«Eu adoro Lamego, mas, qualquer dia... deixo de lá ir. Consta-me que a velha cidade, para se modernizar, adoptou o único processo modernizador conhecido em algumas cidades e vilas portuguesas. Esse processo consiste em arrancar árvores e pôr no lugar delas o cimento armado em forma de pias, gamelas, caixotes, alqueires, quartas, meias-quartas e tudo o mais que seja frio, chato, liso, cúbico, prismático. Lamego, pelo que me consta, vai ficar sem uma árvore para ficar com miríades de pias - salvo seja. (...) Não concebo esta cidade sem grandes troncos e copas guedelhudas. Sinto mais que se derrua uma árvore do que se destrua monumento de outra espécie. (...) Pedras, só pedras, sem a doçura de uma mancha verde, só servem para cansar a vista. Lamego sem árvores é uma velha com o caco ao léu. É uma caveira. Poderá rir, mas, a respeito de sorriso, disse! (...)
O que acontece em Lamego tem acontecido em quase todas as terras do país. Os grandes reformadores de província reformam, destruindo. Se precisam de construir uma choupana, destroem um palácio. Se lhes falta um jardim, cortam um bosque. Se querem erigir um candeeiro, abatem uma árvore. (...) O lado perigoso da maior parte dos vícios reformatórios sertanejos está na complacência de toda a gente com eles. Se o maioral de uma terra quiser secar o rio que banha essa terra, ninguém lhe impede a obra secativa. Nas farmácias e nas barbearias, toda a gente murmura contra a mão secadora, mas, se essa mão surgir de repente a pedir uma barba ou uma pastilha, toda a gente a beija. Não me parece nobre de mais esta atitude dos murmuradores. Nobilíssimo seria que procurassem o lorde maior e lhe dissessem:
- Senhor, não seque o rio! Deixe-o continuar húmido. Olhe que um rio, senhor, parece-nos que tem alguma utilidade...
Quem diz rio diz árvores; tanto diz economia como diz beleza - diz quanto é sagrado.»
João de Araújo Correia, Três meses de inferno (1947)
P.S. (de 2004). E que entendimento têm hoje das árvores no espaço urbano os novos autarcas do Portugal democrático? É caso para dizer: mudam-se os tempos, ficam as más vontades. Porque, embrulhada num novo discurso, quantas vezes enfeitado com chavões ambientalistas, persiste a vontade de modernizar a régua e esquadro, com sacrifício de todas as árvores que não se encaixem na geometria do projecto. As vilas e cidades de Portugal parecem, cada vez mais, cenários postiços acabados de inaugurar: não há uma árvore que as ligue ao seu passado.
Para dar mais um triste exemplo, foi noticiado anteontem no Público que a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim aprovou a construção de um parque de estacionamento subterrâneo ao longo de uma avenida com 1 Km de extensão. (Os parques subterrâneos são a nova fétiche dos autarcas portugueses: já não têm conta as praças destruídas e as árvores derrubadas por essa praga.) A notícia informa que «à superfície irá desaparecer a actual faixa central para peões - onde pontificam grandes e frondosas árvores cujas raízes tornaram o pavimento ondulado». Quantas árvores isso dá: 50, 100? A oposição votou contra, mas, pelo conteúdo da notícia, ninguém considerou que o abate de tão grande número de árvores adultas fosse razão para desistir da obra. Terá algum vereador, num assomo de desculpável lirismo e só para constar do livro de actas, ousado exprimir alguma leve compunção? Ou não pode usar-se de indulgência, ainda que retórica, com árvores que se atreveram a «tornar o pavimento ondulado»?
A conclusão é que há um assunto em que toda a nossa classe política - a de ontem e a de hoje, a de esquerda e a de direita, a de todas as cores do arco-íris e de todos os pontos do compasso - está em perfeito acordo. Esse credo unânime foi há tempos brilhantemente sintetizado pelo Arq. Ricardo Figueiredo, recém-desempossado vereador da Câmara do Porto: «Há que acompanhar a evolução natural das coisas. Uma obra não vai deixar de ser erguida por causa de meia dúzia de árvores. Há que ajustar e modernizar (...)»