Em 30 de Julho de 1815, partiu de Kronstadt, cidade russa no golfo da Finlândia, o navio Rurick, comandado pelo capitão Otto von Kotzebue e com 27 homens a bordo. A viagem, financiada pelo Conde Nikolai Romanzoff, ministro da corte russa, duraria três anos, e tinha objectivos exploratórios e científicos: descobrir uma passagem marítima a norte entre o Pacífico e o Atlântico (o que não foi conseguido); e estudar a fauna, a flora e a geografia das ilhas do Pacífico e da costa ocidental da América, do Cabo Horn ao Alasca. A comitiva incluía o botânico Adelbert von Chamisso; entre as espécies novas por ele então descritas contam-se a papoila-da-Califórnia - chamada Eschscholtzia californica em honra de Johann Friedrich Gustav von Eschscholtz, médico da expedição - e a Myrica californica, pequena árvore aparentada com a nossa faia-das-ilhas (Myrica faya).
Chamisso, nascido em 1781 em França, refugiado com a família na Alemanha em 1790 para escapar à Revolução Francesa, não foi apenas um cientista distinto. Escrevendo na sua língua adoptiva, foi poeta e prosador de renome, autor de um diário da expedição Romanzoff, publicado com grande sucesso em 1836 (dois anos antes da sua morte), e da História fabulosa de Peter Schlemihl, de 1814, que teve grande voga na Europa e foi traduzida em muitas línguas. Peter Schlemihl vende inocentemente a sua sombra ao diabo em troca de uma bolsa que é inesgotável fonte de ouro; mas logo descobre que não ter sombra é tão ruim, pelo ostracismo que provoca, como ser leproso. Desesperado pelo assédio do demónio, Peter Schlemihl desfaz-se da bolsa mágica sem por isso reaver a sombra; equipado com botas-de-sete-léguas, percorre o mundo (com excepção da Austrália, fora de alcance por ser muito remota) em estudos naturalistas que o redimem da impossibilidade do convívio humano.
A História fabulosa de Peter Schlemihl é um conto-de-fadas autobiográfico: Chamisso, dividido entre a França e a Alemanha, países habituados a guerrearem-se, terá experimentado, como apátrida que era, a mesma rejeição que o seu anti-herói sofreu. Enquanto Peter Schlemihl, cavalgando as prodigiosas botas, pulava de continente em continente para recolher as suas amostras, também Chamisso, em navio vagaroso sacudido por correntes e marés, enriquecia a botânica com novas descobertas. E Chamisso, tal como Peter Schlemihl, nunca visitou a Austrália.
(A Assírio & Alvim editou em 2005 A História fabulosa de Peter Schlemihl, numa tradução em bom português de João Barrento.)