Capsella bursa-pastoris (Capsella rubella) - vale do Tua
«Ao fundo do meu quintal, à mão esquerda, há um miradoiro ou, melhor dizendo, um coradoiro, um pedaço de terra livre de arvoredo, mas coberto de erva macia e sempre verde. Ali coravam a roupa, com maternal solicitude, as minhas rudes criadas, no tempo em que as havia e se corava roupa. Hoje, é apenas um logradoiro do meu quintal, mas logradoiro sem utilidade. Nem sequer o aproveito como vigia do panorama que me cerca. Deixei de o visitar.
Desse retalho de terra, sempre verde, avistava eu, ao desenfado e sempre que queria, um velho amigo, um trabalhador incansável, que me viu nascer e me abandonou de um dia para o outro. Quero referir-me a um rio arcaico, milenário, que me contava uma história, cheia de pavores e doçuras, quando me via sentado, num banco de pinho, ao fundo do meu quintal.
Esse rio morreu. Deixou de ser rio para ser um lago artificial imenso, parado ou pasmado a meus pés, como cadáver que a morte dilatasse. O dinheiro dos homens, para se multiplicar, a troco de dar luz e energia ao mundo, pega no meu rio, que era bravo e impetuoso como um toiro, e amansa-o em lago. Fez dele um boi no pasto ou uma choca no fim de uma toirada.
O meu rio, que era poeta heróico e poeta idílico, ao sabor das horas, que as contava de todos os feitios, era também artista. Com que paciência, durante séculos e séculos, não foi esculpindo, na rocha dura, maravilhas de arte... Hoje, lago empanturrado, mais rico do que um porco, já não tem força e até se envergonha de pegar no maço e no cinzel. Deixá-lo, que o progresso manda...»
João de Araújo Correia, Rio Morto (1973)