente das plantas. A curiosidade, tão cara à ciência, levou-o a reparar numa alteração na coloração das tulipas, fenómeno que descreveu em 1576 e atribuiu então às condições ambientais, à natureza do solo e ao modo de preservar os bolbos, mas que se sabe hoje ser causado por um vírus. O fascínio pelas plantas afectadas residia na mudança de pigmentação das pétalas, que nasciam variegadas, com o bordo ou o centro pintalgados com cores distintas da cor normal (rosa, vermelho, púrpura, amarelo ou branco). Sendo produto de beleza apreciada, tornaram-se caras, até porque, em comparação com as tulipas vulgares, cresciam pouco, floresciam mais escassamente e produziam bolbos menos vigorosos. Foram tema favorito entre os mestres da pintura holandesa, que registaram na tela flores que desde então se extinguiram e que nem mesmo a manipulação genética de hoje consegue ressuscitar.

Nesta floração sensacional esteve a origem da febre de comércio de tulipas que, durante o século XVII, quase levou à bancarrota a economia holandesa: as tulipas passaram a ter valor de moeda e muitos holandeses, como numa corrida ao ouro, abandonaram a agricultura, o fabrico de queijos e outras ocupações para se dedicarem exclusivamente à produção destas flores bizarras. Ficou, como herança desses tempos, a indústria holandesa de bolbos e plantas de viveiro cuja imensa produção monopoliza hoje os nossos «centros de jardinagem».

O vírus e o modo como se dissemina foram identificados por Dorothy Cayley no John Innes Horticultural Institution nos anos 30 do século passado. Felizmente os horticultores conseguiram entretanto criar variedades de tulipas com este tipo de flores mas livres da doença.

15/01/2010

Malmequer-dos-brejos

Caltha palustris L.
Não muito longe do charco onde mora a lavanda-do-mar, mas do outro lado da estrada, a descida da maré deixa a descoberto um espectáculo de morte. Centenas de jacintos-de-água, empurrados para a ria pelo caudal do Vouga, que nela desagua, espalham-se ao longo do estreito areal cinzento. A água salgada foi-lhes fatal, e por isso a viagem deles terminou aqui. Quem quiser aproveitá-los como fertilizante, ao que parece muito bom, só tem de trazer umas cestas e começar a enchê-las. Ou então pode deixá-los secar para servirem de combustível nas lareiras.

O ingrediente que tempera a água da ria, e também a do mar, é sal da vida para umas plantas e veneno fatal para outras — que preferem a chamada água doce (mas sem açucar). Em reconhecimento dessa distinção fundamental entre plantas hidrófilas, trazemos hoje aqui uma planta perene de floração temporã (início da Primavera) que vive em margens de rios, prados húmidos e terrenos alagadiços. Apesar do seu nome comum (malmequer-dos-brejos), a Caltha palustris não é uma asterácea, pertencendo em vez disso à família das ranunculáceas, que inclui várias espécies aquáticas frequentes nos nossos rios e lagos. As diferenças mais assinaláveis entre os ranúnuculos e o malmequer-dos-brejos são que este último tem o caule oco, é um pouco mais espigado (pode chegar aos 35 cm) e, ainda que as imagens pareçam desmenti-lo, as suas flores não têm pétalas: o que vemos em volta da coroa de estames são na verdade cinco sépalas. São as sépalas que protegem o botão floral antes da abertura; sépalas que, na maioria das plantas, têm cor verde e são semelhantes a folhas, embora haja numerosas excepções.

A Caltha palustris distribui-se por boa parte das regiões temperadas do hemisfério setentrional, incluindo Europa, Ásia e América do Norte. Está referenciada em Portugal, embora nunca a tenhamos encontrado por cá. A da foto é inglesa e vive em Londres, num dos muitos lagos que pontuam os 320 hectares de Hampstead Heath.

Esplanada em xeque

Depois do alerta aqui lançado, com eco no blogue A Baixa do Porto, houve mais gente a manifestar espanto e repúdio pela «esplanada» que está a ser construída na praça Parada Leitão. Por iniciativa de Manuel Correia Fernandes, vereador da oposição e arquitecto, o assunto foi mesmo discutido na reunião de 12 de Janeiro (terça-feira) da Câmara do Porto. Correia Fernandes considera a obra «uma intrusão num espaço público quase sagrado da cidade» e acha que a única solução aceitável é desmontar tudo e «voltar ao princípio». Oxalá o executivo camarário lhe dê ouvidos.

Mais detalhes sobre o assunto aqui, aqui e aqui.

14/01/2010

Amarela do Tibete

Paeonia ludlowii (Stern & G.Taylor) D. Y. Hong


As espécies arbustivas do género Paeonia vêm da China ou dos Himalaias. Uma das mais altas mas de flores menores é a tibetana P. lutea Delavay ex Franch. São plantas que fazem parte dos florilégios tradicionais chineses (simbolizam a beleza feminina), sendo celebradas em festivais anuais em Maio. O cultivo de peónias na China ter-se-á iniciado no século IV d.C. em Chekiang, e três séculos mais tarde eram já conhecidas centenas de variedades. As de flores amarelas foram primeiramente descobertas no século XI em Sichuan, mas a da foto é originária de bosques esparsos entre os 2900 e os 3500 m de altitude no sudeste de Xizang, no Tibete. Considerada uma subspécie da P. lutea por Frederick Claude Stern e George Taylor, chamou-se Paeonia lutea var. ludlowii Stern & Taylor e depois Paeonia delavayi subsp. ludlowii (Stern & Taylor) B. A. Shen; em 1997 ganhou estatuto de espécie. É um arbusto vigoroso que pode atingir os três metros de altura, com folhagem verde-brilhante e flores brancas, amarelas ou castanhas com uns 12 cm de diâmetro e filamentos dos estames vermelhos. Frutifica abundantemente e é fácil de propagar por semente, mas está em perigo no seu restrito habitat natural por causa do uso medicinal da casca das raízes. O epíteto específico comemora a pesquisa do ornitólogo e botânico Frank Ludlow (1885-1972) durante as expedições ao sudeste do Tibete entre 1933 e 1949.

As peónias arbustivas requerem solo fértil e permeável, franca exposição ao sol, e amuam com frio excessivo ou ventos secos. Por isso alguns cultivares, sobretudo os da P. suffruticosa Haw. (da China), desenvolvem-se bem naquelas partes da Europa onde encontram invernos frios mas verões quentinhos para compensar. Como prémio pela boa adaptação, receberam nomes de fantasia (Bowl of Beauty, Dayspring, Chedddar Cheese, Chocolate Soldier) ou gentis antropónimos de gente talentosa, como Sarah Bernhardt ou Edward Elgar.

13/01/2010

Lavanda-do-mar

Limonium vulgare Mill.
Em jeito de celebração da muita chuva que tem caído nesta transição de ano, iniciamos uma mini-série com aquelas plantas que se dão bem com a água, e por isso não temem a erosão costeira nem a subida do nível do mar. (Talvez devessem temer, mas algumas plantas, para seu mal, não são mais inteligentes do que o homem.) E a primeira é uma lavanda-do-mar, pertencente ao género Limonium, que já antes foi aqui pretexto para uma lição sobre maternidades alternativas. Impõe-se, contudo, uma ressalva a esse texto, que tem a ver com a contagem do número de espécies. Tal como sucedeu com outros géneros e famílias botânicas, uma operação de limpeza tem vindo a estabelecer sinonímias e a eliminar duplicações, com o resultado de o número de espécies de Limonium ter sido reduzido a metade, de 300 para 150.

O Limonium vulgare — herbácea perene, glabra, com base lenhosa, altura até 60 cm, florindo de Julho a Setembro — ocorre em quase toda a costa europeia atlântica e mediterrânica, e ainda no norte de África e nos Açores. É, no continente, uma planta exclusiva dos sapais (terrenos lodosos confinantes com o mar em estuários ou rias, periodicamente inundados por água salgada), aparecendo nuns tantos locais no centro e no sul. Nas ilhas açorianas, porém, onde não existem sapais, a planta escolhe como habitat as rochas e falésias costeiras, em altitudes inferiores a 80 metros — e por isso há algumas dúvidas de que se trate exactamente da mesma espécie.

A planta aí em cima foi fotografada em São Jacinto, na ria de Aveiro, num charco junto à EN 327. Apesar do seu epíteto científico, não parece ser excessivamente vulgar nas margens da ria, muito embora estas cumpram todos os requisitos para ela se sentir em casa. De facto, o charco que lhe serve de refúgio está do lado errado da estrada, e não é atingido pela subida das marés a menos que toda a faixa de rodagem fique submersa — coisa que, julgo eu, nunca acontece. Mas talvez existam condutas para escoar as águas da ria por debaixo da estrada, assegurando assim ao terreno um grau de salinidade que permite a sobrevivência da planta.

1000 árvores

No dia 16 de Janeiro, sábado, a partir das 10h00, irão ser plantados mil sobreiros no Parque Natural de Sintra-Cascais. A inscrição prévia é obrigatória, e o número de participantes está limitado a 500. Para informações mais detalhadas consulte a página Plantar uma árvore.

12/01/2010

Rosas de albardeiro

Paeonia broteroi Boiss. et Reut.


Conta o mito que, ao nascer Zeus, a mãe, Rhea, fincou as mãos no solo, e desse gesto quase humano brotaram dez seres ardilosos: cinco femininos da mão esquerda, com poderes mágicos, cujos nomes estão ainda hoje no segredo dos deuses; e cinco masculinos da direita, hábeis artesãos do ferro. Um deles é Paeonius, que nesta narrativa se enreda com Paeon, sábio médico do Olimpo que teria descoberto algum uso medicinal na planta que veio a receber o seu nome.

Paeonia é o único género da família Peoniaceae, antes incluído na Ranunculaceae, com cerca de 30 espécies de herbáceas e arbustos, além de muitas variedades de jardim. Têm folhas alternas e divididas (três divisões principais e, por vezes, subdivisões), e flores perfumadas mas de curta duração que em certas espécies — como a P. suffruticosa Haw. — chegam aos 30 cm de diâmetro. São originárias de prados, bosques e solos rochosos da Europa, leste da Ásia (as de porte arbustivo são da China) e norte de África, e há ainda duas espécies da Califórnia. A polinização está entregue a besouros; os frutos são deiscentes e contêm numerosas sementes escuras com arilo carnudo e outras vermelhas inférteis.

As fotos acima mostram a rosa-albardeira (ou erva-casta, rosa-cuca, rosa-de-lobo), espécie do centro e sul de Portugal e sudoeste de Espanha. Atinge os 40 cm de altura, é perene e aprecia matagais de montanha, locais pedregosos e sombrios de barrocal e ribas de rios. As flores têm 8 a 10 cm de diâmetro, filamentos dos estames amarelos e dois a quatro carpelos penugentos. A floração ocorre de Abril a Junho. Distingue-se, na ausência de flores, da peónia-comum (Paeonia officinalis subsp. microcarpa) por ter folhas glaucas e glabras e pecíolo de secção redonda.

Paeonia officinalis subsp. microcarpa (Boiss. & Reuter) Nyman
As flores da Paeonia officinalis subsp. microcarpa são um pouco maiores (10-13 cm) e os filamentos dos seis estames são vermelhos. A face inferior das folhas é pubescente, a haste é sulcada e os folíolos têm lóbulos menores. O frutos não têm penugem, mas os pés das flores sim. Prefere matos do sudoeste da Europa, onde floresce de Abril a Julho. Como a espécie anterior, as suas flores têm cinco sépalas verdes desiguais, e cinco a nove pétalas de cor vistosa. Ao contrário do que anuncia a designação vernácula, é mais rara que a P. broteroi, e só fotografámos este exemplar solitário porque um leitor generoso nos disse onde o tinha encontrado: Casal Monizes, na serra de Candeeiros.

11/01/2010

Caminhos de Belém

Washingtonia filifera (Lindl.) H. Wendl. / Phoenix canariensis Chabaud
Em Portugal, o caminho de Belém é uma metáfora do percurso político — alimentado durante anos por «tabus» postos a cozinhar em lume brando nos títulos especulativos dos jornais — que pode guindar alguém ao mais alto cargo da nação. Quem não tiver sido eleito para nada de especial, nem for político ou personalidade pública de relevo bastante para ser recebido em audiência, pode apenas visitar os jardins do Palácio de Belém em cada dia 5 de Outubro ou em alguma outra rara ocasião em que os portões sejam franqueados ao povo. Mas é possível, em qualquer altura do ano, espreitá-los sem grande despesa pagando uma entrada de dois euros no vizinho Jardim Botânico Tropical, aberto todos os dias (excepto feriados) até às 17:00. Os dois jardins partilham um gradeamento de algumas dezenas de metros, e dá para ver, do lado de lá, dois ou três pinheiros-mansos, um lago rodeado por laranjeiras para onde se desce por uma dupla escadaria, e, nas traseiras do palácio, uma araucária-de-Norfolk entristecida por falta de companhia. Um gato digno e anafado, de pelagem cinzenta e porte inconfundivelmente presidencial, atravessa amiúde o gradeamento para vir ao lado de cá mordiscar as ervitas que lhe lubrificam o trânsito digestivo.

Evocativas do sul e dos trópicos, palmeiras em dupla procissão ladeiam os caminhos que, dentro do Jardim Botânico Tropical, conduzem ao Palácio de Belém atrás das grades. Não um sul muito exacerbado, pois tanto a palmeira-das-Canárias (Phoenix canariensis) como a palmeira-de-leque-da-Califórnia (Washingtonia filifera) resistem bem ao frio e são comuns — muito mais a primeira do que a segunda — em todo o litoral norte do país. Alamedas com o efeito cénico destas duas, com centenas de metros de extensão, não são, porém, nada comuns, e valem, por si só, uma visita ao jardim.

Inaugurado em 1912, com uma área ajardinada de cinco hectares, este espaço já se chamou Jardim Colonial e, depois de 1951, Jardim do Ultramar. Integrando o Instituto de Investigação Científica Tropical, não consegue disfarçar um certo desmazelo, ainda que menos chocante do que noutros jardins botânicos portugueses. Será esse o resultado da falta de pessoal? Segundo esta página, dos 25 funcionários do jardim no activo, incluindo investigadores, técnicos e bolseiros, só dois são jardineiros. Também o dinheiro não parece por aqui existir às mãos-cheias: a estufa, fechada há dois anos para obras de recuperação que nem sequer se iniciaram, está a caminho da ruína completa.