30/09/2010

O chão da lagoa

Lindernia dubia (L.) Pennell


A Lagoa do Mimoso, que integra a Paisagem Protegida das Lagoas de Bertiandos e, com São Pedro de Arcos, o Sítio ‘Rio Lima’ de Interesse Comunitário, transforma-se no Verão num pedaço de lua. A gestão deste sistema lacustre tem de manter «a harmonia entre o homem e a natureza» e por isso, dizem, é preciso escoar as lagoas para que, no Inverno, os terrenos agrícolas vizinhos não se encharquem em demasia. Seja, suspiramos.

Para cobrir a nudez, enquanto não chove, vale-se de plantas solidárias, algumas alóctones. A Lindernia dubia é uma herbácea anual com cerca de 30 cm de altura, natural da costa oeste americana, do Canadá ao Chile, e introduzida na Península Ibérica. Aprecia margens de ribeiros e terrenos temporariamente alagados com escassa vegetação permanente. Lineu chamou-lhe Gratiola dubia (do latim gratia, agradável), pela semelhança (duvidosa) com as plantas do género Gratiola, mas o naturalista italiano Carlo Allioni (1728-1804) emancipou-a num género que homenageia o botânico alemão Franz Balthasar von Lindern (1682-1755). Manteve o epíteto dubia, como quem pede desculpa pela ousadia, que só foi aceite em 1935. Hoje há já quem proponha uma família nova, Linderniaceae, para alojar as mais de sessenta espécies do género Lindernia.

As flores deste morrião têm um cálice de cinco sépalas e uma corola tubular de cerca de 1 cm de comprimento, branca com cambiantes azuis. O fruto é uma cápsula com sementes amarelas, como denuncia a designação vernácula yellowseed false pimpernel.

29/09/2010

Unha-gata rilha-boi

Ononis pusilla L.


Se alguém quiser explicações para um título tão arrevesado — um arranjo dir-se-ia arbitrário de sílabas disparadas como balas —, fique sabendo que a culpa é do povo, como pode comprovar correndo os olhos pela última coluna desta página. O mesmo povo, supõe-se, que inventou, para deseducação das criancinhas, cantigas malvadas como Atirei com o pau ao gato (pena não te ter caído o pau na cabeça) ou surrealistas como as Pombinhas da Catrina (a propósito: a Quinta Nova fica no Douro, um pouco acima da barragem de Bagaúste; só falta descobrir o Pombal de São João).

Ainda que nos pudéssemos dar por satisfeitos com designações vernáculas tão variadas e pitorescas para o género Ononis, não resistimos à tentação de aumentar a lista: à unha-gata, ao rilha-boi e à joina-dos-matos-ou-das-areias propomos que se acrescente o pára-grades. Traduzido do inglês restharrow, o nome descreve o que (reza a lenda) sucedia quando certo utensílio agrícola, chamado grade, esbarrava com algum Ononis arbustivo na sua lida de lavrar o campo. Ao que parece, a planta era tão emaranhada e robusta que interrompia o curso da tarefa. O nome agora proposto vale por um tratado de etnografia: remete-nos nostalgicamente para a agricultura não mecanizada do passado, que nunca conhecemos, e ressuscita um instrumento de que nunca tínhamos ouvido falar.

Para concluir um breve apanhado que teve já dois fascículos, mostramos hoje mais duas espécies de pára-grades, uma de flores amarelas e outra de flores cor-de-rosa. Ao contrário do que as fotos possam sugerir, a primeira delas (O. pusilla), com o seu hábito rastejante e flores com cerca de 8 mm de diâmetro, é em tudo mais pequena do que a outra (O. spinosa), que tem hastes erectas (até 70 cm de altura) e flores que rondam os 15 mm. E a presença de espinhos, bem visíveis nas fotos aí em baixo, é uma característica que distingue a O. spinosa de todas as suas congéneres peninsulares.

Ambas as plantas são semi-arbustivas com base lenhosa, nativas de grande parte da Europa e do norte de África, com a O. spinosa, mais disseminada, a marcar ainda presença no Médio Oriente. Também em Portugal a O. spinosa, ocorrendo em todas as províncias, é mais comum do que a sua prima amarela, que, por preferir substratos calcários, está confinada ao centro do país (Beira Litoral, Estremadura e Ribatejo) e ao nordeste transmontano.


Ononis spinosa L.

28/09/2010

Por quem os montes ardem


Succisa pinnatifida Lange



Funes não só se lembrava de cada folha de cada árvore de cada monte, como também de cada uma das vezes que a tinha notado ou imaginado. (...) Suspeito, no entanto, de que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos.

Jorge Luis Borges, Funes el memorioso (Ficciones, 1944, trad. José Colaço Barreiros, Ed. Teorema)

Logo que soubemos que uma espécie do género Succisa já foi abundante em Valongo mas que agora está à beira da extinção, apressámo-nos a ir à serra despedir-nos dela. Tínhamos lido que uma das ameaças a esta planta é a vizinhança de espécies mais competitivas. Além disso, é exigente quanto às características do solo — xistoso, mas não de qualquer composição —, e não parece ter uma estratégia que a sustente em habitats degradados. Por isso, as populações conhecidas deste endemismo galaico-português estão em grave declínio, e ele consta da lista vermelha da flora vascular ameaçada (em Espanha; Portugal não tem tal lista), estando sob protecção de várias directivas ambientais (espanholas, pois as entidades portuguesas desconhecem o problema).

Como dizia, no sábado fomos procurá-la. Queríamos um terreno devastado por um incêndio há não mais que dois anos. Nas serras de Valongo, que têm ardido muito e anualmente, há vertentes xistosas extensas de solo negro queimado que, em poucos anos, se cobrem de urze, carqueja, tojo, fetos e pequenos eucaliptos; nessa altura, cremos, esta Succisa desaparece vencida pela concorrência, mas logo a seguir ao incêndio tem alguma chance de ali se instalar. Era esse o nosso devaneio de manhã.

Ao início da tarde encontrámos um núcleo de cerca de cem exemplares, a maioria dos pés em flor, numa clareira à beira de um caminho com cerca de cinco metros de diâmetro e junto a um poste de electricidade. Um pouco adiante terá havido mais alguns porque avistámos um solitário no meio fio de um estradão recém-aberto — já se sabe que os azares acontecem, é uma desgraça mas ninguém teve má intenção, desculpem lá.

Os exemplares das fotos têm uns 60 cm de altura, revelando os vários tipos de folhas desta espécie e o voltear dos sucessivos nós das inflorescências, mas havia muitos só com a roseta basal. Nas fotos não se nota, mas a inflorescência é menor que a da S. pratensis; contudo, o estilete de cada flor é mais longo, embora pareça só se desenvolver quando já quase todos os estames perderam a antera, provavelmente para evitar a autopolinização (última foto).

Não se depreenda deste relato que afinal os incêndios são indispensáveis à conservação da biodiversidade. Antes da eucaliptização intensiva e dos fogos quase anuais, a Succisa não corria grandes riscos; só agora, com o equilíbrio natural quebrado, é que ela está em perigo. Sem uma acção inequívoca para a salvar, restar-nos-á reconstituir de modo intoleravelmente preciso, como Funes, os contínuos avanços da ruína.

27/09/2010

Sua Alteza à beira-rio

Osmunda regalis L.


O feto-real (Osmunda regalis), além de bonito de se ver, dá-nos um consolador testemunho de que no nosso país ainda nem tudo está perdido. Certificam os manuais que ele ocorre em todas as províncias portuguesas; e, pelo menos no norte, é muito abundante em margens de rios e ribeiras. Em Valongo encontramo-lo no vale do rio Ferreira e também no leito da ribeira de Tabãos, na freguesia de Alfena. É omnipresente nos diversos cursos de água que retalham a Área Protegida das Lagoas, em Ponte de Lima. E também dá um ar da sua graça a um dos recantos mais pitorescos da Quinta da Aveleda, não se acanhando em misturar-se com requintadas plantas exóticas. Eis, pois, uma planta que não parece estar de modo nenhum a regredir, e que muitos dos nossos rios ostentam como prova de vida e promessa de tempos melhores.

Acrescente-se, porém, que este vistoso feto não é um exclusivo português. Pelo contrário, tem uma distribuição cosmopolita, ocorrendo em regiões tropicais e temperadas de todos os continentes, com excepção da Oceânia. Acontece que, em grande parte da Europa, as drenagens de áreas húmidas para uso agrícola têm-no feito rarear. Ainda que fortuitamente, Portugal, por uma vez, distingue-se pela positiva.

O que as fotos não explicam é o porquê do nome feto-real. A realeza da planta, aliás, está consagrada nas designações em muitas línguas europeias e também no próprio nome científico. É que o feto-real é mesmo grande; ou king-size, como se diz em português moderno. As suas frondes bipinadas — que desaparecem no Inverno, ganhando previamente um bonito tom outonal — atingem os dois metros de comprimento. As extremidades das frondes férteis, densamente revestidas por esporângios, têm cor dourada ou castanha e fazem o efeito de um ramo de flores; daí os nomes felce florida (italiano) e helecho florecido (espanhol).

Consta ainda que as raízes fibrosas do feto-real são usadas como substrato para envasamento de orquídeas. Não das orquídeas silvestres que temos mostrado no blogue — essas são uma dádiva da natureza e não sobrevivem à domesticação —, mas sim das variedades tropicais que se vendem nas floristas.

25/09/2010

Tempo de sobreiros


Valeira, Douro
     "And what wood are you made of, my son?"
     It wasn't a question. I could tell.
     All the same I wish he hadn't asked it.

     Neil Curry (At Samos: A question)

24/09/2010

Não aconselhado a herbívoros

Tamus communis L.


Um dos nomes que em Portugal se dá a esta planta é arrebenta-boi: sem dúvida alarmante para qualquer criador de gado, e não menos para quem goste de se deliciar com frutos silvestres. Se até um bicho de corpulência bovina é vulnerável à ingestão de folhas e bagas da Tamus communis, que aconteceria aos pobres humanos que arriscassem a experiência? Ao que parece, nada de muito grave, pois houve quem tenha sobrevivido para contar. Segundo o livro Guia das Plantas de Galicia de Xosé Ramón García (Edicions Xerais de Galicia, 2008), as bagas (que são vermelhas, para avisar os incautos do perigo) provocam, se mastigadas, uma forte ardência na boca. Além disso, a mesma fonte informa que o rizoma da planta (semelhante a um nabo, com uns 20 cm de comprimento) teve outrora uso medicinal. Talvez o povo, na sua sabedoria elementar, tenha ponderado que o que não mata cura.

Embora pouco se repare nela, a norça-preta (ou uva-de-cão, ou baganha, ou tamo) tem uma distribuição muito ampla, ocorrendo em toda a Europa e ainda no norte de África e na Ásia ocidental. É uma trepadeira perene, com caules de não mais que cinco metros de extensão, que, sem a ajuda de gavinhas, se enrola em árvores e arbustos. Prefere lugares húmidos e sombrios, como sebes e bosques ribeirinhos. As folhas, de um verde brilhante, são grandes, atingindo os 15 cm de comprimento, mas as flores, que aparecem na Primavera em espigas emanadas das axilas das folhas, são esverdeadas e minúsculas, com cerca de 5 mm de diâmetro. De facto, a planta é dióica, com flores femininas e masculinas em indivíduos separados. A ignorância do fotógrafo explica que ele só tenha captado imagens de flores masculinas — que se distinguem, obviamente, pela presença dos estames e pela ausência do estigma. Acontece, porém, que é frequente as flores femininas (que o escriba nunca viu, mas são ainda mais pequenas do que as masculinas) munirem-se de estaminóides: coisas que parecem estames mas na realidade servem só para enganar os polinizadores.

23/09/2010

Uma erva dos diabos

Succisa pratensis Moench


As designações vernáculas devil's bit e mordedura del diablo aludem ao rizoma desta planta perene que parece mordiscado a toda a volta, circunstância que o bom humor popular atribuiu a dentadinhas gulosas do demo para também ele beneficiar do poder terapêutico deste vegetal. Como se o mafarrico precisasse de mezinhas e poções. O nome Succisa, que quer dizer cortada rente, também fala da mordedura, mas desta vez pela voz erudita do latim. O povo luso, mais propenso a episódios bíblicos edificantes, chama-lhe erva-de-S.José, e nas fotos da inflorescência podemos perceber porquê: os quatro estames proeminentes de cada flor formam, com as anteras inclinadas na ponta, estruturas que lembram martelinhos de carpinteiro.

O género Succisa abriga 3 espécies, uma endémica dos Camarões; na Península Ibérica ocorrem as outras duas, ambas de floração tardia, no Verão e Outono: a S. pratensis e a S. pinnatifida. A primeira, comum na Europa, Oeste e sudoeste da Ásia, noroeste africano e Macaronésia, pode atingir um metro de altura e tem folhas elípticas quase inteiras que podem, contudo, variar bastante a partir deste figurino. Os capítulos florais, de cerca de 2,5 cm de diâmetro, parecem de Compositae mas nestes há brácteas minúsculas entre as flores. Habita prados húmidos, juncais ou turfeiras. A segunda, do norte e noroeste de Península Ibérica, distingue-se da espécie anterior pelas incisões vincadas nos bordos das folhas e pelo estilete mais longo, do comprimento dos estames. Pede terrenos xistosos e é um quasi-endemismo português. O quase tem a ver com o facto de, em Espanha, só existir a sul da Galiza, como aqui se explica; e também porque, por cá, tem vindo a rarear, consequência da eucaliptização e degradação das vertentes xistosas, como tão claramente testemunha a Serra de Valongo.

As flores neste género, predominantemente azul-violeta, têm quatro pétalas, uma maior, unidas na base, e são hermafroditas ou femininas. Coisas do diabo.

22/09/2010

Pisar sem dar por ela

Ornithopus perpusillus L.


O nome científico desta leguminosa, Ornithopus, significa pé de pássaro em grego e deu origem à designação inglesa bird's foot. Alega-se, como justificação, que as suas vagens mais ou menos curvadas (como se podem ver na foto da esquerda) evocam essa parte da anatomia das aves. Para confirmar tal semelhança ao vivo, porém, só recorrendo a uma lupa, pois a planta é toda ela minúscula: as flores andam pelos 4 mm de diâmetro, e os frutos ficam-se pelos 2 cm. O mais provável é que a sua existência passe despercebida tanto a homens como a pássaros. Mas, ao contrário desses seres alados, nós andamos com os pés no chão e pisamos tudo o que se nos atravesse no caminho. Os pés-de-pássaro conhecem muito bem os pés do homem.

Em Portugal (e na Península Ibérica) ocorrem espontaneamente quatro espécies de Ornithopus, todas elas plantas anuais conhecidas popularmente como serradelas. Têm dimensões exíguas, apresentam folhas imparipinadas com muitos folíolos, dão flores amarelas, brancas ou rosadas, e são por vezes cultivadas como forragem. O O. perpusillus é especial por ser ainda de menor estatura que os seus congéneres (perpusillus significa aliás muito pequeno) e pela atraente coloração das suas flores: estandarte branco raiado de rosa, quilha amarela. A sua evidente vocação ornamental é frustrada pela pequenez: assim como há medidas mínimas para os modelos que desfilam na passerelle, também as há para as plantas que enfeitam jardins.

Embora prefira prados em lugares elevados (acima dos 800 m de altitude) e seja mais frequente em terras nortenhas, a serradela-miúda ocorre em grande parte do país: segundo a Flora Ibérica, só está ausente do Ribatejo e do Alto Alentejo. Quem quiser vê-la terá de a procurar no lugar certo (nós encontrámo-la no Marão e no Gerês, perto de Pitões das Júnias) e na altura certa (de Abril a Agosto, quando ela está em flor), e estar atento aonde põe os pés.

21/09/2010

Confraria das sombras

Neottia nidus-avis ( L. ) Rich.


Monotropa hypopitys L.
As duas linhas de fotos poderiam ser usadas num daqueles passatempos de jornal em que se pede ao leitor para descobrir diferenças, dos de dificuldade baixa se na segunda linha houvesse flores frescas. Na verdade, as flores da Monotropa não têm o capuz característico das orquídeas e, quando nascem, a haste apresenta-se inclinada, acabando depois por endireitar o pescoço enquanto elas murcham. Mas a confusão entre as duas é desculpável porque apreciam o mesmo tipo de habitat: bosques antigos, temperados, sombrios e húmidos, com caducifólias (especialmente faias ou castanheiros) e uma espessa manta de matéria vegetal em decomposição, propícia aos fungos de que ambas dependem. É que, por não terem folhas verdes, elas não têm capacidade de fotossintetizar.

Quem avista uma sem a outra ao lado repara no porte erecto, na cor acastanhada de cogumelo cozido, no caule com cerca de 20 cm de altura revestido por umas bainhas transparentes, no jeito parasita — e crê ter encontrado a orquídea, que é rara, consta de várias listas de plantas à beira da extinção e em Portugal só está referenciada em dois ou três locais. Quando a vimos, a dezena de exemplares parecia seguir uma linha recta, provavelmente uma raiz da árvore que os escondia da luz, e confirmar a propagação vegetativa que a beneficia nestes ambientes. Cada caule corresponde a um rizoma rodeado por um denso ninho de raízes (neottia e nidus-avis aludem ambos a esta morfologia); depois da floração, a parte aérea seca mas as raízes continuam a espalhar-se, e no ano seguinte fazem emergir novas plantas.

A Neottia nidus-avis é uma orquídea que ocorre na Europa, Norte de África, oeste asiático e Sibéria. Não engana os polinizadores, moscas atraídas pelo aroma a mel e que nela recolhem farto néctar, mas parece ludibriar os fungos. É através deles que retira carboidratos à árvore que, hospedeira dos fungos, é recompensada com minerais que estes lhe servem. Deste modo, a planta defende o seu bom nome (ladrão que rouba a ladrão...) e sai da classe das saprófitas uma vez que parasita fungos vivos. Sabe-se que protege alguns orgãos com uma substância fungicida, mas não é ainda claro o que ganha o fungo intermediário do negócio, embora estudos recentes indiquem que há transferência de carbono da orquídea para o fungo.

Cada flor tem ao centro seis pontos minúsculos sensíveis que, mal tocados pelo bicho, accionam o alarme que faz uma bisnaga de cola expelir uma gota e abrirem-se os sacos de pólen, que logo adere à cabeça do insecto. Na falta destes, autopoliniza-se, podendo mesmo fazê-lo enquanto subterrânea.

20/09/2010

Traço amarelo contínuo


Ononis ramosissima L.


Os portugueses mantêm uma relação distante com o código da estrada: sabem que existe, mas preferem ignorar o que diz. Quando o código balbuceia alguma tímida proibição, mandam-no cantar para outra freguesia — isto se chegarem a ouvir-lhe o canto. É provável até que, ouvindo-o, não o saibam interpretar. Tais portugueses (refiro-me aos outros, não a mim nem a si, estimado leitor) teriam dificuldade em captar o trocadilho que dá título ao texto. Impõe-se, pois, uma breve explicação. Aquelas linhas amarelas que existem em algumas ruas junto aos passeios não indicam (ao contrário do que a prática geral dos automobilistas e a complacência da polícia fazem crer) estacionamento livre e gratuito. Muito pelo contrário, assinalam locais onde é proibido estacionar. Se o traço for descontínuo, pode-se parar mas não estacionar; se for contínuo, não é sequer permitido parar.

Que pensar então da linha amarela tendencialmente contínua que enfeita a estrada atlântica entra a Praia da Vieira e São Pedro de Moel? Por exceder a espessura regulamentar, talvez ela traduza uma proibição ainda mais severa do que a da simples paragem. Mas é difícil, a um amador de botânica, acatar uma ordem dessas sem antes averiguar da índole claramente vegetal de tão vistosa marca rodoviária. Lá se aproveitou um aceiro para encostar o carro e toca a recolher amostras fotográficas para posterior análise em laboratório caseiro. E houve tempo também para confirmar que esta é, em muitos sentidos (olfactivo, visual, táctil e — se contarmos com as camarinhas — gustativo), uma das melhores estradas do país.

Efectuadas as análises, ficámos a saber que o traço amarelo da estrada atlântica é produzido pelas flores de uma planta, Ononis ramosissima, que é a versão em tamanho grande de uma herbácea dunar que nos visitou a semana passada. Trata-se de um arbusto muito ramificado, com uns 60 cm de altura, que floresce com abundância de Abril a Junho e, de forma mais esparsa, também no resto do ano. Normalmente está confinado a falésias e dunas costeiras, mas nesta região do centro do país aparece a algumas centenas de metros do mar. Além de ser nativo de Portugal, o Ononis ramosissima ocorre de ambos os lados da bacia mediterrânica, de Espanha à Grécia e de Marrocos a Israel.

19/09/2010

18/09/2010

A Flowering Tree

Halleria lucida L. [Tree Fuchsia]
Words (of W. H. Auden) You like Ben. But does Ben like you?
Music (of Benjamin Britten) Like us? No! He loves us!
Words It's never, "Do I mean that still?"
Music No.
Words Never, "Was I being sincere?"
Music The idea.
Words Look. I have to come clean. We, the poems, the stuff he's written... we are sometimes hated.
Music Hated? But he wrote you.
Words We embarrass him. We embarrass him so much several of my collegues never even made it into the Collected Poems.
Music No!
Words Excluded. Purged.
Music Purged?
Words Never spoken of again. There was Spain, a perfectly good poem cut out completely. Another one, September 1, 1939, he had 'second thoughts' about. And you can't do that, you see. It makes the rest of the oeuvre very nervous... I mean, who's going to be next?
Music Dear me. I don't like the sound of this. Still let's look on the bright side: people only listen to the music; nobody listen to the words.
Words That's what Wystan says. (...)
In the opera house words themselves go for nothing. An operatic audience doesn't listen to the words and only hears maybe one in five. But that's not the point. The librettist's function comes earlier because what the librettist, the writer of words, has paradoxically to do is deliver the music. The librettist is a midwife.

Alan Bennett, The Habit of Art (Faber and Faber, 2009)

17/09/2010

As unhas na praia

Ononis diffusa Ten.
Esta planta gosta tanto de espolinhar-se na praia que as suas hastes viscosas ficam quase camufladas de areia. Mas, como nas brincadeiras infantis, a cabeça de fora (ou, neste caso, a flor) permite detectá-la sem dificuldade. Ainda que seja de pequeno tamanho (cerca de 15 mm), a corola rosada é suficientemente contrastante com o amarelo pálido do areal para não passar despercebida. E as flores, que são seguro de vida para uma planta anual, não têm o menor interesse em esconder-se: é preciso que as abelhas as vejam e façam o seu serviço, ou a espécie desaparece.

Apesar de os manuais asseverarem que a Ononis diffusa ocorre em todo o litoral português (e, mais geralmente, em toda a costa ibérica desde Cantábria até Valência), a verdade é que pouco se vê; nós só a encontrámos no concelho de Esposende, já perto da foz do Neiva. As plantas dunares vivem encurraladas entre duas ameaças: o mar que vai roendo a costa e o homem que a vai ocupando desvairadamente. E ainda há o pisoteio dos veraneantes e o assédio de invasoras como as acácias e os chorões. Muitas espécies sobrevivem a estas contingências, e algumas até têm melhorado de vida com a moda (excelente) de instalar passadiços nas dunas. Mas a O. diffusa parece fazer parte do grupo das perdedoras — que inclui, por exemplo, a Honckenia peploides, em sério risco de se extinguir em Portugal.

O género Ononis poderia confundir-se com outras leguminosas como o trevo (Trifolium) e a a luzerna (Medicago) se não fossem as flores comparativamente grandes, com estandarte bem maior do que a quilha (ler aqui uma explicação destes termos), agrupadas em pequeno número. As folhas imparipinadas, com três a nove folíolos, também apresentam margens com recorte característico. O género, que inclui arbustos, herbáceas perenes e plantas anuais, conta com umas 75 espécies, a maioria delas europeias, com nada menos que 43 presentes na Península Ibérica. Ocupa habitats variados: dunas, falésias, lugares pedregosos, matos rasteiros e prados.

16/09/2010

Dois passarinhos na mão

Kickxia cirrhosa (L.) Fritsch
Desconfiámos da folhagem porque parecia um cirro pouco abonado que tivesse despencado das nuvens e onde mal se distinguiam, como é usual nestas formações estratosféricas, uns pingos violeta. Quando fotografados, revelaram-se linárias minúsculas, com esporõezinhos a preceito. Não, não, disseram pouco depois os livros em casa: isso já lá vai, foram linárias entre 1789 e 1897. Com atenção, mesmo sem avaliar diferenças mais intrincadas, teríamos percebido porquê: estas flores são solitárias e as linárias nascem em inflorescências, em geral terminais ou axilares. Paciência, aprendamos então.

É uma herbácea anual de ramos delgados e pubescentes. As flores, de Primavera, medem cerca de 7 mm desde o lábio superior à ponta do esporão. Repare o leitor que as folhas são sagitadas e algumas têm gavinhas — ou cirros — que as podem erguer até 90 cm. Aprecia solos arenosos mas temporariamente encharcados, mais ainda se perto do mar, como as margens da Lagoa da Vela, em Quiaios. Segundo a Flora Ibérica, é nativa da região mediterrânica ocidental, Açores, Canárias, metade sul da Península Ibérica e ilhas Baleares. O nome do género homenageia um boticário e naturalista de Bruxelas, Jean Kickx (1775-1831), autor de uma obra sobre a flora dessa região.

Kickxia spuria (L.) Dumort.
Quando, semanas depois, encontrámos estes pardais amarelos de papo lilás — igualmente axilares mas comparativamente gigantes com os seus 15 mm de comprimento —, ouviu-se um sorridente «são quíquecias!». Também é uma planta anual, mas prefere solos cultivados e argilosos. A lã nas folhas pareceu suficiente para um casaco XS mas ao tocá-la, tão fofinha, revelou-se desagradavelmente pegajosa. O hábito rastejante e preguiçoso foi louvado pelo fotógrafo e é comum à espécie K. elatine, que difere desta essencialmente no esporão que não é curvo. Por falar nisso, spuria não deriva do inglês spur (espora) mas do latim spurius (que originou espúrio), por isso o povo sábio lhe chama linária-bastarda. Partilha o território com a K. cirrhosa, mas estende-se a quase toda a Península Ibérica, Mediterrâneo, sul e oeste da Europa e sudoeste da Ásia.

15/09/2010

À sombra do viaduto

Melilotus albus Medik.
Cada grande descoberta traz consigo muitas pequenas descobertas. E essa lei não é só válida na investigação científica, mas também em actividades prosaicas como a de andar à procura de plantas raras. Em busca do pinheiro-baboso revirámos Valongo de alto a baixo, visitando lugares que de outro modo nunca teríamos conhecido — e que, valha a verdade, andam longe da beleza impoluta que faz a atracção dos espaços naturais. No meio dos intermináveis eucaliptais há porém resquícios da vegetação que outrora cobriu estas serras: são como metais preciosos esquecidos num armazém de ferro-velho. Um estreito regato, agora seco, alimenta um prado húmido de uns poucos metros quadrados à margem de um caminho: tanto basta para que se reúnam em assembleia plantas tão interessantes como o Hypericum elodes, o Cirsium filipendulum, a Anagallis tenella, a Gentiana pneumonanthe, a Wahlenbergia hederacea e vários Myosotis. E nem mesmo o monte de entulho que sobrou da construção do viaduto pode ser ignorado. Afinal, um dos últimos avistamentos do Drosophyllum lusitanicum por terras de Valongo deu-se num desses habitats artificiais criados pelo desmazelo humano.

A população de D. lusitanicum que por fim encontrámos não tinha entulho nem outros lixos por perto, o que talvez seja consolador. Mas a visita ao entulho à sombra do viaduto também nos trouxe algumas recompensas. Foi lá que vimos esta leguminosa alta (1 a 2 metros de altura), com longas espigas de minúsculas flores brancas, a que os ingleses chamam trevo-doce. E não há como escondê-lo: o Melilotus albus sentia-se em casa, pois é de lugares degradados pela acção do homem que ele gosta. (As plantas com tais gostos depravados designam-se eufemisticamente por ruderais.)

Apesar disso, o Melilotus albus, que é espontâneo em grande parte da Europa, é uma planta com boa reputação: é muito melífera; cultiva-se para forragem; e, sobretudo depois de seca, exala um perfume a relva acabada de cortar.

14/09/2010

Morrião dos brejos

Anagallis tenella (L.) L.


Submersos pelas crises que nos tolhem o passo, pouco se tem discutido o facto de o sol ser uma estrela anã, que tem brilhado intensamente e por isso consumido hidrogénio com apetite voraz, não tardando o dia, que então se confundirá com a noite, em que só restará um carvãozinho frio. Acabarão finalmente os incêndios no nosso sistema planetário, é certo, mas alguns seres lamentarão este destino, como a herbácea da foto e as suas irmãs cujas flores temerosas só abrem se o sol as aquece.

Não há semelhança notória entre as manas e até Lineu hesitou: começou por chamar-lhe Lysimachia tenella e só depois emendou a mão para Anagallis (daí o (L.) L. no nome científico, que o leitor já estava a apontar no seu caderninho de erros deles). De qualquer modo, as flores são também de Primavera-Verão, miniaturais (cerca de 10 mm de diâmetro) e as folhas opostas, glabras e carnudas revelam alguma parecença com as dos outros morriões. Contudo, a planta da foto, que é perene e natural do oeste europeu, região mediterrânica e Macaronésia, é mais delicada (tenella) e precisa de solo bastante encharcado. Por isso rasteja, enquanto enraíza os ramos pelos nós, acedendo a mais água sem nunca se expor ao risco de apodrecer com a humidade excessiva.

Mas, ainda antes do sol, talvez se extinga por descuido de quem gere áreas (des)protegidas — apesar de, pelo menos nos Açores, constar da lista da flora vascular de conservação prioritária.

13/09/2010

A margem esquecida do rio

Bidens frondosa L.
Uma das mais aguerridas polémicas que se desenrolaram neste plácido blogue teve como pretexto a Bidens pillosa, congénere sul-americana da planta que hoje sobe ao palco. As questões que exaltaram (moderamente) os ânimos foram estas: pode uma planta daninha, causadora em todo o mundo de grandes prejuízos nas colheitas, ser apreciada pela sua beleza? É legítimo o «romantismo floral» servir-se de tão maléfico vegetal para ilustrar a espantosa diversidade de meios que as plantas usam para se disseminarem? A resposta requer alguma capacidade de diferenciação. É possível, por exemplo, reconhecer que alguém foi um grande escritor sem esquecer que foi também um grande patife. Podemos ler e apreciar a prosa de um autor sem querermos ser governados pelas suas ideias. Do mesmo modo, há plantas de que podemos admirar a beleza ou o engenho mas que preferíamos, por muitas e boas razões, não ver por perto. Um bom exemplo é o jacinto-de-água, que é ao mesmo tempo uma terrível praga e uma criação admirável da natureza.

A Bidens tripartita, não comungando da índole expansionista da sua prima americana, tem pouco a ver com esta discussão. De facto, apesar de ocorrer em todo o continente europeu, tem exigências ecológicas particulares (lugares húmidos e algo nitrificados) que fazem dela uma presença esparsa. Em Portugal, por exemplo, só se encontra na metade norte do país, especialmente no noroeste, nas margens de um ou outro rio; e, como tem floração tardia (de Agosto a Outubro), passa ainda mais despercebida. O exemplar das fotos morava junto ao poluído rio Vizela, num pedaço esquecido de margem contíguo ao Parque das Termas.

As fotos mostram cabalmente o aspecto da Bidens tripartita, em particular as suas folhas tripartidas e as longas brácteas que rodeiam a inflorescência. Falta informar, contudo, que esta planta anual atinge uma envergadura considerável: nada menos que um metro de altura.

Errata. A Bidens tripartita, ao contrário do que supúnhamos, é actualmente muito pouco comum em Portugal, parecendo ter sido expulsa dos seus habitats de eleição por uma impostora que muito se assemelha a ela e tem a mesma época de floração. A Bidens frondosa, assim se chama a intrusa, tem origem norte-americana e chegou a Portugal ainda no século XIX. A verdadeira Bidens tripartita, que nunca vimos, tem folhas com pecíolo curto e alado (i.e., dotado de duas membranas laterais).